Por que sofremos?
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Por que sofremos?


O homem, que já viveu tanto tempo, não conseguiu ainda, com exceção de um ou outro, livrar-se totalmente dessa coisa que chama "sofrimento".

(...) Não importa saber se o sofrimento se acabará ou continuará existente; mas muito importa saber que, a menos que o resolvamos, a menos que fiquemos completa, profunda e definitivamente livres dele, então, todo movimento, todo pensamento, toda ação continuará envolta em suas sombras, em sua escuridão; por conseguinte, nunca haverá um momento de liberdade, de completo bem-estar, equilibrado e racional, uma taça cheia, transbordante, sem o mais leve sopro de sofrimento.

(...) Todos conhecemos o sofrimento. Há o sofrimento da mente que nunca se preencheu; que é pobre, vazia, insensível; que se tornou mecânica, cansada; que vê uma nuvem e não conhece a beleza dessa nuvem; que nunca foi capaz de ser sensível, de sentir, compreender, viver. Há o sofrimento da "não realização", do "não vir-a-ser", do "não ser". O sofrimento da desilusão da vida. O sofrimento causado pela incapacidade de percebimento, por parte da mente acanhada, inepta, ineficiente, limitada, superficial. O sofrimento da mente que se reconhece estúpida, embotada, indolente e que, por maiores esforços que faça, nunca se torna penetrante, lúcida, viva; isso também gera sofrimento.

Há sofrimento em todas as formas que o home pode conceber ou pelas quais já passou. O sofrimento existe, persistente, constante, vigilante — ou oculto nos profundos recessos de nosso coração, jamais explorados, jamais abertos e devassados. Há o sofrimento do inconsciente do homem que viveu séculos e séculos, sem encontrar a solução para essa coisa, para sua agonia, seus desespero, sua ambição. O sofrimento existe. E nunca entramos realmente em contato com ele; sempre o evitamos; sempre tratamos de fugir, de várias maneiras, pelas vias de nossas esperanças, de teorias e ideias verbais, intelectuais, as mais variadas. Nunca entramos diretamente em crise com o sofrimento, enfrentando-o face-a-face, assim como também nunca entramos em crise com o tempo. Temos de levar o tempo a uma "crise", mas nunca nos confrontamos com o problema do tempo em seu aspecto total.

Nunca exploramos essa coisa extraordinária e dolorosa, chamada "sofrimento"; e não podemos explorá-la, se a evitamos. É o que se precisa perceber em primeiro lugar; que não devemos evitá-la. Evitamos o sofrimento por meio de explicações, de palavras, de conclusões e fórmulas, ou da bebida, dos divertimentos, dos deuses, do culto. A mente que deseja de verdade compreender e colocar fim ao sofrimento, deve deter completamente toda espécie de fuga. Esta é uma das nossas maiores dificuldades, porquanto temos todo um sistema de fugas, um complicado sistema de fugas. A própria palavra "sofrimento" é uma fuga do fato real... Para poderdes enfrentar o tempo, compreender essa coisa chamada "sofrimento" — todas as vossas fugas, os deuses, as bebidas, as diversões, o rádio, tudo deve acabar.

Visto que o sofrimento é pensamento, e o pensamento é tempo, deveis compreender o tempo. Há o tempo do relógio — ontem, hoje e amanhã. O sol se põe e o sol nasce — o fenômeno físico. O ônibus sai a uma certa hora, e o trem parte na hora marcada; é esse o tempo do relógio, o tempo cronológico. Mas, existe outro "tempo"? Fazei a vós mesmos esta pergunta: "Há outro tempo, além do tempo cronológico?" Há: o tempo compreendido como duração, separado do tempo cronológico, do tempo do relógio. Há duração, a continuidade da existência — eu fui, eu sou, eu serei. As memórias, as experiências, as diferentes ansiedades, temores, esperanças — tudo isso está na esfera do tempo entendido como "passado". E esse passado, que é psicológico, que é memória, essa carga de ontem, com todas as suas experiências, eu a estou transportando hoje; a memória está transportando hoje, memória essa que está identificada, pelo pensamento, como "Eu". Se não houvesse memória, se não houvesse identificação com aquela memória de que nasce o pensamento, não haveria nenhum "centro", ou seja "Eu", a transportar aquela carga de dia para dia.

Temos, pois, o tempo marcado pelo relógio. E há o tempo psicológico; mas, este tempo é válido? É o tempo verdadeiro? O tempo não é o intervalo existente entre as ações? Quando há ação espontânea, real, não há, com efeito, tempo. Estais esquecido do passado, do presente, do futuro, quando estais vivendo naquele estado de ação. Mas, quando a ação procede do passado, introduzistes o tempo na ação.

(...) O que o orador está fazendo é levar o tempo a uma "crise". Pois estamos habituados a servir-nos do tempo como meio de fuga. Ou, também, nos temos servido do tempo como "o presente único", "o agora", tratando de tirar da vida o melhor proveito, agora — com todos os seus desesperos, agonias, ansiedades, temores, esperanças, alegrias. Dizemos: "Só temos poucos dias de vida, e vivamos com tudo o que a vida oferece, tirando dela o melhor partido". É o que fazemos, e o mesmo têm feito todos os filósofos. E todos os que têm inventado teorias têm, também, um medo intenso da morte.

