A maioria de nós não tem amor
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A maioria de nós não tem amor


[...] Se desejo participar numa corrida, tenho de me submeter ao necessário regime alimentar; se desejo executar qualquer coisa com toda eficiência, tenho de me alimentar convenientemente, não devo sobrecarregar o estomago, tenho de me exercitar adequadamente, etc. Minha mente e meu corpo têm de estar alertados no mais alto grau possível. 

[...] Uma pessoa pode assumira postura correta do corpo, respirar corretamente, e tudo o mais, mas isso tem relativamente pouca importância em relação ao percebimento direto da realidade.

Deixe-me expressá-lo de outra maneira. Se percebo que odeio, me é possível amar imediatamente, ou o ódio tem de ser removido pouco a pouco, a fim de que, eventualmente, eu seja capaz de amar? Este é o problema. Estão entendendo? É possível a mente se transformar imediatamente e ficar num "estado de amor"? 

[...] percebo que sou ambicioso e, se estou suficientemente alertado, se sou inteligente e me conservo vigilante, percebo também quanto é absurdo e destrutivo esse estado. A ambição, inclusive a ambição espiritual, implica um estado em que não existe amor. O desejo de ser alguém, espiritualmente, o desejo de ser não-violento, é sempre ambição. Percebendo-se bem isso, é possível apagar instantaneamente a ambição, abandonando essa luta perene, de inquirição, de análise, disciplina, "idealização", e tudo o mais? Pode a mente apagar prontamente a ambição e se ver no "outro estado"? É possível isso? Não concordem, senhores, pois não é questão de concordar ou discordar. Já pensaram nisso? 

[...] Sou ambicioso e desejo me ver num estado de amor; me cumpre, por conseguinte, afastar a ambição, e como fazer isso?[...] A questão, em si mesma, envolve tempo, não? No momento em que perguntam "como?", está criado o problema do tempo — tempo para lançar uma ponte sobre o intervalo, tempo para atingir o estado chamado "amor"; por essa razão, nunca podem atingi-lo. Compreendem , senhores? 

[...] "É possível para mim abandonar completamente a ambição e me achar naquele estado que se pode chamar "amor"? Não vou descrever o que é aquele estado. O problema é que sou violento e, tenho alguma possibilidade de abandonar completamente, imediatamente, a violência? 

[...] Eu sou agressivo, ambicioso, e vejo que toda a sociedade corrupta que me circunda é também ambiciosa e agressiva em diferentes graus. Tudo nela é de aparências, estúpido, vão e, no entanto, me vejo preso nas suas malhas; é possível para mim largar completamente a ambição, abandoná-la e nunca mais ter contato com ela?[...] Ou preferem dizer: "Sou ambicioso e me libertarei da ambição aos poucos, amanhã ou na próxima vida, à força de disciplina, pela prática de um mantra adequado, da adequada vigilância — enfim, toda lista de absurdos? 

[...] Veja, senhor, a maioria de nós não tem amor, o que quer que seja essa qualidade. Podemos ter um temporário sentimento que chamamos "amor", o qual, entretanto, é muito semelhante ao ódio, e não pode ser aquela coisa extraordinária. É possível que uns poucos possuam essa florescência, essa coisa alentadora, criadora, mas em geral nos achamos num estado de confusão e aflição. Ora, pode uma pessoa abandonar, simplesmente, tudo isso e se tornar "a outra coisa", sem passar pelas tremendas complicações inerentes ao "tentar vir a ser alguma coisa", sem discussões sobre se o sujeito que percebe está separado do objeto percebido, etc.?

[...] estamos em presença de um problema muito grave e que envolve uma completa revolução no pensar; dele decorre que temos de nos livrar de todos os guias, de todos os gurus, de todos os métodos, não é verdade? E que acontece, quando nos é proposto um problema desta natureza? 

Isto é, quando estamos conscientes de que odiamos, e desejamos ficar livres do ódio, que fazemos, em geral? procuramos um método de nos livrarmos ele, e esperamos achar esse método num livro, num guru, etc. Ora, percebemos que a prática de qualquer método é uma ilusão ou dizemos que o método é necessário? Esta é a primeira questão, evidentemente. O que vocês sentem, senhores? Não desejo lhes forçar a dizer que não há necessidade de método; isso seria uma nova ilusão, mera repetição de palavras, uma atitude artificial, inteiramente destituída de significação. Mas se percebem realmente que a prática de qualquer método para nos libertarmos do ódio é uma ilusão e portanto sem validade alguma, neste caso a maneira de considerarem o ódio terá sofrido uma transformação total, não? 

[...] Se sabemos considerar o ódio sem o "como", teremos então uma reação completamente diferente, diante daquilo que percebemos.[...] não perguntem como ficarem livres do ódio. Esta é uma questão muito trivial. O problema é este: estando conscientes de que odiamos, dizemos, agora: "Como me livrar do ódio?"[...] No momento em que nos surge esta reação — como ficar livre? — colocamos em ação vários fatores sem validade alguma. Um desses fatores é o processo de gradual desgaste do ódio, através de um certo período de tempo; outro é o fazer esforço para conseguir um resultado; e outro, ainda, é o de dependermos de alguém, para nos ensinar como proceder. Tudo isso são atividades egocêntricas, e também uma forma de ódio.

[...]o ódio pode ser dissolvido por meio do tempo? Os iogues, os swamis, o Gita, os Mahatmas — todos dizem que o ódio tem de ser dissolvido com o tempo; mas talvez eles não tenham razão, e provavelmente não a têm. E porque haveriam de tê-la? Mas eu desejo averiguar se há uma maneira diferente de considerar este problema, em vez de aceitar a maneira tradicional, a qual vejo que invariavelmente degenera em mediocridade. A simples aceitação da tradição é uma coisa estúpida. Ainda que dez mil pessoas afirmem que uma coisa é verdadeira, isso não significa que ela têm razão. Meu problema, pois, é este: é possível ficarmos livres do ódio agora, e não no futuro? 

Jiddu Krishnamurti em, Da solidão à plenitude humana




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