autoconhecimento
A fuga do que é pela dependência química
O corpo precisa ser sumamente sensível; esta é uma coisa das mais difíceis, porque estragamos a inteligência corporal com o beber (…) o fumar, cedendo a nossos apetites, entregando-nos ao prazer. Embrutecemos o nosso corpo. Olhem o corpo de vocês, que devia ser tão cheio de vida e sensibilidade, e verão o estado a que o reduziram!(1)
Pergunta: Sou um fumante inveterado (…) Como poderei deixá-lo (o hábito) (…)?
Krishnamurti: Não luteis por abandoná-lo; tal como se dá com muitos outros hábitos, a luta contra ele só tenderá a fortalecê-lo. Compreendei o problema do hábito, sob seus vários aspectos - mental, moral, físico.(2)
Pergunta: Tenho lutado muito para deixar de beber (…) Que devo fazer?
Krishnamurti: Cada um de nós tem muitas maneiras de fugir. (…) Beber pode ter o seu valor social, e pode também ser mais nocivo.(3)
Quando sei que bebo porque não me entendo com minha esposa, ou porque tenho um emprego detestável (…) deixo de beber? (…) Só deixo de beber quando estabeleço relações adequadas com minha mulher, com meu próximo, afastando assim o conflito que me causa sofrimento.(4)
Assim sendo, não nos preocupemos com o meio de que nos servimos para fugir (…) O importante é compreender que, enquanto uma pessoa tenta o preenchimento no campo do “eu”, tem de haver infelicidade e luta; e esse sofrimento não pode ser evitado enquanto a pessoa, o “eu”, for importante.(5)
Direis, porventura: “Que tem o hábito de beber com tudo isso”? Penso que o problema da bebida, como qualquer outro (…), só pode ser (…) eliminado depois de compreendido o processo do “eu”, isto é, quando temos autoconhecimento.(6)
Pergunta: Sou fumante e desejo livrar-me do hábito (…) Podeis ajudar-me?
Krishnamurti: O hábito é um problema, torna-se um problema quando desejo abandoná-lo; (…) Fumar transformou-se, para mim, num fator de perturbação, por isso quero livrar-me do vício.(7)
Quero deixar de fumar, livrar-me do hábito, abandoná-lo; nessas condições, minha atitude(…) é de resistência, de condenação. (…) Pois bem, é possível considerarmos o problema sem a tendência para condenar, justificar ou reprimir?(8)
Porque, se compreendeis que fumar é uma coisa estúpida, um desperdício de dinheiro, etc. - se o reconhecerdes verdadeiramente, deixareis o hábito e não haverá mais problema. Fumar, beber, ou qualquer outro hábito é fuga de outra coisa qualquer; (…) É uma fuga ao nosso próprio nervosismo, a um estado de perturbação.(9)
Já tentastes alguma vez abandonar algo que vos proporciona prazer, ou que se tornou um hábito - abandoná-lo, simplesmente? Muitos fumam, dentre vós. (…) Já tentastes abandonar esse hábito, morrer para ele, sem esforço, sem compulsão?(10)
Por conseguinte, devo primeiramente compreender a inutilidade da resistência (…) Torno-me cônscio do hábito (…) Se fumo, observo-me quando o faço. Cônscio fico de que (…) tiro um do maço, (…) ponho-o na boca, acendo-o, (…) ponho-me a soltar baforadas de fumaça. (…) Descobrireis (…) quando o hábito é visceralmente corruptor.(11)
O fumar também vos torna semelhante a uma máquina, escravo do hábito, e é só quando se compreende tudo isso que a mente se torna fresca, jovem, ativa, viva, de modo que cada dia é um dia novo.(12)
Vede, senhor. Tendes um certo hábito: o hábito sexual ou de beber, de fumar, de falar (…) Podeis morrer para isso, abandonar completa e instantaneamente o fumo, a bebida, o prazer? (…) Pôr fim a um hábito é acabar com ele completamente. Isso acontece quando a morte chega. Com ela não se discute.(13)
Há também, o problema das drogas. Na Índia, na antiguidade, havia uma substância chamada soma - uma espécie de cogumelo, cujo suco era bebido, produzindo tranqüilidade ou experiências alucinatórias de todo gênero, (…) resultado do condicionamento da pessoa. (…) Mas perdeu-se o segredo daquele cogumelo (…) Desde então, apareceram na Índia, tal como aqui, várias drogas, tais como haxixe, L.S.D., maconha, tabaco, bebida, heroína (…) Há também o jejum. No jejuar, verificam-se certas reações químicas.(14)
