No direto experimentar do todo, está a libertação final do homem
autoconhecimento

No direto experimentar do todo, está a libertação final do homem


Talvez, se considerarmos o problema do sofrimento e da dor, possamos compreender diretamente, por nós mesmos, o inteiro problema da mente condicionada. Não vamos avaliar simplesmente as formas diversas do sofrimento — físico, psicológico ou psicossomático — mas o problema do sofrimento, o qual, sem dúvida nenhuma, está ligado à questão da mente condicionada, da mente que é incapaz de compreender o todo, em vez de ficarmos especulando a seu respeito e criando “projeções” verbais — se pudermos compreender o todo, talvez nos seja dada a possibilidade de vencermos o sofrimento, de ficarmos livre dele.

Em geral, seguimos uma linha de aproximação através da parte para o todo, e esperamos compreender o todo por meio da parte. Isto é, por meio da parte — que é o “eu” — esperamos tornar-nos capazes de compreender nosso sofrimento, nossas relações com o mundo, nossa atitude, nossa dor, nossa frustração; por meio da parte, do “eu”, queremos compreender todo este complexo problema do viver. Afinal, o “eu”, a mente, é o único instrumento que possuímos: entretanto, essa mente está tão condicionada, tão especializada, que só é capaz de pensar dentro da sua esfera de valores condicionados, pontos de vista condicionados, ações condicionadas. E com a compreensão da parte, do “eu” (isto é, a compreensão de que é dotado o “eu”, a parte) esperamos compreender o todo. O todo não é uma teoria, uma especulação; não é o que diz este ou aquele instrutor; não é uma ideia relativa a um estado, a Deus, a um modo de ser. Mas o direto experimentar do todo, não especulativamente mas de maneira real, pode tornar-se a libertação final do homem, do seu sofrimento.

Porque nós — vocês e eu — estamos condicionados, totalmente condicionados pelo nosso pensar, é incapaz, a mente, de compreender “o todo”, a respeito do qual nada sabemos. Todo pensar é condicionado; o pensamento, em qualquer nível que o coloquemos, é sempre condicionado. Vocês não gosta, de admitir esse fato. Acreditam existir dentro de vocês, uma parte não condicionada, superior a todas as influências “condicionadoras” — influências climáticas, religiosas, sociais; a educação; a memória; a experiência. Vocês pensam que essa coisa não está sujeita a nenhum condicionamento e que ela não é o “eu”. Mas, quando vocês pensam nesse estado que dizem “não condicionado”, o fato, justamente de o pensarem, cria condicionamento; além disso, essa coisa que se acha além de toda possibilidade de condicionamento, é todavia condicionada se está em relação com o pensamento. Isso não é mera especulação ou argumento sutil.

Se puderem examinar esta questão da mente condicionada, verão não existir nenhuma parte do pensamento que não esteja controlada, condicionada. Talvez seja esse condicionamento a verdadeira fonte de todo sofrimento. Se pudermos examinar esta questão, fora do nível verbal (vocês sabem o que entendo por “nível verbal”: o mero refletir sobre a questão, o mero especular sobre se a mente pode tornar-se “descondicionada”) se pudermos examinar e compreender esta questão, então não há dúvida de que com essa compreensão descobriremos muitas e muitas coisas.

Em primeiro lugar, se estivermos vigilantes, por pouco que seja, se observarmos o estado da nossa mente, reconheceremos que o pensamento é condicionado, que não há pensar independente de condicionamento. Se admitirmos e compreendermos esse fato, haverá então diferentes maneiras de tratar o problema. Isto é, ao reconhecer que estou condicionado e que não há nenhuma possibilidade de “descondicionar” a minha mente, tento modificar o condicionamento, a condição, deixando de crer em certas ideias ou ideais; nesse processo “processo”, porém, eu me condiciono, já que trato de adotar outras ideias ou ideais. Temos, pois, um “progresso” no condicionamento, e é isso o que interessa para a maioria de nós. Queremos progredir, social, econômica, religiosamente, ou em nossas relações mútuas, vivendo sempre condicionados ou “mais bem condicionados”. Admitimos, desse modo, que o sofrimento nunca pode ter fim e que só é possível modificá-lo ou recorrer às várias maneiras de fuga ao sofrimento.

