Pode a análise resolver um profundo problema psicológico?
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Pode a análise resolver um profundo problema psicológico?


Seria, talvez proveitoso, examinarmos nesta tarde o problema e o pleno significado do sofrimento e da aflição. Creio que antes de entrarmos nesta questão, devemos considerar o que se entende pela palavra "compreensão"; porque, se formos capazes de compreender o profundo significado do sofrimento, talvez possamos, então, libertar a mente, de todo, daquelas reações a que damos o nome de sofrimento, que é um sentimento. Releva, portanto, verificar o que se entende por "compreensão". 

É a compreensão raciocínio ou dedução? É a compreensão mero produto de um processo intelectual ou verbal, ou é coisa inteiramente diferente da dedução, da apreensão intelectual? Podemos por meio de cuidadosa análise resolver um problema psicológico profundo? Compreensão não é apreensão, ou reconhecimento, ou percebimento do problema na sua inteireza? A mente só é capaz de raciocinar, de reunir várias coisas, deduzir, analisar, comparar, ter conhecimento, mas pode a mente, que é um processo de pensamento, em que o tempo está compreendido, que é memória e que é acumulação de crenças, de conhecimento, pode a mente, em tais condições, compreender o inteiro significado de um problema? Em outras palavras, pode o processo do tempo que é necessariamente um processo da mente, um processo de pensar, resolver um problema? É especialmente importante, para a maioria de nós, averiguarmos isso. Para os mais de nós, o instrumento que mais diligentemente temos cultivado é a mente, o intelecto, com o qual nos abeiramos de um problema, na esperança de resolvê-lo. 

Perguntamos a nós mesmos: "pode a mente, que é processo de tempo, resultado de ontem, hoje e amanhã, ser instrumento de compreensão? Pode a mente perceber o problema na sua inteireza? Ocorre a compreensão através do tempo, ou ela nada tem que ver com o tempo? Se do raciocínio, da dedução, da análise, que é processo de tempo, dissociarmos o processo da compreensão, talvez estamos aptos para compreender, na sua inteireza, e num relance, um problema qualquer. Isso é importantíssimo, não acham? Se desejamos compreender o pleno significado do sofrimento, precisamos eliminar inteiramente o processo do tempo. O tempo não dissolverá o processo de formação do sofrimento, nem nos ajudará a dissolver o sofrimento. Só pode nos ajudar a esquecê-lo, a evitá-lo, a adiá-lo. Mas a sensação de angústia permanece. 

[...] Em outras palavras, podemos perceber este problema do sofrimento, na sua inteireza? Só quando vemos uma coisa completamente, totalmente, integralmente, existe a possibilidade de sua dissolução, e não de outra maneira. A possibilidade da dissolução não reside no "processo" a que chamamos mente, raciocínio, pensamento. Eis porque digo que é necessário compreendermos a palavra "compreensão"; precisamos apreender o significado dessa palavra, pois creio que só assim teremos a possibilidade de atingir a raiz do problema do sofrimento. 

Se desejo compreender alguma coisa, devo, em primeiro lugar, amá-la. Não é verdade? Devo ter comunhão com ela. Não devo ter barreira alguma. Não deve haver resistência. Não deve haver apreensão, medo, que se traduzem em condenação, justificação, ou num processo de identificação.[...] Para se compreender algo, é necessário o amor. Se desejo lhes compreender, devo amá-los, não devo ter preconceito algum.[...] Vocês dizem "Não tenho preconceito", — mas todos nós somos um feixe de preconceitos, de antagonismos, e sempre colocamos cortinas verbais, para nossa proteção. Afastemos essa cortina e investiguemos a significação do sofrimento. Creio que só assim seremos capazes de resolver esse problema, enormemente complexo, do sofrimento. 

Vemos que a compreensão requer comunhão; a compreensão requer uma mente capaz de perceber o desconhecido, o inominável; porque, a mente que deseja compreender alguma coisa, deve estar, ela própria, completamente tranquila — o que não é um estado de reconhecimento. Se queremos que haja compreensão, tem de haver comunhão, que é amor, não num determinado nível, mas em todos os níveis. Quando amamos alguém, isso é um processo de qualidade atemporal. Vocês não podem dar-lhe nenhum nome. Não existe barreira de temor, de recompensa, de condenação; não existe, tampouco, identificação com outra pessoa — o que vem a ser um processo mental. Se pudermos realmente perceber a significação daquela palavra, poderemos entrar, então nos problemas do sofrimento. Se existe aquele sentimento de comunhão, de verdadeiro amor ao problema do que chamamos sofrimento, estaremos aptos a compreendê-lo integralmente; de outro modo, estaremos apenas fugindo dele, a buscar por vários meios de fuga. Assim, se é possível, nos coloquemos nesta posição, só assim chegaremos a compreender aquilo que se chama sofrimento. Não deve existir barreira mental, nem preconceito, nem condenação, nem justificação pela tradição. Então estaremos aptos — vocês e eu — como indivíduos, a nos abeirarmos dessa coisa que nos consome, à maioria de nós: o sofrimento. 

