Sobre o estado de clareza não induzida
autoconhecimento

Sobre o estado de clareza não induzida


Por favor, como eu disse no outro dia, o orador não é importante. O que ele diz é importante, porque o que ele diz é o eco das várias faces da sua personalidade, falando em voz alta. Através das palavras que usa o orador, vocês estão ouvindo a si mesmos, não ao orador, e portanto ouvir se torna uma coisa extraordinariamente importante. Ouvir é aprender e não acumular. Se vocês acumulam conhecimentos e ouvem a partir desse acervo, de seu repositório de conhecimentos, então não estão ouvindo. Somente quando se ouve é que se aprende. Vocês estão aprendendo a respeito de si próprios e, portanto, devem ouvir com cuidado, com extraordinária atenção e a atenção inexiste quando vocês absolvem, condenam, ou avaliam de outro modo o que ouviram. Nesse caso, vocês não estão ouvindo, não estão percebendo, não estão vendo.

Se, depois de uma tempestade, vocês se sentarem às margens de um rio, verão a corrente passar carregando uma porção de detritos. Vocês têm, de forma semelhante, que observar o movimento de si mesmos, acompanhando cada pensamento, cada sentimento, cada intenção, cada razão. Apenas observar — este observar é também ouvir. E estar ciente com seus olhos, com seus ouvidos, com suas percepções, de todos os valores que o ser humano criou e pelos quais vocês estão condicionados. Só esse estado de total percepção pode pôr fim a toda busca.

Como disse, buscar e achar é um desperdício de energia. Quando a própria mente está obscura, confusa, assustada, miserável, ansiosa, de que lhe serve buscar? Além desse caos, que pode existir se não mais caos? Quando porém existe uma luz interior, quando a mente não está assustada, não pedindo para ser tranquilizada, não existe mais busca e portanto não há o que achar. Ver Deus, a verdade, não é um ato religioso. O único ato religioso é descortinar essa luz interior através do autoconhecimento, isto é, estando cônscio de todos os nossos desejos íntimos, secretos e permitindo que eles se manifestem, nunca corrigindo, nunca controlando ou condescendendo, mas sempre observando. Dessa constante observação surge uma extraordinária clareza, uma extraordinária sensibilidade e uma imensa preservação de energia. E precisamos de imensa energia, porque toda ação é energia, a própria vida é energia. Quando estamos infelizes, ansiosos, enciumados, agressivos, assustados, quando nos sentimos insultados ou lisonjeados — tudo isso é dissipação de energia. Ficar doente, fisicamente ou interiormente, também é dissipação de energia. Tudo que fazemos, pensamos e sentimos é um extravasamento de energia. Ou entendemos a dissipação de energia, resultando, portanto, desse entendimento o encontro natural de toda energia ou passaremos nossas vidas lutando para reunir várias expressões contraditórias de energia, na esperança de que o periférico venha a se transformar em essencial.

A essência da religião é a sacralidade, que nada tem que ver com as organizações religiosas nem com a mente aprisionada e condicionada por uma crença, um dogma. Para esse tipo de mente nada é sagrado, exceto o Deus que ela criou, ou o ritual que montou, ou as várias sensações que extrai da oração, da adoração, da devoção. Essas coisas, porém, não são, em absoluto, sagradas. Não existe nada de sagrado no dogmatismo, no ritualismo, no sentimentalismo ou na emotividade. A sacralidade constitui a própria essência da mente religiosa, e isso é o que vamos descobrir. Não estamos preocupados com o que se supõe ser sagrado — símbolos, palavras, pessoas, quadros, uma determinada experiência, que tudo isso é infantil — mas com a essência. Isso demanda da parte de cada um de nós um entendimento que chega através de vigilância, ou de estar consciente antes de tudo, das coisas externas. A mente não pode acompanhar o fluxo da maré da percepção interior sem antes estar ciente do comportamento exterior, dos gestos exteriores, dos costumes, das formas, do tamanho e da cor de uma árvore, da aparência de uma pessoa, de uma casa. É a mesma maré que vai e que vem e, a menos que você conheça a maré exterior, jamais conhecerá a maré interior.