Se temos a possibilidade de viver bem sem o auxílio de drogas, por que tomá-las? Mas aqueles que as tomam dizem-nos que elas provocam certas alterações; surge certa vitalidade (…) energia, e desaparece o espaço entre o observador e a coisa observada; as coisas são vistas com muito mais clareza. Diz um deles que (…) se vêem as cores mais esplendorosas então. Mas podem-se ver as cores com igual intensidade sem o auxílio da droga, desde que se preste atenção, que se observe sem o espaço entre o observador e a coisa observada. Quando se tomam drogas, fica-se na dependência delas e, mais cedo ou mais tarde, se farão sentir os seus desastrosos efeitos.(15)
Chegamos, pois, à questão real, que é o desejo de fuga. Que temeis? Por que tendes medo ao desconhecido, àquela insuficiência ou àquele vazio? Se temeis, por que não investigais? Por que esse temor de perder nossos haveres, (…) ligações, contatos? (…) Nunca fazemos frente ao conflito de nossa insuficiência: estamos sempre empenhados em sufocá-lo, reprimi-lo, em fugir a ele, não conhecemos o que é. Mas se enfrentássemos o conflito sem temor, sem condenação, encontraríamos, então, a verdade a seu respeito.(16)
Naturalmente, a grande maioria das pessoas vive a fugir de si mesma. Mas, pelo fugirdes de vós mesmos, vos tornastes dependentes. A dependência se torna mais forte e as fugas mais essenciais, em proporção com o medo do que é. A esposa, o livro, o rádio, adquirem extraordinária importância; as fugas se tornam da mais alta significação, (…) valor.(17)
Isso está bastante claro. (…) Mas por que foge uma pessoa? De que foge? De sua própria solidão, (…) vazio, daquilo que é. Se fugirdes do que é, sem o verdes, é bem evidente que não o compreendereis; portanto, em primeiro lugar, deveis parar, deixar de fugir, pois, só então podereis observar a vós mesmos, tal como sois. Mas não se estais sempre a criticá-lo (…) Vós o chamais solidão e fugis dele; e a própria fuga ao que é, é medo. Tendes medo dessa solidão, (…) vazio, e a dependência é o manto em que o cobris. O medo, portanto, é constante, (…) enquanto estiverdes a fugir do que é.(18)
Nada podeis fazer a respeito. Tudo o que fizerdes será sempre uma atividade de fuga. Esta é a coisa mais essencial: cumpre compreendê-la. Podereis ver, então, que não sois diferente ou separado daquela vacuidade. Sois aquela insuficiência. O observador é o vazio observado. Depois, se fordes mais longe, não lhe dareis mais o nome de solidão, cessou a verbalização; e, se fordes mais além, o que é um tanto difícil, a coisa conhecida como solidão não existirá mais; ocorrerá o completo desaparecimento da solidão, do vazio, do pensador, do pensamento. Só isso põe fim ao temor.(19)
Ora, se se reconhece que todos os meios de fuga são iguais, e se percebe a significação de dado meio de fuga, pode-se ainda fugir? (…) E, se não estais fugindo, há ainda conflito? (…) É a fuga ao que é, o esforço para alcançar uma coisa diferente do que é, que cria o conflito. Assim, para que a mente possa transcender esse sentimento de solidão, essa súbita cessação da lembrança de todas as relações, as quais envolvem ciúme, inveja, ânsia de aquisição, esforço de ser virtuoso, etc. - primeiro ela tem de enfrentá-lo, passar por ele, de modo que o medo em todas as suas formas definhe até desaparecer de todo.(20)
Dessarte, pode a mente perceber, em dado meio de fuga, a futilidade de todas as fugas? Não há então conflito (…) Porque já não há nenhum observador da solidão: há só o experimentar dela. (…) Essa solidão é o cessar de todas as relações; as idéias já não têm importância; o pensamento perdeu toda a valia.(21)
Qualquer forma de dependência psicológica, qualquer espécie de fuga, através da bebida, através de drogas, numa tentativa para tornar a mente mais sensível, apenas a entorpece e a deforma. Quando abandonamos tudo isso - o que temos de fazer se somos realmente sérios - ficamos em face do que é viver interiormente só. Não se está então dependente de nada, nem de ninguém, de nenhuma droga, de nenhum livro, de nenhuma crença. Só então a mente não tem medo, só então se pode perguntar qual é a finalidade da vida... O esquecimento de si mesmo através da bebida ou do sexo, pela idolatria ou pelo saber, leva à dependência; e tudo o que cria dependência, cria problemas. Se para nos libertarmos, se para nos esquecermos, se para sermos felizes dependemos de “drogas receitadas ou não”, de "Mestres" - os "Mestres" ou as drogas tornam-se o nosso problema. A dependência gera a inveja, o medo, o desejo de possuir; e então o medo e o modo de o dominar transformam-se para nós num terrível problema. Ao buscarmos a felicidade criamos problemas, e deles ficamos prisioneiros...
