autoconhecimento
A verdade libertadora - 2ª conferência em Estocolmo
PENSO que empregaríamos proveitosamente esta tarde, se nos aplicássemos a uma investigação que poderá ser um pouco difícil, porém, talvez, importante. Pergunto-me a mim mesmo se é possível esclarecer-nos sobre o que andamos a buscar e se a coisa que buscamos tem alguma validade, uma base real. Talvez estejamos buscando algo que, com precisão, não sabemos definir para nós mesmos. Ou, porventura, esperamos encontrar algo de profundamente satisfatório, que nos dê um certo grau de felicidade ou certeza. Até que percebamos claramente o que estamos buscando, penso que nossas vidas continuarão incertas, caóticas e contraditórias. É, de fato, sumamente difícil verificarmos o que estamos buscando, porque não descobrimos por nossos próprios meios os motivos, os estímulos, os impulsos que nos estão compelindo a buscar. Vindo aqui para escutar-me, é óbvio, viestes em busca de algo. Mas, para sabermos o que é que estamos buscando, temos de saber qual é a causa propulsora de nossa busca.
Quase todos nós estamos bem firmados na vida; temos nossos lares, nossas famílias, responsabilidades, posição, emprego, etc. Mas, de modo geral, nossa vida é toda de monotonia e rotina; há tédio, sentimento de frustração, e desejamos algo mais do que meras conclusões lógicas, crenças religiosas e ideologias. Acho, por essa razão, que bem valeria a pena empregarmos esta tarde em investigar o que às apalpadelas estamos buscando. Qual a força que nos impele a essa busca? É possível distingui-la com precisão? Pode-se saber que impulso é esse? Não nos interessam apenas os impulsos, as compulsões e temores mais superficiais; queremos saber o que é que estamos buscando, com toda a nossa vida, nossa total existência. Pode-se investigar isso inteligentemente? Por certo, se não compreendemos essa busca, e a pressão, a compulsão que a determina, ela pode ser inteiramente vã e sem significação.
Assim, como pode uma pessoa investigar, por si mesma, o que está a buscar? Se somos velhos, desejamos paz, segurança, conforto; e se somos jovens, queremos prazeres, sensações, êxito na vida. E se o sucesso se nos torna inalcançável, queremos alguma coisa que nos faça valer aos olhos de outros. Assim, pois, cada um de nós está a tatear no escuro, em busca de alguma coisa; e que coisa é essa? O que nos move é o desejo de descobrir o verdadeiro ou se existe algum estado permanente? Ou é satisfação mundana o que estamos buscando, uma posição melhor em nossos diversos ambientes?
Seria verdadeiramente desejável examinarmos a fundo esta questão, uma vez que, ao se tornarem bem claros os nossos impulsos interiores, terá a vida significação toda diferente. Uma vez libertada a mente da compulsão, dos impulsos que a tangem, da confusão, talvez não haja mais busca e, sim, uma coisa completamente diversa - o sentimento da própria liberdade. Pode-se, pois, descobrir, por nós mesmos, qual o impulso que nos tange à busca, que aqui nos trouxe para escutar? Ou existem tantos impulsos diferentes, tantos prazeres, que se torna impossível separá-los uns dos outros, para descobrirmos o impulso inicial? Considero importante o descobrimento do impulso inicial, pois, do contrário, nenhuma significação tem a nossa busca.
Conhecemos muitas pessoas que não se cansam do dizer que estão buscando Deus, a verdade, a imortalidade, a virtude, etc., etc.; mas uma tal busca pouco significa e se acaba tornando pura mania. Parece-me bem significativo o fato de serem tão poucos - dentre os que andam buscando - os que já descobriram algo verdadeiramente profundo e significativo. É a felicidade o que buscamos, o sentimento de estarmos preenchidos? Se buscamos sem compreender o que determina essa ânsia, nossas vidas permanecerão superficiais, pois o que se toma mais importante para nos e o preenchimento próprio; e o preenchimento nunca se completa. No momento em que uma pessoa se preenche, há sempre mais alguma coisa em que preencher-se.
São muito poderosos os nossos impulsos, e se não compreendermos o inteiro significado dessa compulsão interior, a mera busca, a meu ver, nada exprime. Verificar o que desejamos e o motivo que nos impele a desejar, isso, sem dúvida nenhuma, é essencial. Vendo-nos na incerteza, confusos, cheios de medo, desejamos, quiçá, refugiar-nos numa certa fantasia que chamamos realidade, numa certa esperança, numa certa crença. Se compreendêssemos, por nossos próprios meios, por que razão a mente sempre busca a segurança, talvez então alcançássemos algo, que não seria segurança, porém uma confiança de nova ordem. Eis porque considero importante examinarmos profundamente esta questão.
