O "eu" nunca pode preencher-se
autoconhecimento

O "eu" nunca pode preencher-se


Pergunta: Como pode um homem preencher-se, se não tem ideais?

Krishnamurti: Existirá o preenchimento, — embora a maioria de nós esteja em busca do preenchimento? Queremos nos preencher, por meio da família, de nosso filho, nosso irmão, nossa esposa, por meio da propriedade, da identificação com uma nação ou um grupo, ou pelo cultivo de um ideal, ou pelo desejo e continuidade do "eu". Há formas variadas e diferentes de preenchimento, em diversos níveis da consciência. 

Mas existe de fato o preenchimento? Que é que se preenche? Que entidade é essa que busca existir dentro ou por meio de uma certa identificação? Quando é que vocês pensam em preenchimento? Quando é que procuram o preenchimento? 

Como já disse, não estou fazendo uma conferência no nível verbal. Se assim a consideram, será melhor que se retirem, porque perdem o tempo. Se, porém, desejam penetrar profundamente, então fiquem vigilantes e sigam-me; porque necessitamos de inteligência, e não de uma repetição morta, — repetição de frases, de palavras, de exemplos, dos quais já estamos fartos. 

O que necessitamos é de criação, criação inteligente, "integrada"; o que vale dizer, devem investigar, para descobrir o processo da mente pela própria compreensão de vocês. 

Assim, ao escutarem o que digo, o relacionem diretamente com vocês mesmos, "experimentem" o que estou falando. Não podem experimentá-lo através das minhas palavras. Só o experimentarão se tiverem verdadeiro empenho, se observarem o próprio pensar e o próprio sentir de vocês. 

Quando há de ser preenchido o desejo? Quando possuem consciência desse impulso a ser, a vir-a-ser, a se preencher? Por favor, se observem. Quando possuem consciência dele? Não estão conscientes dele quando ele é contrariado? Não estão conscientes dele quando sentem uma solidão extraordinária, quando possuem um sentimento de nulidade absoluta, o sentimento de não serem alguma coisa? Vocês só possuem percepção desse impulso para o preenchimento, quando sentem um vazio, uma solidão. E, então, procuram o preenchimento por inúmeras maneiras, por meio da seita, pela relação com a propriedade de vocês, as árvores, com todas as coisas, em diferentes níveis de consciência. O desejo de ser, de se identificar, de se preencher, só existe quando há consciência de que o "eu" está vazio, solitário. O desejo de preenchimento é uma fuga daquilo que chamamos solidão. Nosso problema, pois, não é como nos preenchermos, ou o que é o preenchimento; porque tal coisa — o preenchimento — não existe. O "eu" nunca pode preencher-se; ele é sempre vazio; vocês podem ter umas poucas sensações ao alcançarem um resultado; mas assim que se desvanecem as sensações, vocês se encontram de novo naquele estado de vazio. Por isso, começam a seguir o mesmo processo de antes. 

O "eu", pois, é o criador daquele vazio. O "eu" é o vazio; o "eu" é um processo egocêntrico, no qual estamos conscientes daquela extraordinária solidão. Assim, estando conscientes dela, tentamos a fuga, por meio de várias formas de identificação. A essas identificações chamamos preenchimento. Na realidade não existe preenchimento, porque a mente, o "eu", nunca pode preencher-se; pela própria natureza, o "eu" é egocêntrico. 

Nessas condições, que deve fazer a mente que está consciente daquele vazio? Nosso problema é esse, não é verdade? Para a maioria de nós, essa dor do vazio é extremamente forte. Fazemos qualquer coisa, para fugir a ela. Qualquer ilusão serve, e essa é a fonte da ilusão. A mente tem o poder de criar ilusões. E enquanto não compreendermos aquele vazio, aquele estado de vazio, que é egocêntrico, podemos fazer o que quisermos, podemos buscar qualquer espécie de preenchimento, mas haverá sempre aquela barreira que separa, que não conhece a plenitude. 

Nossa dificuldade, por conseguinte, consiste em estarmos conscientes desse vazio, desse isolamento. Nunca nos vemos frente a frente com ele. Não sabemos como ele é, quais são as suas qualidades; porque vivemos continuamente fugindo dele, nos retraindo, nos isolando, nos identificando. Nunca estamos na presença dele, diretamente, em comunhão com ele. Por isso, somos "observador" e a "coisa observada". Isto é, a mente, o "eu", observa o vazio; e, então, o "eu", o pensante, trata de livrar-se desse vazio, ou de fugir.

Esse vazio, esse isolamento, será diferente do observador? Ou será que o próprio observador é que está vazio, e não que está observando o vazio? Porque, se o observador não for capaz de reconhecer esse estado a que ele chama "vazio", não haverá experiência alguma. Ele está vazio; está vazio, não pode atuar sobre isso, nada pode fazer a respeito. Porque, se fizer alguma coisa, torna-se ele o observador a atuar sobre a coisa observada, o que é uma relação falsa. 

Assim, quando a mente reconhece, percebe, está consciente de que está vazia, e que não pode atuar sobre esse estado, então, esse vazio, do qual estamos conscientes, do exterior, tem um sentido diferente. Até agora, tínhamos nos ocupado com ele como "observador". Agora é o "observador" que é vazio, que está só, solitário. Pode ele fazer alguma coisa a respeito? Não pode, evidentemente. Sua relação com esse estado é, então, inteiramente diferente da relação de observador. Ele está só, acha-se naquele estado em que não há a verbalização "estou vazio". No momento em que o verbaliza, em que o exterioriza, é diferente dele. Assim, quando cessa a verbalização, quando cessa o "experimentador" que "experimenta" o vazio, quando deixa de fugir, vê-se ele, inteiramente solitário, sua relação, em si mesma, é isolamento; ele próprio é o isolamento; e ao perceber isso plenamente, com toda a certeza, deixa de existir o vazio, a solidão. 

Mas a solidão é coisa de todo diversa de "estar só". Essa solidão tem de ser transposta, para então "estarmos sós". A solidão não é comparável com o "estar só". O homem que conhece a solidão, nunca conhecerá o "estar só". Estão sós? Nossas mentes não estão integradas para estarmos sós. O próprio processo da mente é separativo. E quem separa, conhece a solidão. 

Mas o "estar só" não é separativo. É algo que não é a multiplicidade, que não é influenciado pela multiplicidade, pela multidão, que não é resultado da multidão, que não é composto de partes, como a mente. A mente é produto da multidão. A mente não é uma entidade que está só, porque foi montada, peça por peça, fabricada, através de séculos. A mente nunca pode estar só, nunca pode conhecer o "estar só". Mas, uma vez consciente do isolamento, ao passar por esse estado, vem ela a conhecer o "estar só". Então, e só então, pode existir aquilo que é imensurável. A maioria de nós, infelizmente, buscamos a dependência. Queremos companheiros, queremos amigos, queremos viver num estado de separação, num estado que produz conflito. O que está só nunca pode se achar em estado de conflito. A mente, porém, não pode perceber isso, não pode compreender isso; só pode conhecer a solidão.

Krishnamurti em, Quando o pensamento cessa




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