Pergunta: Conforme pensa, assim se torna o homem. Não é essencial que saibamos uma forma de não ficarmos à mercê de nossos pensamentos maus e incontroláveis?
Krishnamurti: Em primeiro lugar, o interrogante começa citando a frase: “Conforme pensa, assim se torna o homem”. Não é um fato muito curioso esse — de que não sabemos pensar diretamente num problema? Temos citações e mais citações em apoio de nossas teorias — citações do Bhagavad-Gita, de Marx, Sankara, Churchill ou Mau-Tsé-Tung. É incapaz a nossa mente de observar e experimentar qualquer coisa diretamente. Esta sabedoria de empréstimo destrói-nos a capacidade de descobrirmos a Verdade por nós mesmos. (risos). Si, Senhores, vocês riem e não sabem o quanto há de deplorável atrás do riso de vocês.
A mente de vocês está inibida, tolhida; e uma mente inibida é incapaz de ser livre. Apenas é livre a mente que compreende achar-se tolhida; então há possibilidade de fazer-se alguma coisa. Uma mente que diz: “não estou inibida”, “estou repleta de conhecimentos”, “estou recheada de citações das ideias de outros” — é incapaz do descobrimento daquilo que é Real. O homem de tal mentalidade vive num nível de “segunda mão”.
Agora, a segunda parte da pergunta é: “não é essencial que conheçamos uma forma de não ficarmos à mercê de nossos pensamentos maus e incontroláveis?” Nesta pergunta duas coisas se subentendem. Diz ele: “como posso manter-me livre dos pensamentos maus e incontroláveis?” Prestem muita atenção a isto, porque é importantíssimo; pois, se puderem realmente penetrar as palavras, descobrirão algo. Não me acompanhem apenas “verbalmente” — isto é, não fiquem apenas escutando as palavras e as vibrações de palavras; penetrem o que estão ouvindo.
Existe o pensador, a entidade separada do pensamento, separada dos pensamentos maus e incontroláveis? Tenham a bondade de observar a própria mente de vocês. Dizemos: “há o “eu”, que deseja permanecer separado dos pensamentos maus, dos pensamentos instáveis, erradios”. Isto é: há o “eu” que diz: “este é um pensamento extravagante”, “esta é uma ação má”, “isto é bom”, “isto é mau”, “preciso controlar este pensamento”, “preciso reter este pensamento”. É isso o que sabemos. A pessoa, o “eu”, o pensador, o juiz, a entidade que julga, o censor, é diferente de tudo isso? O “eu” é diverso do pensamento, da inveja, do que é mau? O “eu” que se diz distinto de uma coisa má está sempre lutando para sobrepujá-la, dominá-la, lutando para tornar-se alguma coisa. Vocês tem, pois, esta luta, este esforço de banir pensamentos e de “não ser extravagante”.
No próprio “processo” do pensar criou-se este problema do “esforço”. Compreendem? É então que nasce a disciplina, o controle, por parte do “eu”, do pensamento mau; o esforço do “eu” para tornar-se não invejoso, não violento, para ser isto ou aquilo. Vocês criaram, pois, deveras, o processo do esforço, no qual figuram o “eu” e a coisa que ele está controlando. Este é o fato real de nossa existência de cada dia.
Ora bem, o “eu” que está observando, o observador, o pensador, o agente é diferente da ação, do pensamento, da coisa a que observa? Temos dito, até agora, o “eu” difere do pensamento. Consideremos, pois, esta coisa: “o pensante é diverso do pensamento?” Diz o pensante: “meus pensamentos são erradios, maus; por conseguinte, devo controlá-los, moldá-los, discipliná-los”. Nesse processo criou-se o problema do esforço e a fórmula negativa “não ser”. Tenham a bondade de “escutar” o que estou dizendo, sem interpretá-lo; se escutarem com muita atenção, verão surgir algo extraordinário. Como disse, criamos o esforço sob formas distintas — de negação e afirmação; tal é a nossa vida de cada dia.
Mas, existe alguma diferença entre o pensador e o pensamento? Investiguem isso. Há diferença? isto é, se vocês não pensassem, existiria um “eu”? Se não houvesse pensamento, ideia, memória, experiência, existiria o “eu”? Vocês dizem ser, o “eu”, a entidade superior, a coisa que está acima do pensamento e lhes guiar e lhes governar. Pois bem, se dizem isso, tornem a considerá-lo; não o adoteis. Se vocês dizem tal coisa, então essa mesma entidade que pensa a respeito do Atman, continua compreendida na esfera do pensamento. Toda coisa susceptível de ser pensada está na esfera do pensamento. Isto é, quando penso a respeito de vocês, no nome próprio que sei, quando lhes reconheço, vocês já se acham na esfera do meu pensamento, não é verdade? Meu pensamento, está, por conseguinte, em relação com a pessoa de vocês. Assim, pois, o Atman, ou o “eu superior”, ou qualquer palavra que vocês preferirem, está sempre na esfera do pensamento. Vemos, pois, há sempre uma relação entre o pensador e o pensamento; eles não constituem dois estados separados, mas um processo unitário.