Afinal de contas, é função da sociedade e dos governos promover a segurança exterior. Mas a questão é que desejamos também estar seguros psicologicamente, interiormente, sendo por isso que nos identificamos com a nação, a religião, uma ideologia, uma crença. Nunca indagamos verdadeiramente se existe segurança interior e, no entanto, estamos sempre a buscá-la; e essa própria busca de segurança interior, psicológica, é o verdadeiro empecilho à segurança exterior - não achais? E é isso, obviamente, o que está acontecendo no mundo inteiro, Em virtude de nossa busca de segurança psicológica, por meio do nacionalismo, do líder, da ideologia, destrói-se a segurança física. Assim sendo, pode a mente, que está a buscar sua permanência em todas as coisas - por meio de “minha pátria”, “minha religião”, por meio de inúmeros dogmas, crenças, idéias - descobrir, por si mesma, se de fato existe tal coisa: a permanência, a segurança interior?
Nunca indagamos se há verdadeiramente possibilidade de segurança interior; e bem pode ser que tal coisa não exista. Esse próprio desejo de buscar segurança, permanência, para nós mesmos, bem pode ser o fator que está condicionando a mente e impedindo a compreensão do verdadeiro. Pode, assim, a mente libertar-se de sua ânsia de segurança? Isso é possível, sem dúvida, mas só quando a mente se acha na mais completa incerteza não a incerteza que é o oposto da certeza, porém o estado em que nada se sabe e nada se busca. Afinal de contas, nunca se poderá encontrar uma coisa nova, enquanto nossa mente estiver carregada de coisas velhas - todas as crenças, temores e latentes compulsões, que motivam a nossa busca de segurança. Enquanto buscarmos a segurança, sob qualquer forma que seja, interior ou exterior, não pode deixar de haver caos e sofrimentos. E se observarmos a nós mesmos, veremos que é isso o que estamos fazendo a todas as horas. Por meio da propriedade, do dinheiro, da virtude, da posição, da fama, estamos procurando, constantemente, produzir o sentimento de nossa permanência. E não achais importante descobrir se a mente pode libertar-se completamente desse processo? É-nos possível experimentar realmente, por nossos próprios meios, o significado da compulsão que motiva a ânsia de segurança? Pode-se experimentar isso diretamente, e não mais tarde, noutra ocasião, porém agora, que estamos examinando a questão? Pode-se observar essa ânsia de segurança e verificar se tem alguma validade, e a fonte de onde promana?
E, se a observamos, que acontece? Sentimos, então, que se não estivéssemos interiormente seguros, se não nos identificássemos com inumeráveis idéias, ideologias, crenças, nacionalismos, seríamos nada, seríamos vazios, seríamos sem importância. Por conseguinte, nossa reação imediata é fugir a esse sentimento de vazio, buscando alguma forma de riqueza interior, um certo sentimento de preenchimento; e constituímos líderes, para seguirmos, doutrinas e autoridades a que obedecermos. Mas nossa pobreza, nossa miséria interior continua; vemo-nos numa luta perene; e nunca experimentamos diretamente, de fato, esse estado de insuficiência interior, de vazio interior. Porém, se pudéssemos examiná-lo, experimentá-lo diretamente - o que significa não fugir dele, recorrendo a um livro, ligando o rádio - sabeis das numerosas coisas que fazemos para fugir - se pudéssemos experimentar completamente aquele estado, acho que então verificaríamos que esse vazio tem uma diferente significação. Mas estamos sempre tentando fugir, não é verdade? - para a igreja, o patriotismo, a ideologia, a crença. Entretanto, se pudéssemos compreender a futilidade da fuga a esse sentimento de pobreza interior, e o observássemos, o examinássemos, com paciência, sem condenação, talvez então nos fosse revelada uma coisa de todo diferente.
