A questão da automistificação
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A questão da automistificação


Desejo discorrer, nesta tarde, sobre a questão da automistificação, das ilusões a que a mente gosta de se entregar, que ela impõe a si mesma e aos outros. Trata-se de uma questão muito séria, sobretudo numa crise da espécie que o mundo agora está enfrentando. Todavia, para que possamos compreender inteiramente esse problema da automistificação, cabe-nos estudá-lo não apenas verbalmente, no nível verbal, mas intrinsecamente, fundamental e profundamente. Como dizia, nos satisfazemos muito facilmente com palavras e "contra-palavras"; somos "conhecedores" das coisas do mundo e, como tais, só nos cabe ficar à espera de que alguma coisa aconteça.[...] Aqueles de nós que sentem verdadeiro emprenho, precisam transcender a palavra, procurar essa revolução fundamental dentro de si mesmos; é ela o único remédio capaz de trazer uma redenção duradoura e fundamental da humanidade. 

Identicamente, ao tratarmos desta espécie de automistificação, creio que devemos nos colocar em guarda contra quaisquer explicações e respostas superficiais; devemos, se me é permitido sugerir, não apenas escutar as palavras de um orador, mas também observar o problema, tal como o conhecemos em nossa vida diária; isto é, devemos observar a nós mesmos no pensar e na ação, observar a impressão que produzimos nos outros, e como continuamos a agir, de nossa parte. 

Qual é a razão, qual é a base da automistificação? Quantos de nós estamos verdadeiramente conscientes de que estamos enganando a nós mesmos? Antes de podermos responder à pergunta "que é automistificação, e como ela se origina?" — não julgam necessário estarmos conscientes de que estamos enganando a nós mesmos? Que pretendemos nós com essa mistificação? Julgo muito importante o problema, pois, quanto mais enganamos a nós mesmos, tanto mais cresce a força da ilusão, a qual nos transmite certa vitalidade, certa energia, certa capacidade, que nos leva a impor aos outros a nossa própria ilusão. Assim, gradualmente, não só estou impondo uma ilusão a mim mesmo, mas também aos outros. É um processo "interatuante" de automistificação. Estamos conscientes desse processo, nós que nos julgamos muito capazes de pensar com lucidez, determinada e diretamente? Estamos conscientes de que, nesse processo de pensar, há automistificação? 

O pensamento, em si, não é um processo de busca, uma procura de justificação, procura de segurança, de automistificação, um desejo de ser tido em boa conta, um desejo de posição, de prestígio e poder? Esse desejo de ser — política, religiosa ou socialmente, — não é ele próprio a causa da automistificação? No momento em que desejo algo diferente da pura materialidade, não produzo, não dou origem a um estado que aceito facilmente? 

[...] Aquele que busca está sempre impondo a si mesmo aquela ilusão; ninguém a pode lhe impor; é ele próprio que a impõe. Criamos a ilusão e depois nos tornamos seus escravos. Assim, o fator fundamental da automistificação é esse desejo constante de ser alguma coisa, neste mundo ou no outro. Sabemos qual é o resultado do desejo de ser alguma coisa neste mundo; esse resultado é a confusão extrema, em que todos competem com todos, todos se autodestroem, em nome da paz; conhecemos o jogo que estamos fazendo com os outros, o qual é uma forma extraordinária de automistificação. De igual maneira, desejamos a segurança no outro mundo. 

Vemos que começamos a enganar a nós mesmos, no momento em que existe esse impulso para ser, para vir-a-ser, conseguir. É muito difícil a mente ficar livre desse impulso. Esse é um dos problemas básicos da nossa vida. É possível viver neste mundo e não ser nada? Porque só assim podemos estar livres de todas as ilusões, só assim a mente não fica procurando um resultado, uma resposta satisfatória, uma forma de justificação, a segurança, numa dada forma, numa dada relação. Só se realiza esse estado quando a mente reconhece as possibilidades e as sutilezas da ilusão, e por conseguinte, com compreensão abandona todas as formas de justificação, de segurança — o que significa que a mente é então capaz de ser, completamente, "nada". É possível isso?

Por certo, enquanto vivermos a enganar a nós mesmos, de alguma forma, não poderá existir o amor. Enquanto a mente for capaz de criar e impor a si mesma uma ilusão, ela terá, inevitavelmente, de separar-se da compreensão coletiva ou integrada. Essa é uma das nossas dificuldades; não sabemos como operar; o que sabemos é só trabalhar em conjunto visando a um fim que nós mesmos criamos. Ora, só pode haver cooperação quando vocês e eu não temos nenhum alvo comum, criado pelo pensamento.[...] O que importa é compreender que a cooperação só é possível quando vocês e eu não desejamos ser coisa alguma. Quando vocês e eu queremos ser alguma coisa, torna-se necessário a crença e tudo o mais; torna-se necessária uma utopia, de nós mesmos projetada. Mas se vocês e eu estamos criando, anonimamente, se automistificação de espécie alguma, as barreiras de crença e de saber, sem o desejo de estar em segurança, existe a verdadeira cooperação. 

[...] A crença não produz a cooperação; ao contrário, a crença divide. Vemos um partido político contra o outro, cada um deles crendo num determinado método de atender aos problemas econômicos e, consequentemente, todos em guerra entre si. Não estão decididos, por exemplo, a solucionar o problema da fome. Interessam-se pelas teorias que irão resolver aquele problema. Não lhes interessa a realidade do problema, mas, sim, apenas o método pelo qual se resolverá o problema. Por isso, tem de haver luta entre os dois, porque o que lhes interessa é a ideia e não o problema. De modo idêntico, os indivíduos religiosos estão uns contra os outros, embora, verbalmente, proclamem que têm uma só vida, um só Deus; vocês sabem tudo isso. Entretanto, no íntimo, as suas crenças, as suas opiniões, as suas experiências os estão destruindo e mantendo separados. 

[...] Nossa dificuldade, pois é que cada um de nós está de tal modo identificado com uma determinada crença, com uma determinada forma ou método de promover a felicidade, o ajustamento econômico, que nossa mente está tomada por essa coisa e nos é impossível entrar mais profundamente no problema; por esse motivo, desejamos permanecer à parte, individualmente, com nossas peculiares maneiras de proceder, nossas crenças e experiências. Enquanto não dissolvermos e compreendermos essas coisas, não só no nível superficial, mas no nível mais profundo, não pode haver paz no mundo. 

[...] A verdade não é coisa que se possa ganhar. O amor não pode vir àqueles que têm o desejo de segurar-se a ele ou que desejam com ele se identificar. Essas coisas vêm, por certo, quando a mente não procura, quando a mente está totalmente tranquila, quando a mente já não está criando movimentos e crenças em que possa apoiar-se ou de que lhe advenha uma certa força — o que constitui um indício de automistificação. Só quando a mente compreende, no seu todo, o processo do desejo, pode estar tranquila. Só quando a mente não está em movimento, para ser ou para não ser, só então há a possibilidade de um estado em que não é possível ilusão de espécie alguma. 

Krishnamurti em, Quando o Pensamento Cessa





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