Há, pois, tão somente, pensamento, o qual se divide, a si mesmo, em duas partes — pensador e pensamento, atribuindo ao pensador a preeminência. Esse pensamento cria o “eu”, que se torna permanente, porque, na verdade, é este o estado que ele aspira: a segurança, a permanência, a certeza — nas relações, com minha esposa, meu filho, minha sociedade; sempre o desejo de inalterável certeza. O pensamento é desejo; por conseguinte, o pensamento, o desejo, buscando a certeza, cria o “eu”. E o “eu”, então, se fecha na permanência e começa a dizer: “preciso controlar os meus pensamentos, preciso banir tal pensamento e adotar tal pensamento” — como se esse “eu” tivesse existência separada. Se observarem, verão não ser, o “eu” separado do pensamento. Ai se faz sentir a importância de se experimentar realmente essa coisa, de que o pensador é o pensamento. Esta é a meditação verdadeira: o descobrir como a mente está sempre produzindo a separação do pensador e do pensamento.
Interessa-nos o processo total do pensar, e não o “eu”, querendo observar o pensamento, o “eu” que cria, que domina, subjuga e sublima pensamentos. Só há um único “processo”: o pensar. O pensamento que declara “esta é minha casa”, é inspirado pelo desejo de segurança, nessa casa. Identicamente, quando vocês dizem “minha esposa”, esse pensamento implica segurança. Vemos, pois, que o “eu” ganha preeminência, na certeza. Não há senão um processo, que é o pensar, pois não há “eu” separado do pensamento.
Nessas condições, ao reconhecerem esse fato, ao apresentar-se esta percepção, esta compreensão, que acontece aos pensamento erradios, instáveis, a saltitarem para todos os lados, como borboletas ou macaquinhos? Quando já não existe o censor, quando já não há nenhuma entidade que diz “preciso controlar o pensamento” — que acontece? Sigam bem isso, Senhores. Existe então “pensamento errático”? Entendeis? Não há mais nenhuma entidade operando, julgando; por conseguinte, cada pensamento é um pensamento, de per si, e não deve ser comparado ou declarado como bom ou mau. Por conseguinte, não há divagação ou instabilidade.
Só há pensamentos erráticos, quando o pensamento diz “estou divagando; não devo fazer aquilo; devo fazer isto”. Quando não há o pensador, a entidade que quer controlar o pensamento, então o que nos interessa é só o pensamento, tal qual é, e não como deveria ser. E descobrirão então como é belo observar, na sua realidade, cada pensamento e a respectiva significação; porque, então, não há mais pensamento errático. Eliminai definitivamente o problema do esforço, pois não se pode alcançar a Realidade por meio de esforço; o esforço tem de cessar, para que a Realidade possa apresentar-se. Vocês devem ser receptivos. Não se trata de recompensa ou castigo. Não se trata de uma recompensa às vossas boas ações. À sociedade interessa a respeitabilidade de vocês; à Verdade, porém, não.
Para que a Verdade possa existir, o pensamento deve estar em silêncio. Não deve o pensamento estar em busca de recompensa ou punição, e nem ter apreensões. Só nesse estado de espírito em que não há busca, é possível manifestar-se a Verdade. A Verdade resultante de busca não é Verdade, nenhuma; não é senão uma voz projetada do “eu”, traduzindo-lhe a ambição de preenchimento. Assim, pois, ao perceberem tudo isso, ao perceberem na sua inteireza o quadro em que se mostra como a mente opera, não há então pensamento para controlar nem disciplinar; todo pensamento tem então sua importância; há a observação do pensamento, com o pensamento no papel de observador que observa o pensamento, coisa essa dificílima de experimentar-se, uma vez que requer uma extraordinária lucidez e tranquilidade de espírito. Todo pensamento é da memória — da memória que não é mais do que um nome. Porque, em verdade, nós pensamos com palavras; vosso pensamento é produto ou “projeção” da memória; a memória se constitui de imagens, símbolos, palavras. Portanto,enquanto houver aquela “projeção”, haverá pensamento. Um homem interessado em compreender o pensamento deve, por conseguinte, compreender todo o processo da sua produção: dar nome, lembrar-se, reconhecer. Só então há possibilidade de tornar-se, a mente, totalmente tranquila. Essa tranquilidade vem com a compreensão. Pode então a Verdade dispensar ao indivíduo as suas bençãos, chegar-se a ele, libertá-lo de todos os seus problemas; somente ai surge o ente criador — que não é o homem que pinta quadros, escreve um poema ou trabalha dez horas por dia.
Krishnamurti – 2ª Conferência em Poona – Índia – 25 e janeiro de 1953
Do livro: Autoconhecimento — Base da Sabedoria