Mas é dificílimo, não achais? - libertarmo-nos do medo, da ambição, da inveja. Atualmente, estamos sempre e sempre procurando firmar nossa própria segurança pela identificação com algo maior do que nós, seja uma pessoa, seja uma idéia. Mas, se há verdadeiro empenho em nosso esforço por descobrir a verdade, a realidade, ou Deus, temos, em primeiro lugar, de nos libertarmos, por inteiro, de todos os nossos condicionamentos. Significa isso que precisamos ser capazes de estar totalmente sós e de encarar a verdade relativa ao que é, sem procurarmos nenhum meio de fuga. Se experimentardes isso, vereis que a mente, quando está verdadeiramente disposta a examinar de modo completo o problema da busca de segurança, disposta a examinar o seu próprio vazio, cabal e totalmente, sem desejo de fuga - vereis que essa mente se torna muito tranqüila, só, livre, criadora. Esse estado criador não resulta de nenhuma luta, nenhum esforço, nenhuma busca; é o estado em que a mente, percebendo a verdade relativa a seus temores e invejas, está vigilante e silenciosa. Esse estado pode ser - e penso que é - o Real.
PERGUNTA: O sofrimento leva-nos, por fim, à paz e à vigilância interiores?
KRISHNAMURTI: Não me parece. Pensamos no sofrimento como um meio de se alcançar uma outra coisa o céu, a paz, etc. - e por essa razão fizemos do sofrimento virtude. Mas, que se entende por sofrer? Como surge o sofrimento? O sofrimento é o sentimento de uma perturbação, não é verdade? - uma perturbação interna, psicológica. Não estou falando agora do sofrimento físico, que tem seu significado próprio; estamo-nos referindo ao sofrimento psicológico, que se manifesta quando nos vemos frustrados, abandonados, quando não compreendemos o processo de nosso próprio ser, a complexidade de nosso pensar.
Que sucede quando sofremos? Procuramos aproveitar nosso sofrimento como meio de alcançarmos outra coisa, não é verdade? - dizemos que ele nos torna mais inteligentes, conduz à paz, ao esclarecimento; ou procuramos imediatamente evitá-lo, por meio das idéias, dos entretenimentos, de distrações de toda ordem. Vem o sofrimento quando existe ignorância, a falta de conhecimento do funcionamento de nossa mente; quando a mente está retalhada por desejos contraditórios, pela solidão, a comparação, a inveja. Mas, se compreendermos inteiramente o processo da ignorância, da inveja, se o encararmos, o enfrentarmos em sua totalidade, sem o desejo de fuga ou de condenação, talvez então vejamos que não há nenhuma necessidade de sofrimento. Não se encontrará a paz pelo sofrimento nem por outro meio qualquer. Só vem a paz ao compreendermos o funcionamento de nossa própria mente e quando, graças a essa compreensão, cessa o processo do pensamento.
PERGUNTA: Porque percorreis o mundo a pregar? É porque vos preencheis ou porque pensais que, desse modo, podeis ajudar aos outros?
KRISHNAMURTI: Se eu andasse a pregar com o fim de ser útil, todos se tornariam meus seguidores, não é verdade? Não é isso que está acontecendo pelo mundo, hoje em dia? Andamos todos à procura de líderes, instrutores, para ajudar-nos a sair de nossa confusão, e o resultado tem sido apenas nos tornarmos mais confusos, mais caóticos. Não creio em tal maneira de ajudar; creio, unicamente, na compreensão total. Todos desejamos ser ajudados, todos queremos guias, líderes, alguém para seguirmos; política, social e religiosamente, é isso o que queremos. E daí resulta exploração, não achais? Resulta o espírito totalitário - os que guiam e os que são guiados. Enquanto estivermos na dependência de outro para termos paz interior, não encontraremos essa paz, porque a dependência só pode gerar o medo. Não é por essa razão que prego. É, então, porque isso me preenche, me dá o sentimento de estar ajudando, me dá aprazimento, popularidade, etc.?
Digo-vos que não. Porque falo, então? Acho que esta pergunta é irrespondível; é o mesmo que perguntar à flor: “Porque refulgis ao sol?”.
Se eu estivesse tentando ajudar-vos ou tentando preencher-me, estar-me-ia colocando na posição do homem que sabe, e a vós na posição dos que não sabem; portanto, eu me estaria utilizando de vós, e vós de mim. Ao contrário, porém, eu penso que no momento em que uma pessoa se torna cônscia de que sabe, já não sabe. Quando uma pessoa se torna cônscia de sua virtude, sua humildade, ou seja o que for, já não é virtuosa. O que aqui estamos tentando é compreender a nós mesmos, porquanto só o autoconhecimento pode apresentar-nos a realidade. Não estamos tentando descobrir quem é que sabe, quem é que pode ajudar, e quem é que não sabe. Afinal, que é que sabemos realmente? Muito pouca coisa, penso eu. Podemos possuir vastos conhecimentos técnicos, saber construir uma ponte, saber pintar, etc.; mas pouquíssimo sabemos a respeito de nós mesmos, das tendências de nossa mente, dos impulsos da ambição e da inveja. Só a mente que está cônscia de que não sabe, que está totalmente cônscia de sua ignorância - só essa mente pode estar em paz. A mente que se limitou a acumular experiência, conhecimentos, ou que adquiriu um grande cabedal de conhecimentos técnicos, se acha num conflito infindável.
