autoconhecimento
Eu sou o guarda do meu irmão
JK: (...) Pode a humanidade viver sem conflito?... Podemos ter paz nesta terra? As atividades do pensamento nunca resultam em paz.
DB: Do que foi dito, parece claro que a atividade do pensamento não pode produzir a paz: gerar o conflito é algo que lhe é inerente.
JK: Sim, se nós realmente percebêssemos isso, toda a nossa atividade seria totalmente diferente.
DB: Mas o senhor está dizendo então que há uma atividade que não é pensamento? Que está além do pensamento?
JK: Sim.
DB: E que não só está além do pensamento mas que também não requer a cooperação do pensamento? Que é possível que essa atividade continue quando o pensamento está ausente?
JK: Este é o ponto fundamental. Já discutimos isso muitas vezes: se há alguma coisa além do pensamento. Não alguma coisa santa, sagrada — não estamos falando disso. Estamos querendo saber é, existe uma atividade que não seja influenciada pelo pensamento. E dizemos que ela existe. E que essa atividade é a forma suprema da inteligência.
DB: Sim; introduzimos agora a inteligência.
JK: Eu sei, eu a introduzi de propósito! A inteligência não é a atividade do pensamento astuto. Existe a inteligência para se construir uma corda...
DB: Bem, a inteligência pode usar o pensamento, como o senhor já disse muitas vezes. Ou seja, o pensamento pode ser a ação da inteligência — poderíamos nos expressar assim?
JK: Sem dúvida.
DB: Ou poderia ser a ação da memória?
JK: Aí é que está. Também pode ser a ação nascida da memória, e como a memória é limitada, o pensamento é limitado e tem sua própria atividade, a qual produz então o conflito...(...) Essa inteligência não tem nada a ver com a memória, com o conhecimento.
DB: Ela pode atuar na memória e no conhecimento mas não tem nada a ver com isso...
JK: Isso mesmo. Eu quero dizer: como o senhor descobre se essa inteligência tem alguma realidade e não é apenas imaginação ou ficção romântica? Para se chegar a isso, é necessário examinar toda a questão do sofrimento, se há um fim para o sofrimento. E enquanto o sofrimento, o medo e a busca de prazer existirem, não pode haver amor.
DB: Temos aqui muitas questões. Sofrimento, prazer, medo, raiva, violência e ganância — tudo isso são respostas da memória.
JK: Sem dúvida.
DB: Não tem nada a ver com a inteligência.
JK: Todos são parte do pensamento e da memória.
DB: E enquanto isso continuar, parece que a inteligência não pode operar no pensamento, ou através do pensamento.
JK: Isso mesmo. Precisamos, portanto, nos libertar do sofrimento.
DB: Bem, esse é o ponto fundamental.
JK: Essa é uma questão realmente muito séria e profunda: se é possível acabar com o sofrimento, que é o fim do eu.
DB: Sim, pode parecer redundante, mas a sensação é a de que eu estou aqui, e que posso sofrer ou não. Ou desfruto as coisas ou sofro. Contudo, acho que o senhor está dizendo que o sofrimento provém do pensamento; que ele é o pensamento.
JK: Identificação. Apego.
DB: Então, quem é que sofre? A memória pode produzir prazer e, desse modo, quando ela não é eficaz, produz o oposto do sentimento de prazer — dor e sofrimento.
JK: E não só isso. O sofrimento é muito mais complexo, não?
DB: Sim.
JK: O que é o sofrimento? O significado da palavra é ter dor, aflição, sentir-se completamente perdido, só.
DB: Parece-me que não é apenas dor, mas uma espécie de dor muito penetrante, total... (...) Algumas pessoas acham qe através do sofrimento elas se tornam...
JK: ...Inteligentes?
DB:... Purificadas, como se tivessem passado por um crisol.
JK: Eu sei. Que através do sofrimento você aprende. Que através do sofrimento o seu ego desaparece, se dissolve.
DB: Sim, se dissolve, aprimora-se.
JK: Não é verdade. As pessoas sofreram muito, quantas guerras, quantas lágrimas, sem falar na natureza destruidora dos governos. E o desemprego e a ignorância...
DB:... Ignorância da doença, da dor, de tudo. Mas o que é realmente o sofrimento? Por que ele destrói a inteligência, ou a impede? O que acontece?
JK: O sofrimento é um choque; eu sofro, tenho uma dor — eis a essência do "eu".
DB: A dificuldade em relação ao sofrimento é que o eu é que está ali, que está sofrendo.
JK: Sim.
DB: E, de algum modo, esse eu está sentindo realmente pena de si mesmo.
JK: O meu sofrimento é diferente do seu.
DB: Sim, ele se isola. Cria um tipo de ilusão.
JK: Não percebemos que o sofrimento é compartilhado por toda a humanidade.
DB: Sim, mas se chegássemos a perceber que ele é compartilhado por toda a humanidade?
JK: Então começo a questionar o que é o sofrimento. Ele não é o meu sofrimento.
DB: Isso é importante. Para compreender a natureza do sofrimento, preciso me desfazer dessa ideia de que ele é meu sofrimento porque, enquanto acreditar que ele é meu, terei uma noção ilusória do problema como um todo.
JK: E nunca poderei acabar com ele.
DB: Se você está lidando com uma ilusão, nada pode ser feito a respeito dela. (...)
JK: O sofrimento é comum a toda a humanidade.
DB: Mas o fato de ser comum não é suficiente para torná-lo o mesmo para todos.
JK: Ele é real.
DB: O senhor está dizendo que o sofrimento é único, inseparável?
JK: Sim, é o que eu venho dizendo.
DB: Assim como a consciência humana?
JK: Sim, isso mesmo.
DB: De modo que quando alguém sofre, toda a humanidade está sofrendo?
JK: A questão é a seguinte: temos sofrido desde o princípio e nunca encontramos uma solução para isso. Não acabamos com o sofrimento.
DB: Mas eu acho que o senhor disse que a razão pela qual não encontramos uma solução é porque o consideramos como algo pessoal, ou pertencente a um pequeno grupo... e isso é uma ilusão.
JK: Sim.
DB: E qualquer tentativa de se lidar com uma ilusão não pode resolver coisa alguma.
JK: O pensamento não pode resolver nada psicologicamente.
DB: Porque o senhor pode dizer que o próprio pensamento divide. O pensamento é limitado e incapaz de perceber que esse sofrimento é único. Desse modo, ele o divide em meu e seu.
JK: Isso mesmo.
DB: E isso cria a ilusão, que só pode multiplicar o sofrimento. Parece-me então que a firmação de que o sofrimento é único, não pode ser separado da afirmação de que a consciência humana é única.
JK: O mundo sou eu: eu sou o mundo.(...) O mundo da sociedade, principalmente o mundo psicológico.
DB: Dizemos então que o mundo da sociedade, dos seres humanos, é um só, e o que significa quando digo que eu sou o mundo?
JK: Que o mundo não é diferente de mim.
DB: O mundo e eu somos um. Somos inseparáveis.
JK: Sim. E essa é a verdadeira meditação; você precisa sentir isso, não apenas como uma afirmação verbal; trata-se de uma realidade. Eu sou o guarda do meu irmão. (...) Assim sendo, essa inteligência é real? Você compreende a minha pergunta? Ou trata-se de alguma espécie de projeção fantasiosa, na esperança de que ela resolverá nossos problemas? Eu não penso assim. Ela é uma realidade. Por que o fim do sofrimento significa amor.
Krishnamurti e David Bohm em, O Futuro da Humanidade
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