Estamos caminhando juntos para ver se é possível o cérebro ficar livre do conflito. Vivemos com o conflito desde que nascemos, e assim continuaremos até a morte. Há a luta constante para ser, para ser alguma coisa espiritualmente, como se diz, ou psicologicamente, tornar-se bem-sucedido no mundo, realizar-se — tudo isso é o movimento do vir a ser: eu agora sou isto e chegarei à meta final, ao princípio mais alto, tenha esse princípio o nome de deus, de brahman ou qualquer outro nome. A luta constante, seja para vir a ser ou para ser é a mesma. Mas quando alguém está tentando vir a ser em várias direções, então está negando o ser. Quando você tenta ser, você também está se tornando. Vejam este movimento da mente, do pensamento: eu acho que sou e, estando insatisfeito, descontente com aquilo que sou, tento realizar-me em alguma coisa, eu me dirijo a um determinado objetivo; pode ser doloroso, mas pensa-se que o fim é agradável. Há esta constante luta para ser e vir a ser.
Estamos todos tentando vir a ser; fisicamente, queremos uma casa melhor, uma melhor posição, com mais poder, um status mais elevado. Biologicamente, se não estamos bem, procuramos ficar bem. Psicologicamente, todo o processo interior do pensamento, da consciência, toda a propensão interior vem do reconhecimento de que na realidade nada somos e, pelo vir a ser, nos afastamos disso. Psicologicamente, interiormente, há sempre a fuga "do que é", sempre o escapar daquilo que eu sou, daquilo pelo que estou descontente para alguma coisa que irá me satisfazer. Seja essa satisfação concebida como um grande contentamento, felicidade ou iluminação, o que é uma projeção do pensamento, ou a aquisição de um maior conhecimento, ainda é o processo de vir a ser — eu sou, eu serei. Esse processo implica tempo. O cérebro é "programado" para isso. Toda a nossa cultura, todas as nossas sanções religiosas, tudo diz: "torne-se". É um fenômeno que se pode constatar em todo o mundo. Não apenas neste mundo ocidental, mas no Oriente todo mundo está tentando vir a ser, ou ser, ou evitar ser. Agora: será esta a causa do conflito, interior e externamente? Interiormente, há esta imitação, essa competição, essa conformidade com o ideal; externamente, há esta competição entre os assim chamados indivíduos de um grupo contra outro grupo, nação contra nação. Interna e externamente, há sempre essa propensão para vir a ser e para ser alguma coisa.
Estamos perguntando: será esta a causa básica do nosso conflito? Está o homem fadado — enquanto vive nesta maravilhosa terra — ao conflito perpétuo? Podemos racionalizar esse conflito e dizer: a natureza está em conflito, a árvore que luta para alcançar o sol está em conflito, e que isso faz parte da nossa natureza, porque através do conflito, através da competição, nós evoluímos, nós nos tornamos este maravilhoso ser humano que somos — não estou dizendo isto de modo sarcástico. O nosso cérebro está programado para o conflito. Temos um problema que nunca fomos capazes de resolver. Vocês podem escapar neuroticamente para alguma fantasia e, nessa fantasia, ficar totalmente contentes, ou podem imaginar que interiormente alcançaram alguma coisa e ficarem totalmente contentes com isso; uma mente inteligente deve questionar tudo isso, deve exercitar a dúvida, o ceticismo. Por que os seres humanos, durante milhões de anos, desde o aparecimento do homem até o momento presente, viveram em conflito? Nós aceitamos, nós toleramos isso; nós dizemos que faz parte da nossa natureza competir, sermos agressivos, imitar, nos conformarmos, dizemos que faz parte do eterno modelo da vida.
Por que o homem, que é tão altamente sofisticado num sentido, é tão completamente desinteligente em outros? O conflito termina com o conhecimento? O conhecimento de si mesmo, ou do mundo, o conhecimento da matéria, aprender mais a respeito da sociedade a fim de ter melhores organizações e melhores instituições, adquirir cada vez mais conhecimento. Isso solucionará o nosso conflito humano? Ou a libertação do conflito nada tem a ver com o conhecimento?
Temos um grande conhecimento do mundo, da matéria e do universo; temos também um grande conhecimento histórico de nós mesmos; esse conhecimento libertará o ser humano do conflito? Ou a libertação do conflito nada tem a ver com a análise, com a descoberta das várias causas e fatores dos conflitos? A descoberta analítica da causa, das muitas causas, libertará o cérebro do conflito? Do conflito que temos enquanto estamos despertos, durante o dia, e do conflito que prossegue enquanto estamos dormindo? Podemos examinar e interpretar os sonhos, podemos discutir toda a questão sobre por que os seres humanos sonham — isso solucionará o conflito? A mente analítica, analisando com muita clareza, racionalmente, sensatamente a causa do conflito porá fim ao conflito? Na análise, o analista tenta analisar o conflito e, ao fazer isso, separa-se do conflito — isso solucionará o conflito? Ou a liberdade nada tem a ver com quaisquer desses processos? Se vocês seguem alguém que diz: "Eu lhes mostrarei o caminho, estou livre do conflito e vou lhes mostrar o caminho", isso os ajudará? Esta tem sido a parte do sacerdote, a parte do guru, a parte do assim chamado homem iluminado: "Sigam-me, que eu lhes mostrarei", ou "Eu lhes apontarei o seu objetivo". A história mostra isto durante milênios e milênios e, no entanto, o homem não foi capaz de solucionar o seu conflito, tão profundamente enraizado.