Quando a mente já não está pejada da lembrança das coisas que aprendeu, quando está pronta a morrer para todos os conhecimentos acumulados, só então poderá ela saber o que significa ter paz. Acho que a maioria de nós já tem experimentado, ocasionalmente, esse estado de total ausência do “eu”. Mas, na, maior parte do tempo, vemos-nos tão ocupados com superficialidades, que nos escapam as coisas reais da vida.
PERGUNTA: Li num livro americano que parece provar convincentemente, por meio da hipnose, que a reencarnação é um fato. Que comentais a isso?
KRISHNAMURTI: Aí está uma questão um tanto complexa, e acho necessário examiná-la convenientemente. Todos sabemos que existe a morte. O organismo físico tem de acabar-se, uma vez que se consome pelo uso; e desejamos saber se há continuidade após a morte. Todas as coisas que conhecemos e experimentamos têm fim e, por essa razão, indagamos o que será de nós depois. Este problema surge em todo mundo. No Oriente, a reencarnação é aceita como crença, e o autor desta pergunta diz que se escreveu um livro que prova, por meio da hipnose, que uma pessoa teve vidas anteriores; e queremos, portanto, saber se a reencarnação é um fato. Não sei se credes que o pensamento é independente do corpo, independente do organismo físico. Temos um organismo, reações nervosas e pensamentos; e, assim, perguntamos se o pensamento continua após a morte.
Ora, que acontece quando fazemos tal pergunta? O fato verdadeiro é que desejamos continuar a existir, não é exato? - ou, também, achamos preferível o aniquilamento. Tanto num como noutro caso, a mente selecionou a teoria que melhor lhe convém. Se credes, ou não, na reencarnação, isso pouco importa; mas pode-se descobrir a verdade a esse respeito, a verdade a respeito da morte? A todos nos agrada pensar que existe uma alma eterna, e aceitamos várias crenças que nos ensinam que a alma é uma entidade espiritual que transcende o organismo físico. Mas a crença numa idéia, por mais confortante e animadora que seja, não nos dá perfeita compreensão da morte. Sem dúvida, a morte é algo totalmente desconhecido, algo completamente novo, e, por mais ansiosamente que investiguemos esta questão, não encontraremos resposta satisfatória. Tudo o que conhecemos está encerrado nos limites do tempo, e o que somos é apenas uma acumulação de memórias e experiências do passado. Determinamos nossa própria entidade por meio da memória - memória de “minha casa”, “meu nome”, “minha família”, “meu saber”, “minha pátria” - e queremos que esse “eu” tenha continuidade no futuro. Ou, ainda, dizemos: “A morte é o fim de tudo” - o que também não representa solução alguma.
Pois bem. Pode-se descobrir a verdade acerca da morte? Sabe-se que buscamos a continuidade do “eu”. O pensamento vive numa perpétua busca de permanência e, por essa razão, dizemos que deve haver alguma forma de continuidade. O pensamento é contínuo, não? E enquanto existir o desejo de continuidade fortaleceremos cada vez mais a idéia do “eu” e de “minha própria importância”. Pode ser que o pensamento continue, assuma outra forma, e a isso se chama reencarnação. Mas, aquilo que tem continuidade poderá conhecer o imensurável, o atemporal? Poderá ser criador? Ora, por certo, Deus, a Verdade, ou como o chamardes, não pode ser encontrado nos limites do tempo. Deve ser algo inteiramente novo, e não coisa criada pelas nossas próprias esperanças e temores. E, todavia, a mente deseja a permanência, não é verdade? Por conseguinte, diz: “Deus é permanente” e “eu terei continuidade depois desta vida”.
Como vedes, o problema não é a reencarnação, mas, sim, o fato de buscarmos a permanência, nesta vida e depois dela. Enquanto a mente buscar a segurança, em qualquer sentido que seja, através do nome, da família, da posição, da virtude. etc., continuará a existir o sofrimento. Só a mente que morre dia a dia, de momento a momento, para tudo o que acumulou - só essa mente pode conhecer a verdade. E, então, talvez descubramos que não existe divisão entre a vida e a morte, porém, unicamente, um estado todo diferente, em que o tempo, tal como o conhecemos, não existe.
15 de maio, de 1956
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