Entretanto, quando sabemos, quando temos perfeita consciência de que nosso pensamento está inteiramente condicionado e que não há uma única parte dele “não condicionada”, temos então a possibilidade de descobrir se existe alguma coisa além da mente, além das “projeções” e fabricações da mente. Acho importantíssimo este ponto; se pudermos examiná-lo verdadeiramente, experimentá-lo efetivamente, enquanto estamos falando, encontraremos então uma solução real para todos os nosso problemas, o principal dos quais é o sofrimento, a dor — não só a dor física, mas as manifestações mais complicadas da dor psicológica: as lutas e conflitos interiores, as frustrações, o desespero, a esperança.

O que importa, por conseguinte, é que se descubra, que se experimente de fato a totalidade, o todo não condicionado (se é que existe um estado não condicionado) não controlável pela mente, não “projetado” por ela. Todas as nossas soluções — sociais, econômicas ou religiosas — são procuradas por uma mente condicionada e, por conseguinte, qualquer solução há de ser “progressivamente condicionada”, nunca independente de condicionamento. Isto é, em vez de venerarmos a palavra “Deus”, veneramos, agora, a palavra “estado” e, assim, usando-a, acreditamos ter feito um progresso espantoso. Ou, se não gostamos da palavra “Estado”, adotamos a palavra “Ciência” ou as palavras “Materialismo Dialético”, como se isso nos fosse resolver todos os problemas. Isto é, estamos sempre a abordar a solução de nossos problemas com um pensamento condicionado.

O pensamento é sempre condicionado; não há pensamento não-condicionado. Como disse, pode-se conceber o “Eu Supremo”, no nível mais elevado, mais sublime; ainda assim, ele é condicionado. Se, reconhecendo este fato, não teoricamente mas realmente, observamos as operações da mente, veremos que a mente está sempre pensando de acordo com seu fundo próprio, visto não haver pensamento sem memória, experiência sem memória, sem o processo de reconhecimento e , por conseguinte, a respectiva contradição (o respectivo “oposto”). Tal é o estado que conhecemos, e desse ponto de vista é que queremos considerar os nossos problemas! Não me parece, porém, possam eles ser resolvidos de tal maneira, isto é, pelo mero processo de os considerarmos de um determinado ponto de vista. Um problema só pode ser resolvido quando compreendemos o todo, e essa compreensão não é possível enquanto o pensamento, a ideia, estiver em funcionamento. Tenham a bondade de refletir sobre isso — não depois de irem para casa, mas aqui mesmo, enquanto falo.

Infelizmente, os mais de nós costumamos traduzir, interpretar tudo o que ouvimos. Compreendem? Vocês dizem que é assim que está nos Upanishads, que é isso que significa tal frase do Bhagavad-Gita. Desse modo, estão interpretando e não compreendendo; por consequência, o conhecimento de vocês se transforma num empecilho para a experiência direta. Urge, por conseguinte, suprimirmos o conhecimento, eliminarmos todo o conhecimento (não me refiro ao conhecimento relativo à construção de, por exemplo, o qual é essencial; não estou pregando o retorno ao estado primitivo, o que seria absurdo) urge eliminarmos o conhecimento comparativo, o conhecimento que interpreta o que outros dizem. Essa interpretação, essa tradução é uma forma de satisfação do “eu”, do seu desejo de estar sempre seguro, sempre certo; por causa dele a mente está sempre a dizer: “é o que diz o Livro” — sustando, assim, com essa afirmação, com essa tradução, o experimentar, o estudar.