Vamos descobrir juntos — não concordar, não como se fosse um conceito verbal intelectual — se há uma percepção, uma ação, que terminará com o conflito, não gradualmente, mas imediatamente. Quais são as implicações disso? O cérebro, sendo programado para o conflito, é aprisionado nesse modelo. Estamos perguntando se esse modelo pode ser rompido imediatamente, não gradualmente. Vocês podem pensar que podem rompê-lo por meio das drogas, do álcool, do sexo, das diferentes formas de disciplina, entregando-se a alguma coisa — o homem tentou mil modos diferentes de fugir deste terror do conflito. Agora, estamos perguntando: é possível para um cérebro condicionado romper esse condicionamento imediatamente? Esta pode ser uma questão teórica, não-real. Vocês podem dizer que é impossível, que é apenas uma teoria, apenas a vontade, o desejo de se libertar deste conflito. Mas se examinarem o assunto racionalmente, logicamente, com inteligência, verão que o tempo não solucionará este condicionamento. A primeira coisa a se perceber é que não há nenhum amanhã psicológico. Se vocês olharem realmente, não verbalmente, mas profundamente nos seus corações, nas suas mentes, na própria profundeza do seu ser, irão perceber que o tempo não vai solucionar este problema. E isso quer dizer que vocês já romperam com o modelo, já começaram a ver rachaduras no modelo do tempo que nós aceitamos como um meio para desenredar, para fazer parar este cérebro programado. Tão logo percebam por vocês mesmos, claramente, absolutamente, irrevogavelmente, que o tempo não é um fator libertador, então vocês já começaram a ver rachaduras no recinto do cérebro. Os filósofos e os cientistas afirmaram: o tempo é um fator de crescimento, biologicamente, linguisticamente, tecnologicamente, mas nunca indagaram a natureza do tempo psicológico. Qualquer indagação sobre o tempo psicológico implica todo o complexo do vir a ser psicológico — eu sou isto, mas serei aquilo; estou infeliz, irrealizado, desesperadamente só, mas amanhã será diferente. Perceber que esse tempo é o fator do conflito, então, essa própria percepção é ação; realizou-se a decisão - vocês não têm que decidir — a própria percepção é a ação e a decisão.
Há múltiplas formas de conflito, há milhares de opiniões, portanto milhares de formas de conflito. Mas nós não estamos falando sobre as várias formas de conflito, mas sobre o próprio conflito. Não estamos falando sobre o seu conflito particular — não vivo bem com a minha mulher, no meu trabalho, ou nisso ou naquilo mas sobre o conflito do cérebro humano em sua existência. Existe uma percepção, uma percepção que não nasça da memória, do conhecimento, que veja toda a natureza e estrutura do conflito? Uma percepção desse todo? Existe esta percepção? Não uma percepção analítica, não uma observação intelectual dos vários tipos de conflito, não uma resposta emocional ao conflito. Existe uma percepção que não seja feita da lembrança, que é o tempo, que é o pensamento? Existe uma percepção que não pertença ao tempo ou ao pensamento, que possa ver toda a natureza do conflito e, com essa própria percepção, produzir o fim do conflito? O pensamento é tempo. O pensamento é experiência, conhecimento formado no cérebro como memória. É o resultado do tempo — "eu não sabia há uma semana, mas agora sei". A multiplicação do conhecimento, a expansão do conhecimento, a profundidade do conhecimento pertencem ao tempo. Assim, o pensamento é tempo — qualquer movimento psicológico é tempo. Se quero ir daqui até Montreux, se quero aprender uma língua, se quero me encontrar com alguém num lugar distante, preciso de tempo. E esse mesmo processo exterior é continuado interiormente — "eu não sou, mas serei". Assim, o pensamento é tempo. O pensamento e o tempo são indivisíveis.
