O sentimento é que produz a transformação fundamental do pensar
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O sentimento é que produz a transformação fundamental do pensar



A virtude está no passado? Encontra-se a virtude em algum livro? Ela se torna existente ao seguirmos algum guia, alguma autoridade? E a presente degeneração, a atual corrupção e desintegração moral, não resulta de uma “virtude” baseada na autoridade alheia, na autoridade de um livro, na autoridade de vários líderes que vindes seguindo há séculos? De quem quer que se trate, seja de um guia político, seja de um santo consolador ou reformador religioso, o próprio fato de se seguir outra pessoa não é uma coisa desvirtuosa?

A virtude é algo que se possa armazenar, acumular e guardar em reserva para as ações que exijam uma reação virtuosa? Ou a virtude é coisa inteiramente diversa? Isso não quer dizer que perdemos a virtude, pois provavelmente nunca a tivemos, e por isso mesmo se observa a atual decadência. Não sei se tendes considerado seriamente esta matéria ou se a tendes considerado apenas pela rama, satisfazendo-vos com pequeninas coisas — um pouco de trabalho, um pouco de comida, um pouco de reflexão, uma pequena família — sem vos deixardes perturbar muito e consentindo que a deterioração prossiga levemente. Penso que alguns devem ter pensado seriamente na questão — mas não em termos de reforma, porque, como vereis, se observardes o que se passa ao redor de vós, tal reforma não produziu uma nova libertação das forças criadoras do homem. Pelo contrário, toda reforma religiosa, tal como toda revolução política, tem apenas criado um diferente grupo, preconizando um padrão diverso.

Vedo tudo isso, já devemos ter perguntado a nós mesmos como fazer nascer àquela retidão que não é apenas ação dos que sabem, ação da mente que acumulou ciência, moralidade, e que funciona pela rotina de uma dada virtude. Não chamo virtuosa uma mente dessas. Virtude não é apenas lembrança de coisas idas, ela não reside no passado de há dez mil anos ou de outem; ela é a capacidade de enfrentar cada desafio com um novo vigor mental, com amor, com brandura, com penetrante percebimento da totalidade de um acontecimento de qualquer natureza que seja.  A mente capaz de corresponder a pleno uma exigência é a única mente virtuosa, e não aquela que calcula, que está moldada por uma ideologia, em interesses depositados na conduta moral, na tradição, em valores que oferecem vantagens. A virtude é coisa bem diferente de tudo isso, como veremos à medida que, nesta tarde, formos prosseguindo.

A mente educada consoante um padrão de pensamento, que exige, o “como”, o método, desejosa de conhecer o caminho conducente à virtude, essa mente nunca será virtuosa, porquanto só lhe interessa o êxito, o chegar a alguma parte. Em vez de interessar-se por dinheiro, interessa-se pela chamada virtude. Os fins são essencialmente os mesmos, porque o desejo, em cada caso, é essencialmente o mesmo.

Assim, é possível operar, não uma mudança fragmentária, porém, uma transformação total, de modo que vossa mente, vosso coração, todo vosso ser se torne atento e sensível a tudo que vos cerca — à beleza de uma nuvem, à aragem entre as folhas, o aldeão, a mulher torturada pelo conceber filhos e mais filhos? O relevante, decerto, é estar cônscio de tudo isso e corresponder de maneira plena, e não em termos de uma certa moral social, que nenhuma moral é, porém, antes, simples questão de conveniência, de interesse egoísta. Moralidade é a capacidade de corresponder com nosso ser integral — e isso é o que realmente penso e não uma simples sentença retórica. As palavras em si pouco significam. O importante é transcender as palavras e ter sentimento, porque é o sentimento, porque é o sentimento que produz a totalidade da ação. Compreendeis, senhores? Ter sentimento não é um “processo” intelectual gerador de toda espécie de razões solertes sobre por que se deve ou não se deve ter sentimento.

(...) O sentimento, sem os acessórios do pensamento, é realmente uma coisa extraordinária. Não sei se já alguma vez tentastes sentir e vos deixardes levar por esse sentimento, sem controlá-lo, sem moldá-lo, sem chama-lo de bom ou mau, sem atribuir-lhe uma significação verbal. Vereis que isso é dificílimo, verdadeiramente árduo. Não é uma coisa que vem com facilidade, porque temos cultivado nossa mente. Para nós, o intelecto é de enorme importância; gostamos de argumentar, de ser capazes de jogar nossa opinião contra a opinião de outra pessoa muito erudita, bem-ilustrada, ou de citar algum livro antigo. Exercitamos nossa mente para alcançar um alto grau de eficiência, no interesse do “eu” e, assim, perdemos, ou nunca tivemos, aquele sentimento.

A objeção imediata a isso é: “Se temos um sentimento, não desejamos expressá-lo?” É verdade? Ou a mente, vestindo com palavras o sentimento, cria a sensação, a qual exige expressão? A mente olhando para além do sentimento, deseja expressá-lo, preenche-lo, ou deseja cerceá-lo, suprimi-lo, refreá-lo. O sentimento, pois, é a chama real; e se com efeito libertardes a mente das palavras, se não permitirdes que seja moldada pelos significados verbais, pelo maquinismo de nossos instintos religioso e morais, vereis que o sentimento não exige necessariamente isso a que chamais “preenchimento”. A mente é que o exige, a mente que tem uma ideia a respeito do sentimento.

