Como podemos libertar-nos imediatamente do medo? - Parte 1
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Como podemos libertar-nos imediatamente do medo? - Parte 1


A menos que um homem esteja plenamente satisfeito comas coisas como são ou estão — satisfeito consigo mesmo, com a situação mundial e com a geral aflição e confusão humana — a menos que esteja satisfeito com tudo isso, tem de perguntar a si próprio se o ente humano tem alguma possibilidade de mudar completamente, de realizar em si mesmo uma transformação graças à qual sua mente e todo o seu ser se tornem totalmente novos, inocentes, cheios de vigor e vitalidade. É necessário fazermos a nós mesmos esta pergunta, sem entrarmos em conflito com o mundo nem com nós mesmos, porque estar em conflito interior é pouco produtivo. O que nos dá compreensão, profundeza é fazermos a nós mesmos a interrogação correta; e fazer uma pergunta é bastante difícil, porque, em geral, quando a fazemos, desejamos uma resposta satisfatória, agradável, e por essa razão as nossas perguntas produzem invariavelmente um estado estático, no qual a mente não pode funcionar em plena liberdade. 

Devemos, pois, interrogar-nos sobre se o ente humano tem possibilidade de mudar, não apenas superficialmente, porém, também profundamente, porque superficialmente estamos sempre mudando. Exteriormente, estamos sendo influenciados por novas invenções, pelo computador, pela automação, pela "explosão demográfica" e pela necessidade de bem-estar econômico, de um modo de vida satisfatório. Essas influências, com efeito, produzem certas alterações superficiais. Mas, que acontece quando, ultrapassando essa esfera, percebemos como é fácil sermos influenciados? Pois, de fato, somos influenciados pelo clima, pela alimentação, pelas roupas que usamos, pela sociedade, pela cultura ou civilização em que vivemos; essas coisas superficiais influem em nosso caráter, nossa perspectiva, nossos pensamentos. Mas, se procurarmos transcendê-las e — sem nos refugiarmos em mosteiros, no isolamento, nos dogmas, crenças e ritos que oferecem as igrejas e várias religiões — perguntarmos a nós se é possível operarmos em nosso interior uma mudança radical, talvez então possamos examinar juntos esta questão e descobrir, individualmente, o inteiro conteúdo e significado da palavra "mudança", e se de fato há possibilidade de mudança radical.

O mero descontentamento ocasiona revolta contra a sociedade. Revolta é reação; e toda ação, toda impugnação profunda, fundamental, se originária de reação, só pode produzir uma nova série de reações e nunca uma compreensão total. É necessário, pois, prestarmos bastante atenção ao nosso descontentamento. Porque a maioria de nós vive descontentes, é bem fácil satisfazer-nos; e essa satisfação é também uma reação. Assim, vamos "rolando" de satisfação em satisfação, pensando que isso é mudança.

(...) Mas, é bem provável que a maioria não desejamos ardentemente uma tal revolução, porquanto estamos satisfeitos com as coisas como são; achamos preferível colocar alguns remendos em nossas relações, cobrir as coisas de maneira que não tenhamos maiores tribulações, ansiedades, disputas; e buscamos também refúgio em nossas crenças. E assim é que, em geral, não desejamos nenhuma revolução fundamental em nós mesmos. Mas, devo dizer que  necessitamos dessa revolução — revolução que não seja reação, uma transformação não idêntica a uma transação em que são previamente calculados todos os riscos.

Tecnologicamente, o mundo está fazendo progressos fantásticos; estão-se verificando extraordinárias mudanças, de incalculável alcance. Uma nova sociedade poderá surgir como resultado delas, mas, como entes humanos, continuaremos mais ou menos os mesmos, ainda que um pouco mais requintados, um pouco mais habilidosos, um pouco mais ajustados; mas não teremos resolvido nossos sofrimentos, e nunca terá fim nossa solidão, nosso medo, nossa incompreensão do ente humano. Em geral, temos propensão a escolher o caminho mais fácil, a satisfazer-nos facilmente e, por isso, nunca se nos apresenta a questão relativa à possibilidade de mudança fundamental.

Agora, que a estou propondo-vos, ou ela se vos torna uma questão pessoal e, portanto, uma questão íntima, de vital importância, ou meramente a aceitais como coisa exterior a vós. Quando sentis fome, ninguém vos precisa dizer. Sabeis, por vós mesmos, que estais com fome. De modo idêntico, quando vos inquiris se é possível operar aquela transformação radical, esta pergunta é vossa, e não minha. Torna-se o vosso problema, e não um problema imposto por outrem. Tratando-se, pois, de vosso problema pessoal, humano, podeis considerá-lo de maneira bem diferente da maneira como considerais uma questão proposta por outrem.

