A mente é escrava de si própria
autoconhecimento

A mente é escrava de si própria


A mente que se ajusta, a mente que obedece, que segue a autoridade, a convenção, não é, por certo, uma mente livre. É uma mente vulgar, estreita, limitada. Cabe-nos, pois, indagar se a mente pode libertar-se de todas as formas de imitação. E para compreender esse problema, temos de eliminar de nossa mente o medo, em qualquer forma que seja. A moralidade social se baseia essencialmente na autoridade e na imitação. Assim, consideremos por ora se a mente pode compreender as limitações próprias da imitação, do ajustamento a determinado padrão. E se é possível a mente descondicionar-se.

Parece-me que a bondade, a florescência da bondade, nunca se verificará enquanto a mente for apenas "respeitável", adaptada ao padrão social, a certo padrão ideológico ou religioso, quer imposto de fora, quer interiormente cultivado. Resulta daí a questão: Por que é que o homem segue? Por que segue não apenas o padrão social mas também o padrão que estabeleceu para si próprio, pela experiên­cia, pela constante repetição de certas ideias, certas normas de con­duta? Temos a autoridade do livro, a autoridade do que se diz sabe­dor, a autoridade da igreja e a autoridade da Lei; e onde traçar a linha que indica quando não se pode seguir e quando se deve seguir?

O seguir a Lei é evidentemente necessário, pois cumpre "conser­var a direita" ou "a esquerda", na estrada (conforme o país em que nos achamos) etc.; mas, quando se torna a autoridade prejudicial, um verdadeiro mal?

Examinando bem esta matéria, pode-se ver que a maioria de nós busca o poder. Social, política, econômica, religiosamente, esta­mos em busca de poder; o poder que o saber, a técnica, conferem; o extraordinário poder que um homem sente possuir quando tem per­feito controle do próprio corpo: o poder que o ascetismo dá. Tudo isso, por certo, é processo imitativo; significa ajustamento a um padrão, com o fim de adquirir um certo poder, uma certa posição, vitalidade. Assim, parece-me que, se não compreendemos toda a anatomia do poder, a ânsia, o desejo dele, nunca poderá a mente encontrar-se naquele estado de humildade, que não é a humildade inventada pelo homem.

Ora, por que é que o homem segue? Por que seguis a mim, o orador — se me estais seguindo? Estais-me seguindo, ou estais pres­tando atenção, escutando? Estes são dois estados completamente dife­rentes, não? Seguis, quando vosso desejo é realizar, alcançar ou ganhar algo que julgais este orador pode oferecer. Mas, se o orador de fato está oferecendo alguma coisa, ele é então um propagandista, e não um investigador da verdade. E se estais seguindo alguém, isso indica claramente que tendes medo, que estais incerto: desejais ser encora­jado, ser informado sobre como alcançar, ser bem sucedido.

Mas se, ao contrário, escutais realmente — e isso é muito dife­rente de seguir a autoridade ou buscar o poder — estais então escutando para descobrir o que é verdadeiro e o que é falso, e esse descobrimento não depende de opinião nem de saber. Ora, como descobris o que é falso e o que é verdadeiro, se estais escutando? É bem óbvio que se a mente está apenas argumentando, interiormente ou com uma pessoa que está expondo certas ideias, não está desco­brindo o que é verdadeiro ou falso. O indivíduo não está escutando, absolutamente, quando esse escutar apenas provoca uma reação em conformidade com seu saber, sua experiência, opinião, educação, isto é, seu condicionamento. Não escuta, igualmente, ao forcejar por desco­brir o que outra está dizendo, porque então seu interesse está intei­ramente absorvido pelo esforço. Mas se todos esses estados puderem ser postos de parte, existirá, então, o estado de escuta, que é atenção.