No fundo, a nossa vida é confusão, desordem, aflição, agonia. Quanto mais sensíveis somos, tanto maior o nosso desespero e ansiedade, nosso "sentimento de culpa"; e dessa vida desejamos naturalmente fugir, porque nela não encontramos nenhuma solução; não sabemos de que maneira sair de nossa confusão. Desejamos fugir para um outro mundo, uma outra dimensão. Fugimos por meio da música, da arte, da literatura; mas, trata-se sempre de fuga e a coisa para que fugimos é sem realidade, em comparação com aquilo que estamos buscando. Todas as fugas são iguais, não importa se fugimos pela porta de uma igreja, em busca de Deus ou de um Salvador, ou pela porta da bebida ou de diferentes drogas. Não só temos de compreender o que e porque estamos buscando, mas também temos de compreender essa necessidade de experiências profundas e duradouras, porque só a mente que nada busca, que não exige experiências de nenhuma forma, poderá ingressar numa esfera ou dimensão inteiramente nova. É o que vamos fazer nesta tarde; assim o espero.
A vida é vazia e, percebendo esse fato, andamos em busca de meios e modos, não só de preencher esse vazio, mas também de alcançar uma certa coisa não mensurável pelo homem. Uns tomam drogas, L.S.D. ou qualquer outra das várias drogas psicodélicas que expandem a consciência. Por meio delas, alcançam-se ou experimentam-se certos estados, porque se deu ao cérebro uma certa sensibilidade. Mas, tais resultados são puramente químicos. São resultados produzidos por agentes externos. A pessoa toma a droga na esperança dos resultados e tem em seguida, interiormente, tais experiências. E como cada um tem suas crenças, cada um experimenta de acordo som elas. São coisas similares (as drogas e as crenças), e, contudo o homem fica preso à crença — ao narcótico da própria crença, ou à crença no narcótico químico. Fica, inevitavelmente preso na rede de seus pensamentos.(22)
A busca de estímulo, em qualquer forma que seja, implica dependência de alguma coisa - de uma bebida, uma droga, um orador, ou de entrar numa igreja; e, por certo, a dependência de estímulo não apenas embota a mente, mas também ocasiona dissipação da energia. Assim, para conservarmos nossa energia, deve desaparecer toda espécie de dependência ou de estímulo; e, para ocorrer o desaparecimento da dependência, precisamos tornar-nos cônscios dela.(23)
Vossa vida de cada dia é um fugir de vós mesmos, e por isso todos os meios de fuga se tornam importantíssimos e competis uns com os outros por causa deles - quer se trate da bebida ou de Deus. A fuga é que constitui o problema, embora tenhamos diferentes maneiras de fugir. Podeis causar malefícios imensos, psicologicamente, com as vossas fugas respeitáveis, e eu sociologicamente, com minhas fugas mundanas; mas, para se compreender a solidão, todas as fugas devem cessar - não por meio de coerção, de compulsão, mas com o perceber a falsidade da fuga. Estais então em confronto direto com o que é, e aí começa o verdadeiro problema.(24)
Qualquer hábito, seja o sexual, o da bebida, o de fumar, ou o que mais seja, torna a mente insensível. Uma mente insensível, além de dissipar energia, torna-se uma mente aborrecida. Uma mente aborrecida, mesquinha, condicionada, insignificante, pode tomar uma droga e, por instantes, passar por uma experiência surpreendente, mas é ainda uma mente insignificante. O que estamos fazendo agora é descobrindo como pôr termo à insignificância da mente... O que põe fim à insignificância é a clareza do autoconhecimento, o movimento irrestrito da mente. Só tal mente é religiosa.(25)
(1) Fora da Violência, pág. 45(2) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 35-36(3) Nós Somos o Problema, pág. 34(4) Nós Somos o Problema, pág. 35(5) Nós Somos o Problema, pág. 36(6) Nós Somos o Problema, pág. 36(7) Nosso Único Problema, pág. 24(8) Nosso Único Problema, pág. 24-25(9) Nosso Único Problema, pág. 25(10) Nosso Único Problema, pág. 85(11) O Homem e seus Desejos em Conflito, pág. 86(12) A Cultura e o Problema Humano, pág. 102(13) A Importância da Transformação, pág. 55(14) Fora da Violência, pág. 85(15) Fora da Violência, pág. 86(16) Nosso Único Problema, pág. 70(17) Comentários sobre o Viver, pág. 198(18) Comentários sobre o Viver, pág. 198(19) Comentários sobre o Viver, pág. 198-199(20) O Passo Decisivo, pág. 74-75(21) O Passo Decisivo, pág. 75 (22) Krishnamurti (23) A mente sem medo(24) Que estamos buscando? (25) Collected Works of J. krishnamurti
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