Investigando o que — pensamos — ser amor
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Investigando o que — pensamos — ser amor


Vivemos neste mundo num estado de relação — relações entre o homem e a mulher, entre amigos, entre nós e nossas ideias, nossas posses, etc. A vida exige relações, e estas não podem existir quando a mente está se isolando em todas as suas atividades. Observem esse “processo” em si mesmos. Quando existem atividades egocêntricas, não há relações. Não importa se estão dormindo com outra pessoa na mesma cama, ou viajando num ônibus repleto de passageiros, ou contemplando uma montanha, se a mente de vocês está toda empenhada em atividades egocêntricas, é claro que só poderá nos levar ao isolamento; portanto, não há estado de relação.

 Ora, é por causa da agitação decorrente dessa atividade egocêntrica que a maioria de nós começa a investigar o que é amor, uma vez que toda atividade egocêntrica se baseia na busca do prazer e no evitar a dor. Enquanto estivermos investigando de um centro que existe para o seu próprio prazer, será inteiramente inútil e vã a nossa investigação. Para a verdadeira investigação, precisamos estar livres da atividade egocêntrica — e isso é dificílimo. Requer grande inteligência, muita compreensão e penetração, e, por conseguinte, uma mente lúcida: uma mente que não seja sentimental nem emocional, que não se deixa arrebatar pelo entusiasmo, porém, que esteja muito clara, vigilante, sensível a tudo o que a rodeia. Só essa mente pode começar a investigar o que chamamos “amor”.

Ora, que é o amor para a maioria de nós, que é ele realmente, e não como gostaríamos que fosse? O que gostaríamos que fosse o amor é uma mera ideia, um conceito, uma fórmula e, consequentemente, uma coisa sem validade alguma. Devemos começar com o que é, e não como que deveria ser. Devemos começar com o fato, e não com opiniões e conclusões. Conclusões, opiniões, fórmulas, são absolutamente desorientadoras e destrutivas. Uma maravilhosa utopia, concebida ou formulada por alguns espíritos engenhosos, sagazes, poderá deformar e destruir as vidas de milhares e milhões de indivíduos, porque de boa mente estarão dispostos a matar ou se deixarão matar em defesa dessa ideia. E a mesma coisa fazemos, interiormente, com nós mesmos. Temos uma fórmula, um sentimento, uma crença em que, para amar, devemos ser isto ou aquilo, e torturamos as nossas vidas, vivemos em agonia, porque queremos ajustar o fato — o que somos — ao ideal — o que deveríamos ser que é pura ilusão, mera invenção da mente e, portanto, sem nenhuma realidade.

Assim, vamos agora investigar, não partindo do que deveríamos ser, porém, do que é. Que é realmente o nosso amor? Nele, há prazer, dor, ansiedade, ciúme, apego, ânsia de posse, de domínio, e o medo de perdermos o que possuímos. Há o amor existente nas relações entre duas pessoas, e há o amor a uma ideia ou fórmula, quer relativa à pátria, quer a uma utopia ou Deus. Mas, falando a respeito de amor, só estamos nos referindo ao amor existente nas relações, e não àquela coisa venenosa chamada “amor à pátria”, a esse nacionalismo patriótico tão explorado pelo político e o sacerdote. Referimo-nos ao fato — ao amor realmente existente entre os entes humanos. Neste amor há dor, há tortura da incerteza, o ciúme, o medo da solidão e, por conseguinte, a ânsia de possuir, de dominar, prender. Tudo isso são fatos, não? Por essa razão, há o casamento legal, instituído pela sociedade para a proteção da prole. Mas a família, como unidade, está oposta a cada uma das outras “unidades” ou famílias. “Minha família” está em competição com todas as outras famílias do mundo. E no seio da própria família trava-se uma batalha incessante: o desejo de possuir, dominar, e daí, o medo, o ciúme, a ansiedade, sobre se somos amados ou se não somos amados, etc. É isso o que chamamos “amor”. E, embora a pessoa deva ter família, procura de várias maneiras fugir daquelas torturas: por meio de atividades sociais, ou tornando-se fanaticamente religiosa e ingressando em alguma pequena e insossa organização em que se cultiva a crença numa dada fórmula a respeito de Deus, de Jesus, de Buda, etc. Ou, ainda, interpretando as relações de família como algo muito superficial, uma passageira carga que teremos de suportar, e, por conseguinte, nos determinamos a leva-la até o fim.

Isso é o que chamamos “amor”. Ao nos tornarmos insatisfeitos com o chamado amor à família, passamos ao amor a Deus, o amor à humanidade, ou o amor ao próximo. Não sabemos realmente o que é o amor ao próximo. Não sabemos realmente o que é o amor, mas amamos a Deus, amamos ao próximo — pelo menos o dizemos. E ao mesmo tempo estamos destruindo o nosso semelhante com impiedosa ambição, por meio de astutas práticas comerciais e de todas as formas de competição existentes na moderna sociedade. Há também o chamado amor dos pais aos filhos — e vocês bem conhecem a verdadeira estrutura, as torturas desse jogo em que predomina o instinto de posse.