Atenção não é, de modo nenhum, a mesma coisa que concen­tração. Concentração significa obrigar a mente a focar determinado ponto, pelo processo de exclusão. A atenção, ao contrário, é inclusão total. Há atenção, quando não apenas estais escutando o orador, mas também a música que estão tocando na igreja vizinha, e os ruídos do tráfego, lá fora — quando a mente está de todo atenta, sem nenhum limite e, portanto, sem nenhum centro. Está ela, então, escutando e, portanto, vendo o que é verdadeiro e o que é falso, imediatamente, sem reação alguma, sem o emprego de qualquer forma de dedução, indução, ou outro artifício qualquer. Ela está escutando realmente e há, por conseguinte, nesse próprio ato de escutar, revolução, transfor­mação fundamental.

Essa atenção, para mim, é virtude; só nessa atenção floresce a bondade simples, a bondade que não é produto da educação, da socie­dade e de todos os atavios intelectuais criados pela influência. E, talvez, essa atenção é também amor. O amor não é virtude — a vir­tude que conhecemos. E onde existe esse amor, não existe pecado; o homem pode então fazer o que quer; está fora do alcance dos tentá­culos da sociedade e de todos os horrores da respeitabilidade.

Assim, deve o homem descobrir por si mesmo por que segue, por que aceita essa tirania da autoridade — autoridade do sacerdote, autoridade da palavra impressa, da Bíblia, das Escrituras indianas etc. etc. Pode-se rejeitar completamente a autoridade da sociedade?

Não me refiro à renuncia dos intelectualistas mundanos; esta é mera reação. Mas, pode-se realmente perceber que esse ajustamento exterior a um padrão é fútil e de efeitos destrutivos para a mente que deseja desco­brir o que é verdadeiro, o que é real? E, se se rejeita a autoridade externa, é igualmente possível rejeitar a autoridade interna, a autori­dade da experiência? Pode-se renunciar à experiência? Em regra, a experiência é "guia do saber". Dizemos: "Sei por experiência", ou "A experiência me indica que devo fazer isto"; a experiência se torna, assim, nossa autoridade interna. E esta é, talvez, muito mais destrutiva, muito mais maligna do que a autoridade externa. É a autoridade de nosso condicionamento, o qual nos conduz a ilusões de todas as formas. O cristão tem visões do Cristo, e o hinduísta tem visões de seus próprios deuses — cada um em virtude de seu próprio condicionamento. E pelo próprio fato de ter tais visões, de experimentar tais ilusões, ele se torna altamente respeitado, "um santo".

Ora, pode a mente eliminar todo o seu secular condicionamento? Afinal de contas, condicionamento é produto do passado. As reações, os conhecimentos, as crenças, as tradições de muitos milhares de dias passados concorreram para moldar a mente. E pode-se eliminar tudo isso? Deveis pensar nisso seriamente, em lugar de afastardes de vós a questão, dizendo "Não é possível", ou "Se é possível, como poderei fazê-lo?" O "como" não existe. "Como" implica tempo intermediá­rio; e a mente para a qual é importante o tempo intermediário está em verdade adiando. Pode-se pensar que, embora se possa "banhar" a mente para torná-la comunista, capitalista ou o que quer que seja — e isso significa apenas uma diferente forma de condicionamento — é impossível estar-se livre de todos os condicionamentos. Não sei se percebeis bem isso. Não sei se estais cônscios de vosso condiciona­mento, o que ele implica, e se há, ou não, possibilidade de libertação. O condicionamento é a própria raiz do medo; e onde existe medo, aí não há virtude.

Para se penetrar profundamente nesta questão requer-se muita inteligência, e por inteligência entendo a compreensão libertadora de toda e qualquer influência. A influência é a causa do condicionamento. Fostes criados para crer em Deus, em Cristo, para repetir certas coisas todos os dias; ao passo que na índia se despreza tudo isso, porquanto, lá, eles foram criados com seus próprios santos e deuses. A questão, pois, é esta: Pode a mente, depois de influenciada por tantos séculos pelo peso esmagador da tradição, desfazer-se desta completamente e sem esforço algum? Podeis sair daí, dessa estrutura, tão facilmente como podeis sair deste salão? E esse fundo (background) não é a própria mente? A história da mente é a mente. Não sei se isto está para vós bem claro.