Por ceto, toda mudança exige ordem. Vem-nos atualmente num estado de desordem, e para sair da desordem necessita-se de ordem: ordem social, ordem interior, e ordem em nossos valores, nossa perspectiva das coisas. Dessa forma, mudar, no sentido em que estamos empregando a palavra, significa estar livre para estabelecer a ordem. Mas a sociedade não deseja essa liberdade, porque acha que a liberdade supõe desordem. Por isso existe a condição, por ela imposta ao indivíduo humano, de não fugir da estrutura psicológica da sociedade. A sociedade teme que a liberdade acarrete desordem, porque está satisfeita em viver nessa desordem a que chama "ordem"; por conseguinte, é incapaz dessa experiência, dessa revolução total. Só o indivíduo humano é capaz de experimentar e realizar, por seus próprios meios, a revolução total, que é a ordem.

Assim, quando emprego a palavra "mudança", entendo: "mudança da desordem para a ordem"; porque, como entes humanos, não nos achamos em ordem. Estamos em conflito, somos dignos de dó, confusos, ambiciosos, ávidos, invejosos — tal é a estrutura do ser humano.Temos medo, pavor, de tantas coisas; e alterar inteiramente essa estrutura de medo, significa promover a ordem. A ordem, portanto, não é produto de revolta, porque a revolta contra a sociedade é uma reação que só produzirá uma série de ações dentro dos limites da estrutura social, e, como acontece com o comunismo ou qualquer outra espécie de reação, volta-se, com o tempo, ao ponto de partida.

Refiro-me àquela mudança que não é reação — reação contra a sociedade, contra a ordem convencional, porém, antes, um "processo" de compreensão da estrutura da desordem; essa compreensão cria ordem, que é uma revolução radical.

(...) Mudança, dizemos, exige tempo. Sou isto, e para operar uma mudança em mim próprio, ou seja para vir a tornar-me aquilo, é necessário tempo, não é assim? Isto é muito simples. Eu sou o que sou, com todas as minhas aflições, minhas ansiedades, temores, desesperos, esperanças, e desejo mudar, "colocar tudo em ordem", e isso exige tempo. Existe o medo e, para nos livrarmos dele, achamos necessário o tempo. Sinto medo, e para dominá-lo, ou compreendê-lo, ou livrar-me dele, necessito do tempo. Isto é perfeitamente óbvio; pelo menos, é o que pensamos.

Ora, que é o tempo? Vede, por favor, que não o estamos considerando filosoficamente, como uma ideia, uma noção necessária; mas, cada um pode observar e compreender por si próprio essa coisa.

Consideremos o medo. Temos medo de tantas coisas, além do medo fundamental da morte. Mas há também o medo da opinião pública, medo de perder o emprego, medo de ser dominado — um complexo conjunto de temores. Pode-se ver, pode-se perceber que o medo engendra todas as maneiras possíveis de fugir, e que é gerador de escuridão, da incerteza, da ansiedade. E, assim, a mente, tornando-se confusa, incerta, trata de fugir, dada a sua incapacidade para resolver esta questão do medo. Recorre aos dogmas, à bebida, ao sexo — a numerosos e diferentes modos de fuga.

Ora, para uma pessoa ficar totalmente livre do medo, em todos os níveis de sua consciência e não apenas superficialmente, porém completamente, terá de compreender a natureza, a estrutura, o significado do medo; e esse processo de compreensão, pensamos, requer tempo. Escutai isso, por favor! Digo: "Tenho medo, e quero descobrir a causa do medo." Trato, pois, de investigar a causa do medo". Trato, pois, de investigar a causa do temor, de analisá-lo, ou consulto um analista, ou recorro a qualquer outro meio de fuga ao medo. Tudo isso exige tempo, não? Digo: "Não estou livre do temor, mas dele me livrarei com o tempo".

O tempo, pois, significa um movimento, uma mudança do que é para o que deveria ser. Tenho medo, mas um dia estarei livre dele; por conseguinte, o tempo é necessário a nos livrarmos do medo — é, pelo menos, o que pensamos. A mudança do que é para o que deveria ser exige tempo. O tempo, por conseguinte, implica o esforço que se faz, nesse intervalo, entre o que é e o que deveria ser. Não gosto do medo, e vou me esforçar para compreendê-lo, analisá-lo, dissecá-lo, ou para descobrir a causa, ou dele fugir inteiramente. Tudo isso é esforço; e ao esforço já estais habituados. Vemo-nos sempre num conflito entre o que é e o que deveria ser. O que eu deveria ser é uma ideia, uma coisa fictícia, não é o que sou, o fato. O que sou só pode ser modificado quando compreendo a desordem que o tempo cria. Entendeis? Quando tenho medo, isto é um fato: estou com medo. Se introduzo o elemento tempo, dou ao que é uma continuidade que gera desordem. Está claro?