Por favor, escutem bem o que vou lhes dizer. A maioria de nós julga a percepção uma coisa misteriosa para ser praticada e que deveríamos nos reunir dia após dia para falar sobre ela. Vocês não chegam a ela por esse caminho. Mas se tiverem consciência das coisas externas — da curva de uma estrada, do formato de uma árvore, da cor da roupa do próximo, do contorno das montanhas contra um céu azul, da delicadeza de uma flor, da dor no rosto de um passante, da ignorância, da inveja, do ciúme dos outros, da beleza da terra — vendo todas essas coisas externas, sem condenação, sem preferências, vocês podem acompanhar o fluxo da maré da percepção interior. Vocês tornar-se-ão conscientes de suas próprias reações, de sua própria mesquinhez, de suas próprias invejas. Da percepção exterior, vocês chegam à percepção interior — mas se não estiverem cônscios do exterior não poderão, absolutamente chegar ao interior.

Quando existe percepção interior de cada atividade de sua mente e de seu corpo; quando vocês estão conscientes de seus pensamentos, de seus sentimentos, tanto dos aparentes como dos ocultos, conscientes e inconscientes, então dessa percepção surge uma clareza que não é induzida, que não é construída pela mente. E sem essa clareza, façam o que fizerem, vocês podem mover os céus, a terra e as profundezas que jamais descobrirão o que é verdade.

Desse modo, aquele que deseja descobrir o que é verdade precisa ter a sensibilidade da percepção que não é a prática da percepção. A prática da percepção só conduz ao hábito, destrói toda a sensibilidade. Qualquer hábito, seja o sexual, o da bebida, o de fumar, ou o que mais seja, torna a mente insensível. E a mente insensível, além de dissipar energia, torna-se aborrecida. Uma mente aborrecida, mesquinha, condicionada, insignificante, pode tomar uma droga e, por instantes, passar por uma experiência surpreendente, mas é ainda uma mente insignificante. O que estamos fazendo agora é descobrindo como pôr termo à insignificância da mente.

A insignificância não termina com a aquisição de mais informações, de mais conhecimentos, com ouvir música clássica, admirar as belas paisagens do mundo e assim por diante: não tem absolutamente nada a ver com tudo isso. O que põe fim à insignificância é a clareza do autoconhecimento, o movimento irrestrito da mente. Só tal mente é religiosa.

A essência da religião é a sacralidade, mas a sacralidade não se encontra em nenhuma igreja, em nenhum templo, em nenhuma mesquita, em nenhuma imagem. Estou falando de essência e não de coisas que chamamos de sagradas. Quando entendemos a essência da religião que é a sacralidade, a vida passa a ter uma significado completamente diferente — então tudo é belo e beleza é sacralidade. A beleza não é estimulante. Quando vocês veem uma montanha, um edifício, um rio, um vale, uma flor ou um rosto, podem considerá-los belos, porque sentiram-se estimulados por eles, mas a beleza a que me refiro não proporciona estímulo algum. É uma beleza que não pode ser encontrada em nenhum quadro, em nenhum símbolo, em nenhuma palavra, em nenhuma música. Essa beleza é sacralidade. É a essência da mente religiosa, de uma mente dotada de clareza em seu autoconhecimento. Deparamos com essa beleza, não desejando, querendo, ansiando por experiência, mas só quando todo desejo de experiência chega ao fim — e isso é uma das coisas mais difíceis de entender.

Como já salientamos, a mente em busca de experiência ainda está se movendo na periferia e a interpretação de cada experiência dependerá de seu condicionamento particular. Se vocês forem cristãos, budistas, maometanos, hindus, ou comunistas, o que seja, suas experiências serão, obviamente, traduzidas e condicionadas de acordo com seus antecedentes, e quanto mais vocês demandarem experiências mais estarão revigorando esses antecedentes. Esse processo não desfaz, não põe fim ao sofrimento — constitui apenas uma fuga ao sofrimento. Uma mente clara no seu autoconhecimento, uma mente que seja a própria essência da clareza e da luz, não tem necessidade de experiência. Ela é o que é. De modo que a clareza chega através do autoconhecimento e não através de instrução de um terceiro, seja ele um escritor inteligente, um psicólogo, um filósofo ou um assim chamado mestre religioso.