A mente é o próprio fundo (background). A mente é tradição. Ela resulta do tempo. E reconhecendo a inutilidade de suas atividades, diz, por fim, que existe "a graça de Deus", que é preciso esperar, aceitar, receber — e isso é outra forma de influência. Essa mente não é uma mente inteligente.

Que fazer, então? Estou certo de que já examinastes bem isso. Deveis tê-lo experimentado: não aceitar, não confiar na autoridade, não se deixar influenciar. Deveis ter chegado à compreensão de que a mente, ela própria, nada pode fazer. Ela é escrava de si própria; criou seu próprio condicionamento; e toda reação a esse condiciona­mento o fortalece mais ainda. Todo movimento, todo pensamento, toda ação que se verifica no interior da mente continua dentro da limitada esfera de seus próprios valores. Se já penetramos até este ponto, não teoricamente, não intelectual ou verbalmente, porém de modo real, que acontece então? Espero compreendais o resultado disso. O resultado é que, para a mente que deseja compreender o que é verdadeiro e saber se existe o imensurável, o "indenominável", toda espécie de autoridade deve cessar — tanto a autoridade da Lei como a autoridade da experiência. Mas isso não significa "conduzir o carro pelo lado errado da estrada": significa que a mente rejeita a autoridade de toda experiência, que é conhecimento, que é a palavra, e rejeita todas as sutilíssimas formas de influência, o "esperar para receber", todas as expectativas. A mente é então deveras inteligente.

Penetrar em si mesmo tão profundamente, tão cabalmente, é trabalho dificílimo. Para nos aplicarmos a qualquer coisa requer-se energia, não esforço. E se chegamos até esse ponto, resta ainda alguma coisa da mente, tal como a conhecemos? E não é necessário alcançar esse estado? Porque, sem dúvida, ele é o único estado criador. Escre­ver um poema, pintar um quadro, construir um edifício, etc. — isto por certo não pode ser chamado ação criadora, no verdadeiro sentido da palavra.

Sente-se que a criação, a coisa que chamamos Deus, ou a Ver­dade, ou como quiserdes chamá-la, não é apenas para uns poucos eleitos. Não é apenas para os indivíduos dotados de certa capacidade, certo dom, tal um Miguelangelo ou Beethoven, ou os modernos poetas, arquitetos e artistas. Eu sinto que ela está ao alcance de todos — esse extraordinário sentimento da imensidade, de algo que não conhece obstáculos nem fronteiras, que não pode ser medido pela mente ou expresso em palavras. Sinto que a criação está ao alcance de todos. Porém, não é um resultado. Ela nasce, penso, quando a mente começa pelo que está mais próximo, ou seja por si própria — e não quando busca o que está mais remoto, o inimagi­nável, o desconhecido. O autoconhecimento, conhecimento de nosso "eu", significa abri-lo, examiná-lo, ver o que ele é — e, não, buscar algo fora de nós. A mente é de fato uma coisa extraordinária. Como a conhecemos, ela é resultado do tempo; e o tempo é autoridade — a autoridade do bom e do mau, do que se deve fazer e do que não se deve fazer, da tradição, das influências, do condicionamento.

Pode, pois, a vossa mente — não vos falo individualmente — descobrir todo o seu condicionamento, tanto o consciente como o inconsciente, e dele sair? "Sair" é apenas expressão verbal: pois quando a mente se vê condicionada e compreende todo o mecanismo desse condicionamento, então, de repente, ela se encontra "do outro lado".

Krishnamurti — O Passo Decisivo — Cultrix — Pág. 51 à 56





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