Se for possível, eu gostaria de falar sobre o fim do sofrimento, porque o medo, o sofrimento e aquilo a que damos o nome de amor caminham sempre juntos. A não ser que compreendamos o medo, nunca poderemos compreender o sofrimento nem conhecer aquele estado de amor em que não há contradição nem atritos.
Fazer cessar por inteiro o sofrimento é algo muito difícil, porque o sofrimento sempre nos acompanha de uma ou de outra maneira. Por isso, eu gostaria de mergulhar profundamente nesse problema; mas minhas palavras vão ter pouco sentido a não ser que cada um de nós examine o problema em seu próprio íntimo, sem concordar nem discordar, mas simplesmente observando o fato. Se pudermos fazê-lo, de modo concreto e não teoricamente, talvez sejamos capazes de compreender a enorme importância do sofrimento e, assim, fazer com que ele se acabe.
Ao longo dos séculos, o amor e o sofrimento sempre andaram de mãos dadas, havendo por vezes o predomínio de um e, outras vezes, o do outro. Aquele estado que chamamos de amor logo passa e, novamente, vemo-nos nas garras dos nossos ciúmes, das nossas vaidades, dos nossos medos, das nossas angústias. Sempre houve essa batalha entre o amor e o sofrimento; e antes de podemos entrar na questão de como fazer cessar o sofrimento, penso que temos de compreender o que é a paixão.
A paixão é algo que poucas pessoas já sentiram de fato. Podemos ter sentido entusiasmo, o que significa ser tomado por um estado emocional com relação a alguma coisa. A nossa paixão é por alguma coisa: pela música, pela pintura, pela literatura, por um país, por uma mulher, por um homem; ela é sempre o efeito de uma causa. Quando se apaixonam por alguém, vocês ficam num grande estado de emoção, que é o efeito dessa causa específica. E estou falando da paixão sem causa; trata-se de estar apaixonado por tudo e não por apenas uma coisa particular, ao passo que a maioria de nós tem paixão por uma pessoa ou coisa especial. Creio que devemos entender essa distinção com muita clareza.
No estado de paixão sem causa, há uma intensidade livre de todo apego; porém, quando a paixão tem causa, existe apego e o apego é o começo do sofrimento. A maioria de nós está apegada: a uma pessoa, a um país, a uma crença, a uma ideia; e quando o objeto do nosso apego nos é tirado ou vem a perder por alguma razão o seu sentido, vemo-nos vazios, insuficientes. E tentamos preencher esse vazio apegando-nos a alguma outra coisa, que novamente se torna o objeto de nossa paixão.
Faça-me o favor de examinar seus corações e mentes. Sou apenas o espelho no qual vocês se miram. Se não quiserem olhar, não há problema, mas se de fato o quiserem, olhem para si mesmos com clareza, sem concessões, com intensidade — não com a esperança de dissolver angústias, ansiedades, sentimentos de culpa, mas para compreender essa paixão extraordinária que sempre leva ao sofrimento.
Quando tem uma causa, a paixão torna-se luxúria. Quando há paixão por alguma coisa — por uma pessoa, por uma ideia, por algum tipo de realização —, vem dessa paixão a contradição, o conflito, o esforço. A pessoa se empenha em alcançar ou manter uma situação particular, bem como em captar de novo um estado que existiu e se foi. Mas a paixão de que estou falando não gera contradição nem conflito. Ela não tem nenhuma relação com uma causa, não sendo, por conseguinte, um efeito.
Apenas escutem: não tentem alcançar esse estado de intensidade, essa paixão sem causa. Se pudermos escutar com atenção, com o sentido de tranquilidade que vem quando a atenção não é forçada pela disciplina, mas nasce da simples permanência de compreender, creio que descobriremos por nós mesmos o que é essa paixão.
Há na maioria de nós muito pouca paixão. Podemos ser luxuriosos, podemos ansiar por alguma coisa, podemos querer fugir de algo, e isso de fato nos dá certa energia. Mas se não despertarmos, se não descobrirmos por nós mesmos como chegar a essa chama da paixão sem causa, não poderemos compreender aquilo a que damos o nome de sofrimento. Para compreender algo, vocês têm de ter paixão, a intensidade da atenção integral. Onde há paixão por alguma coisa — que gera contradição, conflito —, essa pura chama da paixão não pode existir; e essa pura chama da paixão tem de existir para fazer cessar o sofrimento, para dissipá-lo por inteiro.
Sabemos que é sofrimento é um resultado; ele é o efeito de uma causa. Amo alguém e essa pessoa não me ama — eis um tipo de sofrimento. Quero atingir a realização numa dada direção, mas não tenho capacidade para isso; ou, se tenho capacidade, a saúde delicada ou algum outro fator bloqueia essa realização — eis outra forma de sofrimento. Há o sofrimento de uma mente pequena, de uma mente sempre em conflito consigo mesma, em incessante luta, ajuste, exame, em incessante amoldar-se. Há o sofrimento do conflito nos relacionamentos, bem como o sofrimento da perda de alguém por morte. Todos vocês conhecem essas várias fromas de sofrimento, que são todas resultado de uma causa.