(...) A mente que está em ação pode existir sem o tempo... A mente que está em ação com uma ideia, um motivo, uma finalidade, uma fórmula, está enredada no tempo; sua ação, por conseguinte, não se completa e, portanto, dá continuidade ao tempo. Como sabeis, o tempo, para nós, é não só a duração psicológica, mas também a continuidade da existência. Serei isto futuramente — amanhã ou no próximo ano. Esse "ser futuramente" está condicionado não só ao ambiente, à sociedade, mas também à reação a tal condicionamento, tal sociedade — reação que consiste em dizer: "Serei isto e o alcançarei futuramente". Quando uma pessoa diz: "Se hoje não sou feliz, se não sou rico interiormente, profunda, ampla, inexaurivelmente rico eu o serei" — essa pessoa está na armadilha do tempo. O homem que pensa que será alguma coisa e está se esforçando para alcançar o que será, para esse homem a maior aflição é o tempo.

É possível a mente achar-se sempre em ação, diretamente, espontânea e livremente, de modo que nunca tenha um momento de tempo? Porque o tempo é pensamento periférico. Todo pensar é periférico, marginal — todo. Pensamento é reação da memória, da experiência, do conhecimento, acumulados; daí procede o pensamento, a reação ao passado. O pensamento jamais pode ser original... O original não pertence ao tempo. Por conseguinte, para descobrir o original deve a mente estar inteiramente livre do tempo — do tempo psicológico; da duração; da ideia de "serei", "alcançarei", "tornar-me-ei".

(...) Assim como o bancário deseja tornar-se gerente do banco, e o gerente aspira a ser diretor, assim como o vigário aspira a ser arcebispo, assim como o sanyasi deseja "vir a ser", alcançar, no final de tudo, isto ou aquilo — assim também nós adotamos perante a vida a mesma atitude. Abeiramo-nos do viver de cada dia com a ideia de realização e, assim, psicologicamente, abeiramo-nos da vida, dizendo "devo ser bom", "devo fazer isto", "devo vir a ser..." É a mesma mentalidade, a mesma ambição; portanto, introduzimos o tempo em nosso viver. Nunca questionamos o tempo. Nunca dizemos: "É mesmo assim? Daqui a dez anos, serei feliz, inteligente, vigilante, imensamente rico interiormente, e então só uma coisa existirá?" Nunca questionamos o tempo; aceitamo-lo, como temos aceito tudo o mais: cegamente, estupidamente, sem pensar, sem raciocinar.

Por isso eu digo que o tempo é veneno, que o tempo é um perigo contra o qual deveis estar sumamente precavidos, perigo tão vivo como um tigre. Deveis estar consciente, a cada minuto, de que o tempo é um veneno mortal, uma coisa fictícia. Estais vivendo hoje; e não podeis viver hoje, de modo completo, com riqueza, plenitude, com extraordinária sensibilidade à beleza, à graça, se vindes com toda a carga de ontem.

(...) Como já sabemos, a maioria de nós traz o passado para o presente, e o presente se torna mecânico. Se observardes a vossa própria vida, vereis quanto é mecânica! Funcionais qual uma máquina, como uma imitação imperfeita do cérebro eletrônico. Porque aceitastes o tempo e com ele vos acostumastes. Ora, há uma vida fora do tempo, quando se compreende o passado, que é só memória e nada mais.

A memória, na forma de conhecimento, de acumulação de experiências, de coisas que o homem vem juntando a milhões de anos — a memória é o passado, consciente ou inconsciente; nela estão depositadas todas as tradições. E com tudo isso vindes para o presente, para o agora e, por conseguinte, não estais, absolutamente, vivendo. Estais "vivendo" com as lembranças, as cinzas frias do ontem. Observai a vós mesmo. Com essas cinzas frias da memória, inventais o amanhã: um dia, serei não-violento; hoje sou violento, mas irei limando essa minha "grata" violência e, um dia, hei de ser livre, não-violento. Que infantilidade! — É uma ideia que aceitastes e, portanto, não podeis despreza-la. E há homens que dizem tais absurdos! E os tratais como grandes homens; porque estais aprisionados no tempo, tal como eles. Esses homens não vos estão libertando, fazendo-vos enfrentar o fato — o tempo — isto é, trazer para o presente o passado inteiro e levá-lo a uma "crise".

Sabeis o que acontece quando vos vedes numa crise — numa crise real, não uma crise inventada, uma crise verbal, de ideias e teorias? Quando vos vedes, de fato, em presença de uma crise, que vos exige atenção integral e "atenção integral" significa: atenção com vossa mente, vossos olhos, vossos ouvidos, vosso coração, vossos nervos, todo o vosso ser — sabeis o que acontece? Não existe, então o passado; não há então ninguém para dizer-vos o que deveis fazer; e, então, dessa extraordinária atenção, vem a espontaneidade; e, nesse estado não existe o tempo. Mas, no momento em que começais a pensar a respeito da crise, no momento em que começais a pensar, todo o passado entra em ação. O pensamento é reação do passado — associação, etc. E verifica-se, nesse momento, o começo do tempo e do sofrimento.

(...) Assim, pois, cumpre compreender a natureza do tempo e o significado do tempo. Com a palavra "compreender" quero dizer "ter vivido" com a coisa, tê-la percebido; não ter aceito nenhuma teoria nem explicação verbal; não ter fugido por meio do passado, porém, ter investigado, de fato, o fenômeno do tempo psicológico. Fazendo-o, levais o tempo a uma "crise"; essa crise vos torna então sobremaneira atento e, por conseguinte, a mente fica num estado de ação. Fica atuando sempre, porque já se livrou daquele estado de "passado e futuro" — do tempo. E nesse estado, em que a mente não está interessada no passado nem no futuro, tem o presente uma significação diferente. Isso não é teoria, e não se trata de um estado de desespero. Por conseguinte, a cessação do sofrimento é a cessação do pensamento, e a cessação do pensamento é o começo da sabedoria. A cessação do sofrimento é sabedoria.

Krishnamurti — Bombaim, 23 de fevereiro de 1964

Talks By Krishnamurti in India 1964

 





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