Agora, se somos sensíveis, vigilantes, se sentimos e observamos, sabemos de tudo isso. Disso estamos íntima e dolorosamente cônscios e, por essa razão, perguntamos se é possível um indivíduo ter vida de família, viver com sua mulher ou marido, com seus filhos, livre dessa tortura. Se é capaz disso, o indivíduo começa, então, talvez, a descobrir o que é o amor. O amor, com efeito, exige que vejamos a realidade de nossa vida cotidiana, não é verdade? Os insignificantes e diários incidentes correntes na família, no emprego, no ônibus, no carro, na estrada; o desrespeito que sentimos pelos outros — cientes que estamos de todas essas torturas, existe a possibilidade de colocarmos tudo isso de lado, realmente e não apenas teoricamente? É possível não termos apego, não querermos possuir, dominar ou ser dominados? Se seu marido ou esposa deseja ir para a companhia de outrem, há possibilidade de você não sentir ciúme, ódio, antagonismo? Por certo, só então se tornará possível a vinda desse algo desconhecido.

O amor que temos é o conhecido, com todos os seus sofrimentos e sua confusão; nele, há a tortura do ciúme, os horrores e penas de violência, o prazer sexual. É só isso que conhecemos, e não temos vontade de enfrentar esse fato inegável.

Como sabem, podemos viver com a beleza daquelas montanhas, e a ela nos habituarmos inteiramente. Ao fim de uma semana ou de dez dias, já não a notaremos sequer. Tornaremos nos como os aldeões, que não olham para as montanhas nem por um segundo, de tal maneira que se acostumaram com elas. Acostumamo-nos com a beleza, assim como nos acostumanos com a feiura; o importante não é a beleza nem a feiura, porém o fato de nos habituarmos com qualquer coisa. Acostumamo-nos com nossa vida, nossas torturas, nossas tribulações, nosso banal ambiente doméstico, com toda a feiura de nossa mente estreita vulgar. Não queremos ver mais longe, romper as cadeias desta confusão, descobrir e, assim, nos acostumamos com tudo. E, quando nos acostumamos com qualquer coisa que seja — beleza, tortura, ansiedade, feiura — nossa mente se torna embotada, insensível, desatenta, e, nesse estado, começa a ocupar-se com coisas de todo o gênero: Deus, religião, entretenimento, trabalho social, tagarelice, acumulação de conhecimentos, ou televisão.

O importante, pois, é estarmos conscientes dos fatos de nossa vida, de suas torturas, da ânsia de posse e de domínio, do conflito, das constantes correções, críticas, exigências — que vivamos com tudo isso sem nos acostumarmos; que de tudo isso estejamos cientes em vez de simplesmente o aceitarmos. Não quero dizer que devamos suportar essas coisas, nos abraçarmos com elas, porém, sim, que cumpre olhá-las e nunca evitá-las, nunca fugir delas. Devemos encarar os fatos de nossas relações diárias sem apresentar as razões de como devem ser as coisas. Considerar os fatos da vida dessa maneira requer muita energia, e essa energia só a temos quando não estamos fugindo desses fatos, por meio de crença, de explicações, da busca de sua causa, ou de outro modo. Se estamos completamente conscientes do que é, ou seja, se percebemos todas as suas complicações e sutilezas, se nos familiarizamos com o conhecido em todos os seus aspectos, então, talvez, teremos a possibilidade de nos libertarmos dele.
(...) Ora, que é isso a que estamos apegados tão desesperadamente? É, evidentemente, a memória das coisas passadas. Mas não é horrível percebermos que estamos apegados a algo já passado, ido, acabado, morto? É só isso o que conhecemos e por isso lhe estamos apegados. Estamos apegados ao conhecido.(...) O que tememos, pois, é perder o conhecido, ou seja o passado — o passado, que travessando o presente, cria o futuro; a isso é que estamos apegados.

Ora, quando nos apegamos a uma coisa passada, nossa mente, nosso coração, nosso ser inteiro, já estão mortos. Ainda que se trate de um profundo deleite, um intenso prazer, se a isso nos apegamos, nossa mente se torna uma coisa pequenina e feia, incapaz de viver realmente. Assim é nossa vida.  


(...) A maioria de nós não sabe o que é o amor. Conhecemos a dor e o prazer de amar, mas não vemos o fato que é o amor como vemos o fato que é uma montanha; desse modo, o amor é, para nós, algo desconhecido, tal como a morte. Mas, com a mente livre do conhecido apresenta-se aquilo que não se pode conhecer mediante palavras, experiência, visões, qualquer forma de expressão. Se não conhecemos o amor, se não conhecemos a extraordinária plenitude e riqueza da morte, jamais saberemos o que é viver sem tortura, sem ansiedade, sem as aflições de cada dia. 

Krishnamurti — O descobrimento do amor





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