A mente revoltada
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A mente revoltada


O indivíduo, embora a sociedade, a religião e os governos não reconheçam esse fato, tem a maior importância. Você é muito importante porque você é o único meio que existe de expandir a explosiva criatividade do real. Vocês representam o caldo de cultura em que esta realidade pode vir a concretizar-se. Devem, contudo, ter observado que todos os governos, todas as religiões e sociedades organizadas, embora não deixem de reiterar a importância do indivíduo, tentam fazer tabula rasa da Porém a mente que está meramente organizada segundo um certo padrão de crenças, arcada ao peso dos costumes, da tradição, do conhecimento, não é uma mente individual. Uma mente individual só pode existir quando você deliberadamente, conscientemente, com todo o seu sentimento, põe de lado todas essas influências pelo fato de lhe ter entendido o significado, o valor superficial. Só então passa a existir a mente individual criativa.alma individual, do sentimento individual porque a eles interessa o sentimento coletivo, a reação da massa.

É incrivelmente difícil separar o indivíduo da massa e, no entanto, sem essa separação, não é possível existir realidade. De forma que o verdadeiro indivíduo não é aquele que tem um nome, certas respostas emotivas, certas reações habituais, algumas propriedades e assim por diante, mas sim aquele que se esforça por transpor todo esse emaranhado de idéias, de acúmulo de tradições, que põe tudo isso de lado e tenta descobrir a razão, o fulcro, o centro da miséria humana. Tal pessoa não se apóia em livros, em autoridades, em costumes muito conhecidos, pelo contrário, rejeita-os e começa a questionar — é esse o verdadeiro indivíduo. A maioria de nós repete, aceita, segue, imita, obedece — não é mesmo? — porque para nós obediência transformou-se em lei — obediência em casa, obediência ao texto, obediência ao guru, ao professor e assim por diante — e nessa obediência sentimos firmeza, segurança. Atualmente, porém, a vida não tem firmeza, não tem jamais segurança, é a coisa mais incerta. E, pelo fato de ser incerta, ela é também profundamente rica, incomensurável. Mas a mente, em sua busca, procura proteção e segurança e, por conseguinte, obedece, segue e imita; e esse tipo de mente não é, em absoluto, uma mente individual.

Nós, de um modo geral, não somos indivíduos embora tenhamos nossos próprios nomes, nosso próprio corpo, porque, por dentro, nosso estado mental está vinculado ao tempo, arcado ao peso dos costumes, da tradição e da autoridade — autoridade do governo, autoridade da sociedade, autoridade do lar. Essa mente não é uma mente individual; a mente individual está longe de tudo isso; está fora dos padrões da sociedade. A mente individual é uma mente revoltada e, por conseguinte, não busca segurança. Mente revolucionária não é o mesmo que mente revoltada. A mente revolucionária visa alterar as coisas de acordo com um certo padrão, e essa mente não é uma mente revoltada, não é uma mente que esteja insatisfeita consigo mesma.

Não sei se vocês já observaram que coisa extraordinária é a insatisfação. Vocês conhecem muitos jovens insatisfeitos. Eles não sabem o que fazer; sentem-se miseráveis, infelizes, revoltados, buscando isto, tentando aquilo, fazendo perguntas intermináveis. Mas quando crescem, arrumam um emprego, casam e esse é o fim de tudo. Sua insatisfação fundamental é canalizada e, depois, a infelicidade assume o comando. Quando jovens, seus pais, seus mestres, a sociedade, todos lhe dizem que não se sintam insatisfeitos, que descubram o que querem fazer e o façam — tudo, porém, dentro dos padrões. Esse tipo de mente não é revoltada e você precisa de uma mente realmente revoltada para encontrar a verdade — não de uma mente conformada. Revolta significa paixão.

De forma que é muito importante ser um indivíduo e só existe individualidade através do autoconhecimento: conhecer a si próprio, saber por que você imita, por que você se conforma, por que você obedece. Você obedece porque tem medo, não é verdade? Devido ao desejo de sentir segurança, para ter mais poder, mais dinheiro ou mais disto ou mais daquilo, você se conforma. Mas para descobrir o que você chama de Deus, para descobrir se existe ou não essa realidade, precisa existir o indivíduo, um indivíduo que esteja morto para o passado, que esteja morto para o conhecimento, morto para a experiência; precisa existir uma mente que seja inteiramente, totalmente nova, pura, inocente. Religião equivale à descoberta do que é real, o que significa que você deve descobrir e não seguir alguém que diga ter descoberto e deseje lhe falar a respeito. É preciso existir uma mente que acolha essa realidade, não uma mente que simplesmente aceite essa realidade oralmente e que se conforme com essa idéia de realidade na esperança de se sentir seguro.