A energia em movimento, em ação, é desejo. Não é verdade? Esse desejo, quando contrariado, é dor, quando satisfeito, é prazer. Para a maioria de nós, a ação é um processo de satisfação do desejo. "Eu quero" e "Eu não quero" governam a nossa atitude. Aquela energia, que é canalizada, identificada como "eu", através do desejo, está sempre em busca de satisfação. O desejo, no seu movimento, na sua ação, é um processo de satisfação ou de negação (recusa). Há várias formas de satisfação, e também várias formas de negação, e cada uma delas aprisiona, cada uma delas produz diferentes níveis de sofrimento. Quando há sofrimento, há várias formas de resolvê-lo, várias formas e evitá-lo. 

Conhecemos o sofrimento em vários níveis diferentes. Não é verdade? O sofrimento físico, a dor física, o sofrimento causado pela morte, o sofrimento que vem quando não há satisfação, o sofrimento resultante de um estado de vazio, o sofrimento causado pela não satisfação da ambição, o sofrimento de não podermos igualar o modelo ou o bom exemplo, o sofrimento do ideal, e, por fim, o sofrimento da identificação. Conhecemos várias formas de sofrimento, em diferentes níveis, psicológicos e fisiológicos; e conhecemos, igualmente, as várias vias de fuga: bebidas, ritos, recitação de palavras, observância da tradição, a expectativa do futuro, de dias melhores, de melhores circunstâncias. Conhecemos todas essas vias de fuga, psicológicas, físicas e materiais. Quanto mais fugimos, tanto maiores e tanto mais complexos se tornam os problemas. Quando considerarmos o problema, toda a nossa estrutura é uma série de fugas. Vocês afastam o sofrimento com explicações; a explicação tem para vocês maior importância do que a profundeza, o significado, a vitalidade do sofrimento. Explicações, afinal de contas, não passam de meras palavras, por mais sutis e razoável que sejam. Nos satisfazemos com palavras — o que é outra forma de fuga. 

Levamos todo o nosso processo mental, ao nos abeirarmos de um problema, tal como o sofrimento. Temos a nossa base, constituída de uma série de figas, justificações e condenações. Não há, por isso, comunhão direta com o problema do sofrimento. Então vocês são uma entidade diferente, a considerar o sofrimento. Vocês estão tentando resolver, investigar, analisar o problema do sofrimento. São uma entidade diferente. E há outra coisa que sofre, nesse processo de análise, condenação e justificação. 

O caso não é que são uma entidade que se acha em sofrimento ou que sofre. O sofrimento não é diferente do pensador. A entidade que pensa, que sente, que deseja, ela própria é o sofrimento. Não é correto julgar que o pensante é diferente do sofrimento e que vai dissolver o sofrimento. O próprio processo do desejo, que é energia em ação, é um processo de frustração, sofrimento, realização, dor. Vocês não são diferente do sofrimento. Eis o verdadeiro quadro. Podemos ampliá-lo mais, verbalmente, pintá-lo mais minuciosamente; mas o problema é este, não acham? Vocês não são diferentes do sofrimento; logo, não podem dissolver o sofrimento. Não podem se analisar como uma entidade separada, que contempla o sofrimento; tão pouco podem apelar para o analista, para que ele o dissolva; nem podem fugir, ou afastar o sofrimento direto, despendendo energias em atividades sociais. 

A maior parte dos nossos esforços, a maior parte de nossas intenções, a busca que empreendemos, equivalem a dizer: "Sou diferente do que sinto, e como dissolverei isso?" Trata-se, realmente, de uma questão importante, que não pode ser desprezada nem respondida com astúcia. Precisam encará-la, ainda que se revolte todo o ser de vocês; porque fomos criados para pensar que podemos exercer ação sobre o pensamento. Vocês não são absolutamente uma entidade diferente do pensamento de vocês, do desejo, da ambição, da escada que estão galgando, espiritual ou psicologicamente.  Para compreender este problema é necessário a comunhão com o todo, e vocês não podem comungar com o todo se o estão observando parcialmente, como "vocês" e o "objeto". Ocorre uma compreensão parcial — que absolutamente não é compreensão — quando pensam que são uma entidade separada que examina a coisa que vocês chamam sofrimento.

