Inteligência Integral
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Inteligência Integral


INTELIGÊNCIA INTEGRAL: O DESAFIO TRANSDICIPLINAR
Roberto Crema

O crescimento exponencial do conhecimento, desconectado de uma visão global; os perigos de uma tecnociência triunfante e efetiva, desvinculada da consciência planetária e do afetivo; enfim, de um obscurantismo nefasto causado por um saber crescentemente acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido faz do religar conhecimento ao amor o mais instigante desafio do momento. Nesse sentido, vale recordar as palavras de Martin Heidegger: Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facilmente acessível. Mas também nenhuma época soube menos o que é o homem. A constatação é óbvia: diante dos cenários da mundialização, nenhuma inteligência meramente especializada pode responder satisfatoriamente, pois os problemas são globais. Necessitamos de uma inteligência integral, para fazer frente aos tremendos desafios deste século que está nascendo, entre gemidos e risos de uma humanidade em processo de parto. Como afirma o conhecido axioma holístico, Pensar globalmente, agir localmente. Para não agir loucamente, vale acrescentar.

O desafio transdisciplinar é um dos mais instigantes e importantes, nos horizontes contemporâneos. Desde 1986 que a Declaração de Veneza lançou um brado, com valor também de senha, que podemos traduzir como Pontes sobre todas as fronteiras. No documento de Locarno, de 1992, foram destacados os quatro pilares de uma educação transdisciplianr: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a Ser. Testemunhando nossa vocação de flexibilidade, integração e de abertura, esta proposta conspiratória e lucidamente radical, que questiona as raízes, encontra-se nas grades curriculares do Ministério da Educação de nosso país.

Aprender a conhecer e a fazer de forma integrada, através da experiência viva e com discernimento continua sendo uma arte a ser devidamente aplicada e aperfeiçoada. Para tal, necessitamos de uma escola do Olhar, pois a visão é a véspera do conhecimento. Abrir o olhar para si, para o outro, para o Universo e o Totalmente Outro, eis uma lição fundamental. Um olhar fluídico, que não fica paralisado num único alvo, capaz de acompanhar a dança do agora. Mudar o mundo é mudar o modo de olhar... Necessitamos, também, de uma escola da Escuta. Escutar antecede compreender. Precisamos transcender esta crise ab-surda, esta surdez diante dos alaridos e canções da realidade.

Não será esta a tarefa fundamental da escola: facilitar que o Aprendiz da Vida, a grande Mestra, incline o seu coração para aprender com os próprios passos, para florescer plenamente onde os seus pés foram plantados? Enfim, como aprender a viver com? Como aprender a ser só, a só Ser, na afirmação do poeta? O cultivo destes fundamentos, para os quais nos convocam o documento de Locarno, é uma grandiosa aventura de reencantamento do mundo e da própria existência.

Estranhamente persiste, em nosso meio, a popular ilusão de que o ser humano se torna plenamente humano, de forma automática, desde que haja as salutares condições básicas e higiênicas. Acontece que nós não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um processo de autorealização que exige um enorme investimento de tempo e de energia, em trilhas evolutivas. O ser humano introduziu uma outra qualidade de evolução neste planeta: a evolução consciente e intencional. Sinto ter que dizer que ser humano dá muito trabalho... Darwin, como um bom naturalista, compreendeu a evolução natural. Acontece que, como sempre nos lembra Leloup, o ser humano é uma mistura de genes e de aventura. É uma possibilidade, um devir, um embrião de plenitude em cada um de nós. Como afirma a sábia parábola, daquele que foi um ícone de totalidade e plenitude humana, há que se investir nos talentos que nos foram confiados. Os que, medrosa e indolentemente os enterram, não serão convidados para o banquete da excelência, conformando a horda medíocre da normose.

Uma nova educação precisa transgredir a normose reinante e decadente. Com suavidade e vigor, com paciência e atrevimento, com flexibilidade e destemor. É com este intuito que quero apontar para esta epopéia a ser desbravada: educar para a Vida, educar para a excelência, educar para Ser.

No cerne da crise contemporânea encontra-se o que tenho denominado de síndrome de analisicismo. Os seus sintomas são muito evidentes: a competitividade extremada, o exercício sistemático da brutalidade, a compulsividade de controlar e subjugar – dividir para reinar! -, a religião do consumismo e a falta generalizada de cuidado, ou seja, o desamor. O império do analisicismo é caracterizado por uma dissociação crônica e pela supressão do reino da interioridade, da subjetividade, da desconexão com o sagrado, determinada pelo mito da objetividade. O sujeito degenerou-se em objeto...

Uma educação que queira facilitar a arte de conviver terá que se lançar na revolucionária proposta de uma alfabetização psíquica. Trata-se da tarefa ousada e imprescindível de colocar a alma nos bancos escolares, desde o pré-primário até as universidades, facilitando que o aprendiz desenvolva inteligência psíquica. Sobretudo com o desenvolvimento das funções básicas, pesquisadas por Jung: pensamento, sentimento, sensação e intuição. A educação convencional apenas tem se ocupado, de forma fragmentada, com o pensamento e a sensação. Incluir em nossos currículos o tema do sentimento e da intuição, harmonizando-as e integrando-as com as demais, é uma tarefa de grande alcance e pertinência, visando o resgate de uma consciência mais vasta, de integridade e de inteireza.         Educar a alma é desenvolver, também, a inteligência emocional. Sabemos que há emoções naturais, que representam verdadeiros mecanismos homeostáticos, que ajudam o organismo na sua sobrevivência individual e coletiva. Necessitamos de uma pedagogia do afeto, que facilite o desenvolvimento de vínculos afetivos. A alegria é uma lição fundamental, na escola da existência. A tristeza é uma estratégia saudável, no contato com as perdas. Aprender a lidar com a raiva é imprescindível, na relação com o mundo. E o medo é outra lição que precisa ser trilhada, no confronto com o desconhecido.