Existe, pois, uma diferença entre saber e sentir, e acho muito importante entendê-la. Para nós são suficientes as explicações, isto é, “saber”. Dizemos: “Eu sei que sou ambicioso, sei que sou invejoso, sei que odeio”, mas saber não significa estar livre da coisa. Você pode saber que odeia, mas o verdadeiro sentimento de ódio e o libertar-se dele são coisas completamente diferentes da busca de sua explicação e de sua causa, não é mesmo? Isto é, saber que sou chato, estúpido e estar realmente consciente do sentimento da minha estupidez, da minha chatice, são duas coisas completamente diferentes. Sentir envolve uma grande dose de vitalidade, uma grande dose de força, de vigor, ao passo que saber representa apenas uma abordagem parcial da vida, não uma abordagem global. Você pode saber botanicamente como é constituída uma folha, mas senti-la, cheirá-la, vê-la realmente requer uma grande dose de penetração — de penetração para dentro de si mesmo. Não sei se alguma vez você teve uma folha entre as mãos e contemplou-a. Vocês são todos cidadãos urbanos, todos muito ocupados consigo mesmos, com seu progresso, com seu sucesso, suas ambições, invejas, com seus líderes, seus pastores, e com mais um monte de tolices. Isso é trágico porque, se vocês soubessem sentir profundamente, sentiriam muito amor, fariam alguma coisa, agiriam com todo o seu ser; mas se vocês apenas sabem que existe pobreza, apenas trabalham intelectualmente para removê-la, como funcionário do governo federal, estadual ou municipal, sem recorrer ao sentimento, o que vocês fazem tem muito pouca importância.

Vocês sabem, a paixão é fundamental à compreensão da verdade — estou empregando a palavra paixão em sua ampla acepção — porque é essencial sentir fortemente, sentir profundamente, com a totalidade do seu ser; de outro modo, essa estranha coisa chamada realidade jamais virá a seu encontro. Mas suas religiões, seus santos afirmam que vocês não devem ter desejos, que devem controlar, reprimir, superar, destruir, o que equivale a irem ao encontro da verdade arrasados, desgastados, escravizados, mortos. Vocês precisam sentir paixão para enfrentar essa estranha coisa chamada vida e vocês não podem sentir paixão — que é sentimento intenso — se estão hipnotizados pela sociedade, pelos costumes, enroscados em crenças, dogmas, rituais. Portanto, para entender essa luz, essa verdade, essa realidade incomensurável, precisamos, antes de tudo, entender aquilo que chamamos religião e livrar-nos dela — não com palavras, não com o intelecto, não com explicações, mas livrar-nos realmente; porque liberdade — não sua liberdade intelectual, mas o verdadeiro estado de liberdade — confere vitalidade. Depois de vocês terem caminhado através de toda essa bobagem, depois de terem posto de lado todas essas coisas confusas, tradicionais, imitativas, a mente se sentirá livre, a mente estará alerta, a mente sentirá paixão. E só essa mente é capaz de ir avante.

Então, que nos seja permitido, como indivíduos, porque se trata de mim e de vocês, não da massa — essa coisa de massa não existe senão como concepção política —, que nos seja permitido descobrir o que queremos significar com religião. O que ela representa para a maioria de nós? Não é a crença em algo, em uma divindade supra-humana que nos controla, nos molda, nos dá esperança e nos dirige? Erguemos a essa entidade nossas preces, oferecemos nossos rituais; em seu nome sacrificamos, propiciamos, oramos e imploramos e “O” consideramos como nosso “Pai”, para nos ajudar em nossas dificuldades. Para nós, religião, não são os dizeres dos templos, a cruz das igrejas, nem as imagens esculpidas nos templos pela mão do homem — mas também a imagem talhada pela mente, a idéia. De forma que, para nós, religião é obviamente um meio de escapar às nossas mágoas cotidianas, à nossa confusão diária. Não entendemos as desigualdades, as injustiças, a morte, os sofrimentos constantes, as lutas, o desespero, a desesperança e nos voltamos aos deuses, aos rituais, às missas e orações, procurando assim encontrar algum lenitivo, algum consolo. E, nesse processo, os santos, os filósofos, os livros nos oprimem com suas interpretações, seus costumes e tradições particulares. É nosso modo de viver, não é? Se vocês fizerem um exame de consciência, não concordarão que estas são as linhas mestras da religião? É uma coisa construída pela mente para o conforto da mente, não algo que proporcione riqueza interior, plenitude de vida e paixão por viver. Sabemos disso — e aqui, novamente, surge a diferença entre saber e sentir. Saber da falsidade das religiões instituídas é uma coisa, mas percebê-lo, abandonar tudo, pôr tudo de lado, requer uma grande dose de profundo e verdadeiro sentimento. Então, a questão — para a qual não há uma resposta fácil — reside em como largar a coisa, morrer para ela, morrer para todas as explicações, para todos esses falsos deuses, porque todos os deuses construídos pela mente e pelas mãos são falsos. Nenhuma explicação pode fazer com que você ponha termo a isso.