Digamos que apanhais uma folha e a olhais. O sentimento que ela evoca é uma coisa, e outra coisa é vossa opinião sobre ela — “Como é bela!”, “Como é verde!”, “Como está murcha!” Mas a palavra se torna mais importante e o sentimento se esvai. Observai isso, fazei uma experiência com vós mesmos e logo o verificareis. Um tal sentimento não exige preenchimento. Pelo contrário, tem seu movimento próprio, não relacionado com o movimento verbal do pensamento, que exige ação.

É, pois, o sentimento que produz realmente a transformação fundamental de nosso pensar. E é necessária essa básica transformação de nosso pensar, porquanto não é a pressão externa do ambiente econômico que produz a transformação. A compulsão, de qualquer espécie, tem um certo efeito, porém, nunca opera a transformação radical; ela só ocasiona uma “perpetuação modificada” das coisas como sempre foram. O que se necessita é de mudança radical, não da superficial citação de palavras novas, da proclamação de novos slogans políticos, ou do seguimento de novos mestres, novos líderes. Tudo isso já experimentamos, e não suscitou um mundo diferente.

Assim, se deveras estais interessados — como o deve estar toda pessoa inteligente e irrefletida, ao ver tanta pobreza, tanta degradação e degeneração — em promover, não uma reforma, porém uma revolução fundamental, acho que então reconhecereis prontamente que essa revolução só é possível quando a mente, na realidade, é religiosa. Mas religião, o sentimento de religião, não é questão de frequentar um templo, de assistir a uma cerimônia, de recitar uma porção de palavras estúpidas, de tanger um sino ou de depositar flores aos pés de um ídolo feito pela mão ou pela mente. Tampouco é religião repetir o Gita do começo ao fim, ou citar outra qualquer escritura. Religião é o sentimento do sagrado; compreendeis? Não é vosso sentimento por vosso guru, pelos Mestres, que é apenas inveja, vantagem, interesse no que se obterá em troca; e não é, tampouco, seguir um dogma ou crença — outra forma de segurança, de interesse egoísta. Religião é o sentimento daquela imensidade que pode ser chamada sagrada, e que nenhuma relação tem com o Upanishads, o Guita ou a Bíblia, com símbolos, igrejas, Budas, Krishnas, nem com minha pessoa. Ela não está em relação com nada disso. É porque destes vosso coração e vossa mente às coisas desta espécie, que não possuís este sentimento do sagrado que a razão solerte não pode perverter, que nem a mente a mente mais sutil pode destruir. Esse sentimento é como o amor; tem sua ação própria. Mas a mente que pensa que deve aprender a amar cria uma ação que é perversão, e essa ação só traz mais complexidade, mais sofrimento, mais confusão.

A religião, pois, não pode ser encontrada em nenhum templo, nenhum livro; nada tem que ver com colocar cinza na testa, vestir vestes sagradas ou pertencer a determinada organização. Religião é algo completamente diferente. Existe positivamente um estado, não um estado fixo, porém um movimento superior às medidas da mente, e o experimentar desse estado de religião. Não o traduzais como o estado de Samadhi, ou outro qualquer disparate místico; e o real experimentar desse estado, que é criação, faz nascer um mundo novo, porque então vossa mente é purificada de todo o rebotalho dos séculos. Vossa mente é então “inocente”, nova, sensível, cônscia de cada problema e, portanto, capaz de resolvê-lo. Mas não é de fácil alcance esse estado mental. Impende compreender a vós mesmos o funcionamento do próprio pensar.

A revolução religiosa é o começo de uma nova religião — a qual não pode ser organizada, não pode ter um clero, ou um presidente e secretário, e propriedades. Isso não é religião. A religião a que me refiro é o sentimento é o sentimento do sagrado, que não é sentimentalidade. É uma coisa que vem mediante árduo trabalho, mediante o penetrar de todas as ilusões, das sombras que a mente criou. Eis porque importa não ter nenhuma espécie de autoridade, representada por Mestres, por um guru, por livros sagrados ou ideais e opiniões, vossas próprias ou alheias; porque só então sois um indivíduo, livre para descobrir. Enquanto dependeis de outrem para vos instruirdes estais perdido, porque vos enredais nessa instrução.

Quando a mente está toda despojada do passado, que é conhecimento, vê-se surgir um sentimento de qualidade bem diversa, e as pessoas com esse sentimento não pertencem a nenhuma organização religiosa, não têm pátria, não se aproximam dos políticos, pois não estão em busca de poder nem de posição, e tampouco tentam reformar o mundo. A mente interessada em reformas não é uma mente religiosa, nem bondosa, nem compassiva. Ela pode falar sobre a compaixão, a bondade, mas no próprio ato de reformar há destruição, sofrimento, porque qualquer reforma torna necessária nova reforma, inadequadas como são todas as reformas. Mister se faz uma ação total, mas a ação total não se produz pela reunião de pequenas partes. Surge só quando descobris por vós mesmos, como ente humano individual, isto é, quando reagis não como coletividade, mas como um indivíduo real que se libertou da sociedade e de sua avidez, inveja, ambição, etc. Só esse indivíduo conhecerá aquela experiência extraordinária de algo incomensurável. Não é uma experiência estática. Nem uma experiência para ser lembrada. O que é lembrado não é verdadeiro; já se juntou aos mortos de ontem. E, sem essa experiência da realidade, o que quer que façais, nunca tereis um mundo são, ordeiro, equilibrado, feliz. Mas não podeis buscar essa experiência; ela tem de vir a vós, e isso só poderá ocorrer quando já não estiverdes interessados em vós mesmos.

Krishnamurti – O Homem Livre – pág. 103 à 107 – 23 de dezembro de 1956




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