A mente, sem dúvida, deve achar-se num estado de completa incerteza, quer dizer, num estado de completa inação, um estado de desconhecimento, em que a mente jamais diz “eu sei”, “eu tenho experiência”, “é isso mesmo!” A mente que diz “eu sei!” é incapaz de resolver qualquer problema complexo do viver, pois a vida está sempre em movimento, a vida não é estacionária. Vocês podem traduzir a vida, interpreta-la como comunista, como socialista, como materialista dialético, etc.; podem traduzi-la e prende-la assim a palavras explanatórias; a Realidade, porém, é uma coisa viva, e essa coisa viva não é acessível através da parte, que é o pensamento. Percebam isso, por favor, e a Realidade se lhes revelará. Se estão verdadeiramente à escuta da Realidade, ela fará algo extraordinário: quebrará de golpe o condicionamento da mente, e esta se tornará tão desperta, tão vigilante, que o “todo” não mais se lhe afigurará uma coisa miraculosa, transcendental. Esse todo, essa totalidade pode ser experimentada apenas depois de compreendido todo o processo do condicionamento e de reconhecermos positivamente que por meio de um pensamento condicionado não há solução para os nossos problemas. Quando vocês tiverem uma experiência dessa natureza, quando tiverem a percepção, a experiência do “todo”, ocorrerá então uma extraordinária revolução interior — a única verdadeira; porque “revolução econômica” é mero pensamento progressivo, ação condicionada.

Devemos, pois, abeira-nos de todos os nossos problemas com a compreensão de que nosso pensamento está condicionado. Vocês podem fazer o que quiserem, acumular conhecimentos psicológicos e ler todos os livros sagrados do mundo: se com esse conhecimento desejarem resolver o problema da vida, que é movimento constante, nunca estática, não encontrarão jamais a solução. Entretanto, desde que haja o experimentar do todo com a compreensão do todo (em que se reconhece o estado de condicionamento da mente) então, com essa compreensão do todo, qualquer problema pode ser resolvido, não por meio de um condicionamento progressivo, mas em virtude do completo desaparecimento do problema.

Como disse ontem, há neste mundo de pretenso progresso cada vez mais sofrimento, mais destruição, desgraça, sufocação, frustração. Vocês podem não estar cônscios disso, já que se habituaram ao moer da rotina diária. Se estivessem, porém, por pouco que fosse, conscientes, veriam ser este o processo da existência: frustração constante, sem qualquer fim; e quanto mais procuram preenchimento, mais encontrarão frustração. Da satisfação do “eu”, do desejo de preenchimento, nascem novos desejos, novos sofrimentos. Visto que a fonte das suas ações, o incentivo de duas ações é sempre o preenchimento do “eu” — preenchimento no filho, na família, na nação, ou na sociedade — esse desejo de preenchimento e a ação dele resultante acarretam frustração. Na frustração há sempre desespero. Por isso a mente busca uma senda promissora, no Estado, em Deus, ou noutra coisa qualquer, por meio da qual possa preencher-se; e dessa forma, nos vemos de novo a nos debater na mesma cadeia sem fim.

Nessas condições, se se deseja uma ação não inspirada por determinado sistema, determinada teoria, se se deseja ação de conjunto, por parte de vocês e de mim, ação não inspirada pelo desejo de preenchimento, faz-se necessária a compreensão de como está condicionada a nossa mente. É essencial a libertação da mente do seu condicionamento, porque então há cooperação, ação de todos nós e não ação particular suas ou minha. Ai se encontra a Verdade. Requer tudo isso, naturalmente, apurada observação. A Verdade não se pode adquirir nos livros. Tal é a verdadeira meditação, que não é meditação de pensamentos controlados, meditação limitadora do pensamento, e, sim, a meditação do amplo percebimento. O amplo percebimento é o percebimento de todos os movimentos do pensar; é se estar cônscio de como a mente opera, de cada reação, cada experiência, cada transgressão contra a vida; cônscio de como a mente funciona a cada momento; cônscio de cada reação, sem o desejo de modificá-la, controlá-la, orientá-la, discipliná-la. Nesse estado de amplo percebimento a mente se torna tranquila num grau extraordinário; não mais lhe interessa a plenitude, o preenchimento do “eu”, o ser ou não ser alguma coisa. Esse estado de tranquilidade não é um estado forçado, disciplinado. É o “estado de ser” — o qual nada tem em comum com a mente; por essa razão a mente se apresenta tranquila, serena; e nessa tranquilidade, aquilo que é “o todo” é compreendido.

Krishnamurti – 2ª Conferência em Poona – Índia – 25 e janeiro de 1953

Do livro: Autoconhecimento — Base da Sabedoria





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