O que fará, portanto, com que você ponha termo a tudo isso, o que o fará dizer “agora eu largo tudo isso”? Nós, de um modo geral, abrimos mão de uma coisa para alcançar outra que julgamos melhor e, a isso, damos o nome de renúncia. Mas isso, sem dúvida, não é renúncia. Renunciar significa desistir de saber o que o futuro nos reserva, desistir de saber qual será o amanhã. Se eu abro mão de alguma coisa, sabendo o que o futuro me reserva, faço simplesmente uma troca, uma operação de mercado — o que não tem valor. Quando chega o momento da morte física, você não sabe o que o espera — é um ato final. Igualmente, abrir mão de, pôr totalmente de lado, morrer seriamente para tudo o que chamamos de religião, sem saber o que vai acontecer — você já tentou isso? Não sei se representa um problema para você, mas deve, indubitavelmente, constituir problema para alguém que esteja alerta, que esteja absolutamente consciente do porquê de existir tanta injustiça no mundo. Por que alguns andam de carro, enquanto outros andam a pé? Por que existe fome, pobreza e também imensas fortunas? Por que há homens de posição, de autoridade, de poder, mantendo esse poder à custa de crueldade? Por que morre uma criança? Por que está disseminada essa miséria intolerável? O homem que faz essas perguntas precisa estar, realmente, muito aflito, não encontrando nenhuma estúpida explicação para isso — uma causa econômica, política ou social. É óbvio que o homem inteligente precisa apegar-se a algo muito mais sério que meras causas explicativas. E é aí que reside nosso problema.

O primeiro e mais importante aspecto está em não se satisfazer com explicações, não se contentar com a palavra karma, não se satisfazer com filosofias astutas, mas em compreender, em sentir plenamente que existe esse enorme problema que nenhuma simples explicação pode extinguir. Se você tiver capacidade para sentir isso, verá que, em sua mente, ocorrerá uma revolução. De um modo geral, se não podemos encontrar uma solução para o mistério, tornamo-nos amargos, cínicos ou elocubramos uma teoria filosófica baseada em nossa própria frustração. Eu, porém, estou diante do fato de existir sofrimento, morte, deterioração e se a mente estiver aliviada de todas as explicações, de todas as soluções, de todas as respostas, confrontar-se-á, diretamente com a coisa em si, mas, curiosamente, nossa mente jamais permitirá que essa percepção direta tenha lugar.

Existe, então, uma diferença entre entender e saber, amar e sentir. Amar e sentir não significam devoção; você não pode chegar à realidade através da devoção. Mergulhar total e absolutamente em uma idéia recebe, via de regra, o nome de devoção, mas exclui a realidade porque, quando você se dedica inteiramente a uma coisa, você está, simplesmente, se identificando com essa coisa. Amar seus deuses, repetir certas palavras, adornar seu guru com guirlandas, entrar em transe em sua presença, derramar lágrimas — você pode fazer tudo isso pelos próximos mil anos, mas jamais descobrirá a realidade. Perceber, sentir, amar uma nuvem, uma árvore, um ser humano, demanda uma enorme atenção e como você pode se dedicar a isso se sua mente está distraída com a aquisição de conhecimentos? O conhecimento é útil tecnologicamente — e nada mais. Se um médico não sabe operar, é melhor ficar longe dele. O conhecimento é necessário até um dado nível, em uma certa direção, mas não é a resposta definitiva para nossa miséria. A solução definitiva para nossa miséria está nesse sentimento, nessa paixão que nasce da ausência de si mesmo, quando você esquece de tudo que você é. Esse tipo de paixão é imprescindível para sentir, entender, amar.

A realidade não é intelectual; mas desde a infância, através da educação, através de todas as assim chamadas formas de aprendizado, desenvolvemos uma mente arguta, competitiva, sobrecarregada de informações — como acontece com advogados, políticos, técnicos, especialistas. Nossas mentes foram trabalhadas, buriladas, o que se transformou no objetivo mais importante a alcançar e, com isso, todo o nosso sentimento feneceu. Você não tem pena do homem pobre em sua amargura, não se sente jamais feliz ao ver um ricaço guiando seu belo carro; não fica encantado ao ver um lindo rosto; não sente emoção diante do arco-íris, ou do esplendor de um gramado verdinho. Estamos tão absorvidos em nosso trabalho, em nossas misérias, que não temos um momento de lazer para sentir o que é amar, para ser bom, generoso. E, no entanto, desprovidos de tudo isso, queremos saber o que é Deus!... Que coisa incrivelmente estúpida e infantil! De forma que se torna muito mais importante para o indivíduo viver — não reviver; você não pode reviver sentimentos mortos, a glória que passou. Mas não podemos acaso viver intensamente, plenamente, prodigamente mesmo que só por um dia? Pois tal dia abrangeria um milênio. Não se trata de fantasia poética. Você compreenderá isso quando tiver vivido um dia pleno, no qual não existe tempo, nem futuro, nem passado — você conhecerá então a plenitude conferida por esse estado extraordinário. Esse modo de viver não tem nada a ver com o conhecimento.

* Extraído do registro textual da nona palestra proferida em público em Bombaim, 24 de dezembro de 1958, in Collected Works of J. Krishnamurti, 1992 Krishnamurti Foundation of America.




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