Não existe sacralidade sem amor e sem o entendimento da morte. Sabem, uma das coisas mais maravilhosas da vida é, espontaneamente, inesperadamente, descobrir, deparar com algo sem premeditação e, no mesmo instante, reconhecer-lhe a beleza, a sacralidade, a realidade. Mas a mente que está buscando, que está querendo encontrar, não está absolutamente nessa posição. O amor não é uma coisa a ser cultivada. O amor, assim como a humildade, não pode ser construído pela mente. Só o vaidoso tenta ser humilde; só o orgulhoso procura conter seu orgulho pela prática da humildade, o que é ainda um ato de vaidade. Para ouvir e, portanto, para aprender, deve existir, espontâneo, o dom da humildade e a mente que tenha compreendido a natureza da humildade nunca segue, nunca obedece. Pois, como pode o que é completamente negativo, vazio, obedecer ou seguir alguém?

A mente que, devido à própria clareza de seu autoconhecimento tenha descoberto o que é o amor, estará também consciente da natureza e da estrutura da morte. Se não morremos para o passado, para tudo o que o ontem representa, a mente estará ainda aprisionada aos anelos, aos espectros da memória, a seus condicionamentos, não havendo, pois, clareza. Morrer para o ontem, facilmente, voluntariamente, sem argumentos ou justificativas, requer energia. Argumentos, justificativas, preferências, representam um desperdício de energia e, dessa maneira, não se morre para os muitos ontens, para que a mente possa se tornar nova e fresca. Mas quando existe a clareza do autoconhecimento, então seguem-se o amor, com sua suavidade, a espontânea qualidade da humildade e também a libertação do passado, através da morte.

E disso tudo nasce a criação. Criação não é sinônimo de auto-expressão, não é uma questão de jogar tinta sobre um pedaço de tela ou de escrever poucas ou muitas palavras sob a forma de um livro, ou de fazer pão, ou de conceber uma criança. Nada disso é criação. Só há criação quando existe amor e morte. A criação somente nasce quando existe morte, diária, para tudo, de forma a não ocorrerem acúmulos, como memórias. Claro que você precisa acumular alguma coisa como roupa, casa, propriedades pessoais — não estou falando nisso. É o senso interior de acumulação e de possessão da mente — do qual deriva a dominação, a autoridade, a conformidade, a obediência — que bloqueia a criação, porque tal mente não será jamais livre. Só a mente livre sabe o que é amor e o que é morte, e para essa mente — apenas para essa mente — existe criação. Nesse estado, a mente é religiosa. Existe sacralidade nesse estado.

Para mim a palavra sacralidade tem um significado extraordinário. Por favor, não estou fazendo propaganda dessa palavra, não estou tentando convencê-los de nada e não estou tentando fazê-los sentir ou experimentar a realidade através dessa palavra. Vocês não podem. Vocês têm de passar por tudo isso sozinhos, não com palavras, mas com fatos. Vocês têm de realmente morrer para tudo que conhecem, para suas memórias, para suas misérias, para seus prazeres. E quando não houver ciúme, inveja, ganância, a tortura do desespero, então saberão o que é amor e depararão com aquilo que pode ser chamado de sagrado. A sacralidade, portanto, é a essência da religião. Vocês sabem, um grande rio pode se poluir ao passar por uma cidade, mas se a poluição não for demasiada, o rio limpa-se a si mesmo durante seu curso e, dentro de umas poucas milhas estará de novo claro, fresco, puro. Da mesma forma, uma vez tenha a mente deparado com a sacralidade, todo ato é um ato de purificação. Através de seu próprio movimento, a mente está se tornando inocente e, portanto, não há acumulação. A mente que descobriu essa sacralidade está em constante revolução, não revolução econômica ou social, mas revolução interior, através da qual se purifica incessantemente. Sua ação não se baseia em nenhuma ideia ou fórmula. Assim como o rio, com um tremendo volume de água atrás de si, se purifica à medida que flui, assim a mente se purifica uma vez tenha deparado essa sacralidade religiosa.

·         Extraído do registro autêntico da décima palestra proferida em público em Saanen, l9 de agosto de 1965, in Collected Works ofJ. Krishnamurti, © 1992 Krishnamurti Foundation of America.







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