A alfabetização psíquica solicita, também, o desenvolvimento da inteligência relacional. Carl Rogers afirmava que o grupo foi a maior descoberta do século XX. Neste século, foram criadas e aperfeiçoadas técnicas e dinâmicas de grupo, variadas e sofisticadas. Por que não empregá-las no cotidiano escolar? Como aprender a conviver sem o exercício do envolvimento grupal e comunitário, com uma facilitação competente, de forma a se adquirir competências atitudinais diante dos conflitos, dificuldades e impasses do coexistir? Uma educação profilática é a que facilita a aquisição de responsabilidade, ou seja, habilidade em responder. Assim, a educação exerceria a sua função preventiva, diante de tantas mazelas, a nível individual, social e ambiental, derivadas da ignorância psíquica, do desconhecimento dos recursos da alma.

O desenvolvimento da inteligência onírica é outro imperativo e constitui um capítulo muito importante na nova educação. Sonhar constitui um nível de realidade que tem a sua lógica própria, complementar à da vigília. Nessa direção, outra tarefa bastante nobre de uma educação integral é a de facilitar a abertura de visão e de escuta para o exercício de uma inteligência hermenêutica, que habilite o educando a interpretar e compreender os sonhos, pesadelos, tombos, encontros e desencontros da jornada existencial.

Educar requer, ainda, uma abertura para a pedagogia contemplativa, da meditação, do despertar da plena atenção, tão enaltecida pelos antigos e atuais mestres da consciência. Todas as grandes tradições sapienciais são dotadas de tecnologias de desenvolvimento da qualidade noética, do despertar de uma escuta silenciosa, para abrir seu coração para o novo. A mesmice dos trilhos acaba por enferrujar nossas relações, que se alimentam de novidade, de criação. Penso no maior educador do Ocidente que, ao iniciar o seu ensino público, realizou o milagre de transformar a água em vinho... Para a festa não acabar, afirma Leonardo Boff. Transformar a água de um cotidiano previsível e rotineiro no bom vinho de renovação e recriação permanente... eis uma lição básica da pedagogia perene. Este milagre de renovação emana da inteligência noética, trazendo encantamento e graça para um existir mais pleno.  Aqui nos deparamos com o pressuposto antropológico mais pleno, que integra corpo, alma, consciência e Essência. A dimensão noética é a de um espelho que reflete alguma coisa que está além da existência, o Sopro da Vida. Em hebraico, Ruah; em grego, Pneuma; em latim, Espírito. Enfim, a Fonte a partir da qual o reencantamento da existência torna-se possível. Existência é o que passa; Vida é o que É, o que resta quando já nada mais resta, o toque de eternidade na finitude de nosso existir.

Através da escuta noética, entretanto, podemos transpirar esta realidade essencial. Como afirmava Graf-Durckheim, saúde plena – acrescentemos também, educação plena – é quando a essência transparece na existência. É quando nos fazemos congruentes: o que pensamos coincide com o que somos; o que falamos coincide com o que pensamos; o que fazemos coincide com o que falamos...

Não é possível educar para a Vida, sem o resgate da autêntica espiritualidade. Para isto, temos que transgredir a normose educacional em voga, rumo a uma transdisciplinaridade, com a virtude da transculturalidade, que possa nos abrir os horizontes do potencial da espécie para o tema fundamental da transcendência, da transparência, enfim, da transfiguração, apanágio de uma educação centrada na consciência de inteireza. Quando a ignorância existencial se desfaz, o Sol da essência, que habita o relicário mais íntimo de nossas almas, poderá transparecer, iluminando e aquecendo nossas trilhas existenciais.

Estas lições são exper ienciais. O Sagrado é uma experiência, a partir da qual jorra os valores do respeito, da bondade, da fraternidade, da inclusividade. Para percorrermos a lição da sacralidade, necessitamos de todos os nossos olhos. O olho físico percebe a realidade física. O olho psíquico abrange o universo psíquico. O olho noético acolhe o espaço do Silêncio e do Imaginal, transparecendo a Essência. O Olho do Espírito penetra todos os olhares, abrindo-nos para a Realidade Viva, para a Mansão do Amor.

Finalmente, se não educarmos para a condição do Sujeito, seguiremos reduzindo tudo à condição objetal, na alienação imperialista de um único estado de consciência, com a sua lógica racional, empírica e materialista, elevada aos altares por um paradigma esgotado e ultrapassado. Uma educação integral é a que acolhe, de acordo com a física contemporânea, todos os níveis de realidade (somática, psíquica, noética e essencial) com as suas lógicas próprias e complementares.  A iniciação a um novo aprender a aprender, que religa razão ao coração, ciência à consciência, efetividade à afetividade, existência à essência, requer a adoção de uma abordagem transdisciplinar que nos favoreça um estado intensificado de aprendizado e de evolução: sair do cacoete para o samba!

(Síntese extraída por Jane Farias Chagas do texto apresentado no V Congresso Holístico Pan-Americano e VIII Congresso Holístico Nacional: Pedagogia Iniciática – Educar Para Ser, Roberto Crema, 2002).




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