O intelecto impede a clara visão
autoconhecimento

O intelecto impede a clara visão


Que é "ver totalmente"? Em primeiro lugar, que é "ver"? É só a palavra? Tende a bondade de acompanhar-me com um pouco de atenção, se vos apraz. Quando dizeis "vejo", que quereis dizer? Não me respondais, por favor; acompanhai-me, apenas. Não me estou erigindo em vossa autoridade, e vós não sois meus seguidores. Não tenho nenhum, graças a Deus! Estamos, juntos, investigando a questão relativa a "ver", uma vez que ela é muito importante, como por vós mesmos descobrireis.

Quando dizeis: "vejo aquela árvore", a estais vendo realmente, ou vos estais satisfazendo, apenas, com a palavra "vejo"? Pensai nisso. Vamos devagar! Dizeis: "Aquilo é um carvalho, um pinheiro, um olmo — o que quer que seja — e passais adiante? Se assim é, isso denota que não estais vendo a árvore, porque estais confinado na palavra. Só quando compreendeis que a palavra não é importante e podeis pôr de parte o símbolo, o termo, o nome, é só então que podeis olhar. Isso é muito difícil — olhar — porquanto significa que o nome, a palavra, com todas as lembranças, reminiscências asso­ciadas à palavra, têm de ser postos de parte. Vós não olhais para mim. Tendes certas ideias a meu respeito. Tenho uma certa repu­tação, etc., e isso vos impede de me verdes. Se puderdes despojar a mente de todo esse absurdo, podereis então ver — e esse "ver" é completamente diferente de ver através da palavra.

Podeis agora olhar para os vossos deuses, vossos prazeres favo­ritos, vossos sentimentos de nobreza, de espiritualidade, etc. — des­pojados da palavra? Isso é dificílimo, e são muito poucos os que se sentem dispostos a olhar assim. Esse ver é total, porque já não está associado com a palavra e as lembranças, os sentimentos que a palavra evoca. Desta forma, o ver uma coisa totalmente significa que não existe divisão, que não há reação ao que se está vendo: há, apenas, ver. E a percepção do fato em si provoca uma série de ações disso­ciadas da palavra, da memória, das opiniões e ideias. Isso não é uma façanha intelectual, embora o pareça. Ser intelectual ou ser emotivo é um tanto estúpido. Mas o ver totalmente o medo liberta a mente do medo.

Ora, nunca vemos uma coisa totalmente, porque estamos sempre olhando as coisas com o intelecto. Isso não significa que não se deva fazer uso do intelecto; pelo contrário, temos de fazer uso do intelecto em sua capacidade máxima. Mas a função do intelecto é fracionar as coisas; foi ele educado para observar por partes, não totalmente. Estar inteiramente cônscio do mundo, da Terra, isso não implica nenhum senso de nacionalidade, nem tradições, nem deuses, nem igrejas, nem repartição das terras, nem divisão da Terra em mapas coloridos. E ver a humanidade como constituída de entes humanos não significa segregá-los em europeus, americanos, russos, chineses ou indianos. Mas o intelecto recusa-se a ver totalmente a Terra e o homem que a habita, porque o intelecto foi condicionado através de séculos de educação, tradição e propaganda. Assim o intelecto com todos os seus hábitos mecânicos, seus instintos animais, seu impulso para permanecer em segurança, protegido, jamais pode ver coisa alguma em sua totalidade. Entretanto, é o intelecto que nos domina; é o intelecto que está sempre funcionando.

Por favor, não salteis logo à ideia de que deve haver algo além do intelecto, de que em nós deve habitar um espírito, com o qual devemos entrar em contato, e outros absurdos de igual condição. Estou caminhando passo a passo; assim, tende a bondade de seguir-me, se o desejardes.

O intelecto, pois, foi condicionado — pelo hábito, pela propa­ganda, pela educação, por todas as influências diárias, pela insignificância da vida e por seu próprio e incessante tagarelar. E é com esse intelecto que olhamos. Esse intelecto, ao escutar o que se diz, ao contemplar uma árvore, um quadro, ao ler um poema ou ouvir um concerto, é sempre fracionário; sempre reage em termo de "gosto" e "não gosto", em termos de vantagem ou desvantagem. A função do intelecto é reagir e, se assim não fosse, seríamos destruídos da noite para o dia. É, portanto, o intelecto, com todas as suas reações, lem­branças, impulsos e compulsões — tanto conscientes como incons­cientes — que olha, vê, escuta e sente. Mas o intelecto, sendo, em si, parcial, produto do tempo e do espaço, da educação — conforme já descrevemos — não pode ver totalmente. Está sempre compa­rando, julgando, avaliando. Mas a função do intelecto é reagir, avaliar; por conseguinte, para poder ver as coisas totalmente, o intelecto tem de suspender sua atividade. Espero me esteja explicando claramente.

Deste modo, o percebimento total de uma coisa só se pode veri­ficar quando o intelecto é altamente receptivo à razão, à dúvida, à indagação, mas ao mesmo tempo reconhece as limitações do raciocinar, do duvidar, do indagar e, portanto, não permite a si mesmo interferir no que está vendo. Se desejais realmente descobrir algo que seja mais do que produto do intelecto, este deve em primeiro lugar alcançar os seus limites, interrogando, argumentando, examinando, desejando descobrir e conhecer sua existência limitada, parcial; e essa própria experiência, esse conhecer da limitação, quieta a menta, o intelecto. Há então a visão total.

Quando se puder ver a totalidade da ordem — com todas as implicações que já examinamos — ver-se-á também surgir, dessa com­preensão total, uma ordem de qualidade inteiramente diferente. Por certo, só poderá apresentar-se a ordem correta com a destruição da mente que exige ordem para sua própria satisfação e segurança. De­pois de o intelecto despedaçar tudo o que ele próprio criou, de des­truir o solo em que cultiva toda espécie de fantasias, ilusões, desejos, então surgirá, em consequência dessa destruição, um amor que criará sua ordem própria.

Krishnamurti — O Passo Decisivo — Cultrix — Pág. 132 à 134





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