Vocês, pois, são os criadores do sofrimento; são a entidade que sofre, e não estão separados do sofrimento, da dor. Enquanto houver separação entre vocês e o sofrimento, só haverá compreensão parcial, uma visão parcial da coisa; o que significa, realmente, que precisam abandonar todas as prévias explicações; o que significa se ver frente a frente, não como dois processos separados, mas como um processo uno, como a coisa a que chamam sofrimento. Quando realmente amam, não existe barreira alguma; há então comunhão. O amor não é uma identificação com outra pessoa. Não existe identificação, no amor. Ele é apenas um "estado de ser". 

Vocês podem examinar esse problema do sofrimento, sofrimento, não apenas como reação da compaixão, de uma esperança ou um malogro, mas também aquele sofrimento tão avassalador, tão profundo, que não há descrição verbal que o possa exprimir? Podemos, vocês e eu, estar em comunhão com ele? Não devemos fazer do sofrimento uma virtude, como meio de compreensão, como meio de progresso. 

Na realidade, o que é esse sofrimento? Quando sofrem, com a morte de um filho, há uma qualidade de sofrimento; quando observam crianças pobres e malnutridas, há outra qualidade de sofrimento; quando estão lutando para alcançar o topo da escada e não conseguem bom êxito, essa é uma terceira qualidade de sofrimento; quando não estão realizando o ideal vocês têm sofrimento. O sofrimento, por certo, é um processo de desejo, que sem cessar cresce e se multiplica, sempre em torno do "eu". Posso compreender todo esse processo da energia em movimento, como desejo, e colocar fim ao desejo, e não à energia? O que sabemos é que a energia em ação é desejo — sendo desejo o "eu", o "eu" que progride, o "eu" que realiza, o "eu" que adia. 

Posso compreender todo esse processo do sofrimento e do desejo e, desse modo, acabar com o desejo, com o movimento do "eu", e depois não voltar, mas permanecer naquele estado de energia que é inteligência pura? A esta questão não se pode responder "sim" ou "não". Não é um problema de colegial. Requer uma grande soma de meditação, meditação não no sentido exaltar o pensamento até um determinado nível e aí permanecer, o que seria absurdo. Não estamos tratando aqui da meditação. Como disse, requer-se uma grande soma de discernimento, e vocês não podem ter discernimento, quando há qualquer espécie de desfiguração produzida pelo desejo. 

A energia é inteligência pura; e desde que vocês a compreendam ou a deixem se manifestar, verão que o desejo tem pouquíssima significação. Este é o nosso problema, em sua inteireza, não acham? — como dar forma ao desejo, como moldá-lo sociológica ou espiritualmente. De que maneira se deve moldar o "eu", ou "desejo", para uso coletivo, ou para o individual? Como se consegue isso? 

Enquanto o desejo não for plenamente compreendido, plenamente assimilado, tem de haver sofrimento; porque não podemos ter a razão pura que o dissolverá, a inteligência pura, necessária para tal. A razão não pode dissolver o sofrimento, não pode dissolver o desejo. Por conseguinte, é necessário compreender o problema no seu todo, mas não por dedução, por raciocínio, mas pelo percebimento integral da coisa, o que significa amar verdadeiramente o problema, amar verdadeiramente o sofrimento. Compreendem? Há pessoas que amam o sofrimento; mas seus corações estão vazios; em vez de amarem um ser humano, amam o sofrimento —, o que é um ideal. Não conhecem pessoas que amam a virtude? Amam o sofrimento, porque lhes faz bem amá-lo; sentem uma certa reação de entusiasmo, um certo bem-estar. Não me refiro, absolutamente, a esta espécie de amor. Quando amam, não há identificação, mas, sim, comunhão; há receptividade franca entre a coisa e vocês. Isso é essencial para a compreensão integral do problema. 

Como disse, a compreensão não é um processo de tempo; ela não pertence ao tempo. Não digam "compreenderei amanhã", "irei", "virei", "estarei cada vez mais lúcido". A compreensão nada tem em comum com o tempo ou com o processo do tempo, que é o pensar. Assim, a mente não pode resolver o problema do sofrimento. O que pode então resolvê-lo? Se vocês procuram compreender o problema com a mente, então vocês o justificam, o condenam, ou se identificam com ele. A mente que é capaz de compreender plenamente o problema é a mente que não se acha num estado de agitação; a mente capaz de compreender não está em busca de resultado; não quer encontrar uma solução; ela não diz: "preciso ficar livre do sofrimento, a fim de "experimentar", a fim de ter "mais". Não existe "mais". "Mais" é o sofrimento, que significa o "menos". Assim, se forem capazes de examinar o problema, de maneira completa, não como um "eu" que está olhando, observando, moldando, destruindo, mas como uma mente para a qual observador e coisa observada são a mesma coisa, verão então como vem o amor que não é sensação, a inteligência que não é do tempo e não é processo de pensamento; e só isso pode resolver este imenso e complexo problema do sofrimento. 

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa.




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