Quando falamos de meditação, temos de ver muito claramente se o fazemos com a intenção de fugir da vida — da rotina diária, do tédio, da ansiedade e do medo — ou se a encaramos como um modo de viver. Temos de ver se, através da meditação, procuramos evadir-nos totalmente deste mundo disforme e louco ou se, pelo contrário, ela é exatamente compreender, atuar, e estar inteiramente na vida. Se queremos evadir-nos, há então várias escolas, como os mosteiros Zen, no Japão, e muitos outros sistemas. podemos compreender a tentação que tudo isso representa, porque a vida, tal como está, é extremamente desumana, disforme, competitiva, desapiedada; tal como está, não tem qualquer sentido. Quando os Hindus oferecem os seus sistemas de Yoga, os seus “mantras”, a repetição de palavras, etc., pode-se, é claro, ser tentado a aceitar isso com bastante facilidade e sem muita reflexão, porque tudo isso promete uma recompensa, um sentimento de que a evasão é compensadora… Uma mente embotada pode pensar em Deus, na virtude, na beleza, mas continuar pouco sensível, sem inteligência e vivacidade. Não estamos de modo nenhuma interessados nessas várias formas de fuga.
A meditação não consiste em fragmentar a vida; não é retirar-se para um mosteiro, ou para um quarto, e estar em sossego, durante dez minutos ou uma hora, a tentar concentrar-se, a tentar aprender a meditar, enquanto em relação a tudo o mais se é um ser humano insensível e deformado.
Pomos de lado tudo isso, por ser destituído de inteligência e fazer parte de um estado de espírito incapaz de ter realmente a percepção do que é a verdade; porque para compreender o que é a verdade é preciso ter uma mente penetrante, lúcida, rigorosa; não uma mente astuciosa, deformada, mas uma mente capaz de ver sem qualquer distorção, uma mente inocente e aberta; só assim se pode ter o percebimento do que é a verdade. Uma mente preenchida com conhecimentos também não pode estar disponível para ver o que é a verdade; só uma mente inteiramente capaz de aprender é capaz desse percebimento. Aprender não é acumular conhecimento; aprender é um movimento de momento a momento.
Não apenas a mente mas também o corpo têm de estar altamente sensíveis. Não se pode ter um corpo embotado, indolente, pesadamente alimentado de carne e de vinho e tentar depois meditar — não faz sentido. Portanto, se examinarmos esta questão profundamente e com muita seriedade, veremos que a mente tem de estar altamente desperta, sensível e inteligente, inteligência esta que não nasce do conhecimento.
Mas, vivendo neste mundo tão cheio de sofrimentos, tão aprisionado na miséria, na dor e na violência, será possível trazer a mente a um estado altamente sensível e inteligente? Este é o primeiro ponto, um ponto essencial em meditação. Segundo: uma mente que seja capaz de percepção lógica, sequencial; sem estar distorcida ou neurótica. Terceiro: uma mente altamente disciplinada. A palavra “disciplina” significa “aprender”, e não “ser treinado”. Disciplina é um ato de aprendizado — a própria raiz da palavra significa isso. Uma mente disciplinada vê todas as coisas com muita clareza e objetividade, não de modo emocional, não sentimentalmente. Estas são as necessidades básicas para descobrir aquilo que está além da medida do pensamento, algo não arquitetado por ele, e que é capaz da mais alta forma de amor — uma dimensão que não é uma projeção da mente limitada que se tem.
Criamos a sociedade e essa sociedade condiciona-nos. As nossas mentes são deformadas e pesadamente condicionadas por uma moralidade que não é moral; a moralidade da sociedade é imoralidade, porque a sociedade admite e estimula a ambição, a violência, a competição, a avidez, etc., que são essencialmente imorais. Não existe amor, atenção para com o outro, afeição, ternura, e a “respeitabilidade social” da sociedade é uma desordem extrema. A mente, que foi treinada durante milhares de anos para aceitar, para obedecer e ajustar-se, não é capaz de ser altamente sensível e portanto altamente virtuosa. Estamos aprisionados nesta armadilha. Sendo assim, que é então virtude? Porque ela é necessária.
Sem as bases adequadas, um matemático não vai muito longe. Do mesmo modo, se queremos compreender e ir mais além, até algo que é uma dimensão totalmente diferente, temos de alcançar a base correta;e essa base é virtude, que é ordem — mas não a ordem da sociedade, que é desordem. Se não tiver ordem, como é que a mente é capaz de ser sensível, cheia de vida, livre?
Virtude não é evidentemente a conduta repetitiva do ajustamento a um padrão que se tornou “respeitável”, e que o Sistema, quer neste país quer no resto do mundo, aceita como moralidade. Temos de ser muito claros, em reação ao que é virtude. Ela surge;não pode ser cultivada, tal como não se pode cultivar a humildade ou o amor. A virtude surge — com a sua beleza, a sua ordem natural — quando sabemos o que ela não é; pela negação descobrimos o positivo.
Não é definindo o positivo e imitando-o depois que a virtude nasce — isso não é virtude. Cultivar várias formas do que “deveria ser”, e a que as pessoas chamam de virtude — como a não-violência, por exemplo — “praticando-as” dia após dia, até se tornarem mecânicas, não tem sentido.
A virtude existe de momento a momento, como a beleza, como o amor. Não é algo que se acumule e a partir do qual se atue.Isto não é uma simples afirmação, para se aceitar ou não aceitar. Há desordem — não só na sociedade, mas também em nós mesmos, desordem total — e não se trata de criar ordem numa parte de nós, ficando o resto no campo da desordem; isso é outra dualidade e portanto contradição, confusão e luta. Onde há desordem tem de haver escolha e conflito. Só a mente que está confusa escolhe; para aquela que vê todas as coisas muito claramente, não existe escolha. Se estou confuso, as minhas ações serão também confusas.
A mente que vê com grande lucidez, sem distorção, sem qualquer preconceito pessoal, compreende a desordem e fica livre dela; essa mente é virtuosa, tem uma ordem natural — ordem, não de acordo com os Comunistas, os Socialistas, os Capitalistas ou qualquer Igreja, mas a ordem de quem compreendeu toda a medida da desordem dentro de si mesmo.
A ordem interior é semelhante à ordem absoluta das matemáticas. A mais alta ordem interior é como um absoluto; e não é cultivando-a que ela surge, nem é pela “prática”, pela opressão, pelo controle, pela obediência e pelo conformismo. Só a mente altamente dotada de ordem é capaz de ser sensível, de ser inteligente.
Cada um deve tomar consciência da desordem dentro de si mesmo, aperceber-se das contradições, dos conflitos dualistas, dos desejos opostos, das preocupações ideológicas e seu irrealismo. Tem de se observar aquilo que é, sem condenar, sem “julgar”, sem “avaliar”: vejo este microfone como microfone que é — não como algo de que gostou ou não gosto, considerando-o “bom” ou “mau” — vejo-o tal como é. Do mesmo modo, temos de ver-nos tal como somos, sem chamar “mau” ou “bom” àquilo que vemos, fazendo juízo de valor — o que não significa fazer o que nos apetece. Virtude é ordem. E não podemos ter dela uma “fotografia”, para depois nos ajustarmos; se fizermos isso, tornamo-nos imorais, ficamos em desordem.
Krishnamurti — conferência na Universidade de Brandeis