Vede, estamos condicionados para pensar que o tempo é necessário, que é necessário um "processo" gradual para podermos operar qualquer mudança em nós mesmos. Por exemplo, todos desejamos preencher-nos de diferentes maneiras — como artistas... de qualquer uma de dez maneiras diferentes; queremos preencher-nos, e, nesse preenchimento, que implica tempo, encontra-se o sofrimento, a ansiedade, o medo. Desejo ser aquilo, mas não sou aquilo.

A questão, pois, é esta: É possível o ente humano mudar sem nenhuma interferência do tempo? libertar-se imediata e totalmente do temor? Como de pronto não posso livrar-me do medo, preciso do elemento duração, e isso significa que ele continuará a existente; e onde há continuidade do medo, aí há desordem.

Assim, posso libertar-me do medo, de maneira completa, neste mesmo instante? Se permito ao medo subsistir, estarei sempre a criar desordem; vê-se, por conseguinte, que o tempo é um elemento de desordem, e não um meio de nos libertarmos definitivamente do medo. Não há, pois, nenhum processo gradual de libertação do temor, assim como não há nenhum processo gradual de libertação do veneno do nacionalismo. Se tendes o nacionalismo, mas dizeis que com o tempo teremos a fraternidade humana, no intervalo haverá guerras, haverá ódios, haverá sofrimento, existirá a horrível divisão entre os homens; o tempo, por conseguinte, estará criando desordem.

Assim, se nos servimos do tempo como meio de promover a transformação radical, estamos promovendo a desordem e não a ordem. E, se compreendermos isso, não apenas verbalmente, se vemos, aí, a verdade, o fato, esse próprio descobrimento é então, em si mesmo, uma revolução; pois estamos habituados a contar com o tempo.

(...) Mas, por que razão nos servimos do tempo, no sentido em que o estamos entendendo? Por que admitimos a continuidade do medo? Por que? Não respondais, por favor; e, também, não é esta uma pergunta retórica. Provavelmente, nunca perguntamos a nós mesmos por que permitimos a existência do medo, por um só dia, por um só minuto sequer, já que sabemos quanto dano, quanto ódio, quantas mentiras, quanta hipocrisia, quanta confusão e conflito ele cria. Provavelmente o aceitamos porque com ele já nos acostumamos, e porque não conhecemos outra maneira de nos libertarmos dele, a não ser o "processo gradativo". Pelo menos, julgamos que esse processo gradual seja um meio de nos livrarmos do medo. Mas, pode-se agora perceber que, havendo duração do medo, nesse período há ódio, confusão, esforço, sofrimento. Aceitamo-lo, tão-somente, porque a ele estamos condicionados. Assim, perguntamos a nós mesmos: É possível, sem se permitir a interferência do tempo, olhar o pensamento, olhar o medo, e compreender-lhe a natureza — não seus sintomas, suas diferentes manifestações ou suas causas, porém o medo em si?

Ora, que é o medo? Muito importa compreender isso, porque em geral tetemos; não apenas num nível superficial de nossa consciência, mas, profundamente, temos medo. Há várias formas de medo, e não temos a necessidade de examinarmos todas; mas, todo temor é produto das relações. O medo tem causa, não vem à existência espontaneamente e pensamos que, compreendendo-lhe a causa, ficaremos livre dele; mas isso nunca será possível. Sabeis por que tememos. Provavelmente já refletistes a respeito do medo, o considerastes bem e conheceis a causa que o faz surgir; mas, embora conheçais a causa, não estais livres do sintoma. Vê-se, pois, que o mero descobrir da causa não liberta necessariamente do medo; e tampouco a análise nos liberta do temor. A análise, por sua vez, requer tempo.

Então, como de pronto podemos libertar-nos do medo? Esta é, com efeito, uma pergunta tremenda. E só podemos fazê-la a nós mesmos quando compreendemos o que está implicado no processo gradativo do tempo.

Como podemos libertar-nos imediatamente do medo? Quando emprego a palavra "como", não quero sugerir uma investigação a fim de achar um processo; porque processo, método, sistema, supõe o tempo e, por conseguinte, desordem. Mas, é possível libertar-nos do medo imediatamente?

(continua)

Jiddu Krishnamurti — O descobrimento do amor






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