E nós estamos fazendo a seguinte pergunta: existe uma percepção que não pertença ao tempo e ao pensamento? Uma percepção inteiramente fora do modelo ao qual o cérebro se acostumou? Existe isso, essa coisa que, talvez, por si irá solucionar o problema? Nós não solucionamos o problema em um milhão de anos de conflito, estamos dando continuidade ao mesmo padrão. Devemos descobrir, com inteligência, hesitantemente, com cuidado, se há um modo, se há uma percepção que cubra todo o conflito, uma percepção que rompa com este modelo. O conferencista apresentou esta pergunta. Agora, como vamos conciliar isto? Ele pode estar errado, ser irracional; mas, depois de vocês o terem ouvido com muito cuidado, é responsabilidade de vocês tanto quanto do conferencista perceberem se é assim, se isso é possível. Não digam: "Bem, não é possível, porque eu não o consegui; não está dentro da minha esfera; não pensei o suficiente a esse respeito; ou, eu não quero pensar nisso tudo porque estou satisfeito com o meu conflito e estou completamente certo de que um dia a humanidade ficará livre do conflito." Tudo isso é apenas uma fuga do problema. Assim, estamos juntos, cônscios de todas as complexidades do conflito, sem negá-lo. Ele está aí, está aí tão real quanto a dor no corpo. Estamos cônscios sem nenhuma escolha de que é assim, e ao mesmo tempo fazemos a pergunta quanto a se existe uma abordagem completamente diferente.
Agora, podemos observar — não importa o que — sem nomear, sem a lembrança? Olhem para o seu amigo, ou para a sua esposa, ou seja lá para quem for; observem essa pessoa sem as palavras "minha esposa", ou "meu amigo", ou "pertencemos ao mesmo grupo", sem nada disso, observem de tal modo que não estejam observando por meio da lembrança. Vocês alguma vez já tentaram fazer isso diretamente? Olhem para a pessoa sem nomeá-la, sem o tempo e a lembrança, e olhem também para vocês mesmos — para a imagem que construíram de vocês mesmos, a imagem que construíram do outro; olhem como se estivessem olhando pela primeira vez — como olhariam para uma rosa pela primeira vez. Aprendam a olhar; aprendam a observar esta qualidade que surge sem toda a operação do pensamento. Não digam não é possível. Se vocês se dirigirem a um professor sem conhecer a sua matéria, mas querendo aprender com ele (eu não sou o professor de vocês), vocês vão para ouvir. Vocês não dizem: "sei alguma coisa a respeito disto", ou "você está errado", ou "você está certo", ou "não gosto da sua atitude". Vocês ouvem, descobrem. Quando vocês começam a ouvir com sensibilidade, com consciência, começam a descobrir se ele é um impostor, que usa uma porção de palavras, ou um professor que realmente atingiu a profundeza de sua matéria. Agora, podemos nós, juntos, ouvir e observar assim, sem a palavra, sem a lembrança, sem todo o movimento do pensamento? Isto significa uma atenção completa, não a atenção de um centro, mas uma atenção que não tem nenhum centro. Se vocês possuem um centro através do qual prestam atenção, esta é apenas uma forma de concentração. Mas se vocês estão prestando atenção e não há nenhum centro, isto significa que estão dando completa atenção; nessa atenção não há nenhum tempo.
Muitos de vocês, feliz ou infelizmente, ouviram o conferencista durante muitos anos e vê-se que esse rompimento com o "programa" do cérebro não aconteceu. Vocês ouvem repetidamente essa afirmação ano após ano e ela não aconteceu. Será por que vocês querem alcançar, vir a ser, ter este estado no qual o padrão do cérebro foi rompido? Vocês ouviram e ele não aconteceu, e vocês têm a esperança de que ele aconteça, o que é outra forma de esforçar-se para vir a ser. Assim, vocês ainda estão em conflito. Assim, vocês ignoram tudo e dizem que não virão mais aqui porque não obtiveram o que querem — "eu quero isso mas não o consegui". Esse querer é o desejo de ser alguma coisa e é uma causa de conflito. Esse desejo vem do cérebro "programado". Nós estamos dizendo: para romper com esse programa, com esse modelo, observem sem o movimento do pensamento. Parece muito simples, mas vejam a lógica disso, a razão, a sensatez disso, não porque o conferencista o diz, mas porque isso é sadio. Obviamente, deve-se exercer a capacidade de ser lógico, racional e, ainda assim, conhecer as suas limitações, porque o pensar racional, lógico, ainda faz parte do pensamento. Sabendo que o pensamento é limitado, estejam cônscios dessa limitação e não o empurrem para adiante, porque ele ainda será limitado, por mais longe que vocês vão, enquanto que, se vocês observam uma rosa, uma flor, sem a palavra, sem nomear a cor, mas apenas olham para ela, então esse olhar produz grande sensibilidade, quebra esse sentido de densidade do cérebro e dá uma extraordinária vitalidade. Há uma espécie de energia totalmente diferente quando há a percepção pura, que não está relacionada com o pensamento e o tempo.
Krishnamurti — A Rede do Pensamento — Cultrix — Pág. 30 à 38