Ora, nunca encaramos o fato do sofrimento; estamos sempre tentando racionalizá-lo, afastá-lo de nós mediante a sua explicação; ou então nos apegamos a um dogma, a um padrão de crença que nos satisfaz, nos dá um conforto momentâneo. Algumas pessoas tomam drogas, outras bebem ou rezam — fazem qualquer coisa para amenizar a intensidade, a agonia do sofrimento. O sofrimento, e a eterna tentativa de livrar-se dele, são a parte eu cabe a cada um de nós. Nunca pensamos em fazer cessar por completo o sofrimento, de modo que a mente em nenhum momento se veja presa de autocomiseração, na sombra do desespero. Não sendo capazes de fazer o sofrimento chegar ao fim, se somos cristãos cultuamos em nossas igrejas a agonia de Cristo. E quer vamos ao templo render culto ao símbolo do sofrimento, quer tentemos afastá-lo por meio de racionalizações ou esquecê-lo bebendo, a situação é uma só: estamos fugindo do fato de que sofremos. Não estou falando da dor física, que pode ser resolvida com facilidade pela medicina moderna. Estou falando do sofrimento da dor psicológica que impede a clareza e a beleza, dor que destrói o amor e a compaixão. Será possível fazer com que todo o sofrimento desapareça?
Creio que o fim do sofrimento está relacionado com a intensidade da paixão. Só pode haver paixão quando há total abandono de si mesmo. Nunca podemos ter paixão se não houver a completa ausência daquilo que chamamos de pensamento. Aquilo a que damos o nome de pensamento é a resposta de vários padrões e experiências da memória, e onde existe essa resposta condicionada, não há paixão, não há intensidade. Só pode haver intensidade onde há a completa ausência do “eu”.
Vocês sabem que há um sentido de beleza que nada tem que ver com o que é belo e com o que é feio. Não que a montanha não seja bela ou que não exista um prédio feio, mas há uma beleza que não é o oposto da feiúra, bem como um amor que não é o oposto do ódio. E o auto-abandono de que estou falando é um estado de beleza sem causa e, portanto, um estado de paixão. Será possível ir além daquilo que resulta de uma causa?
Deem, por favor, toda atenção a isto, a fim de apreender o sentido em vez de memorizar palavras.
Veja bem, a maioria de nós está sempre reagindo; a reação é o padrão dominante da nossa vida. Nossa resposta ao sofrimento é uma reação. Respondemos tentando explicar a causa do sofrimento ou fugindo dele, mas ele não desaparece. O sofrimento só desaparece quando enfrentamos o sofrimento como um fato, quando compreendemos e vamos além tanto da causa como do efeito. Tentar livrar-se do sofrimento por meio de uma prática particular, pelo pensamento deliberado ou entregando-se a uma das várias maneiras de fugir do sofrimento, não desperta na mente a extraordinária beleza, a vitalidade, a intensidade da paixão que inclui e transcende o sofrimento.
O que é o sofrimento? Ao ouvir essa pergunta, como vocês reagem? A mente tenta no mesmo instante explicar a causa do sofrimento e essa busca de uma explicação desperta a lembrança dos sofrimentos que vocês já tiveram. Logo, vocês estão sempre revertendo verbalmente ao passado ou avançando rumo ao futuro, num esforço por explicar a causa do efeito que denominamos sofrimento. Mas creio que temos de ir além de tudo isso. Sabemos muito bem a causa do sofrimento — a pobreza, a saúde ruim, a frustração, a falta de amor e assim por diante. E quando explicamos as causas do sofrimento não acabamos com ele; não apreendemos de fato a extraordinária profundidade e significação do sofrimento, não mais do que compreendemos o estado a que damos o nome de amor. Creio que os dois — o amor e o sofrimento — estão relacionados entre si e que, para compreender o que é o amor, temos de sentir a imensidade do sofrimento.
Os antigos falavam de fazer cessar o sofrimento, e estabeleceram um modo de vida que se supõe capaz de obter isso. Muitas pessoas têm praticado esse modo de vida. Monges do Oriente e do Ocidente procuram segui-lo, mas eles apenas se endurecem; sua mente e seu coração ficaram encarcerados. Eles vivem por trás das paredes do seu próprio pensamento ou de paredes de tijolos e pedra, mas não acredito que tenham ido além e sentido a imensidade daquilo que se chama sofrimento.
Fazer cessar o sofrimento é encarar o fato da própria solidão, do próprio apego, da exigência medíocre de fama, da própria fome de ser amado; é estar livre da preocupação consigo mesmo e da puerilidade da autocomiseração. E quando se foi além de tudo isso e talvez se tenha feito cessar o sofrimento pessoal, ainda existe um imenso sofrimento coletivo, o sofrimento do mundo. Podemos fazer cessar nosso próprio sofrimento enfrentando em nós mesmo o fato e a causa do sofrimento — e isso tem de acontecer para que a mente fique inteiramente livre. Mas quando se terminou toda essa tarefa, ainda há o sofrimento da extraordinária ignorância que existe no mundo — não da falta de informações, de conhecimento livresco, mas da ignorância do homem com relação a si mesmo. A falta de autocompreensão é a essência da ignorância, que gera essa imensidade de sofrimento que existe no mundo inteiro. O que é de fato o sofrimento?
Vejam bem: não há palavras que expliquem o sofrimento, não mais do que existem palavras para explicar o que é o amor. O amor não é apego, o amor não é o oposto do ódio, o amor não é ciúme. E quando se acabar com o ciúme, com a inveja, com o apego, com todos os conflitos e agonias por que se passa pensando que se ama — quando tudo isso tiver acabado, ainda vai permanecer a questão sobre o que é o amor, bem como a questão do que é o sofrimento.
Vocês só vão descobrir o que é o amor, e o sofrimento, quando a mente de vocês tiver rejeitado todas as explicações e deixar de criar imagens, para de procurar a causa, desistir de se entregar às palavras ou de retornar na memória aos seus próprios prazeres e dores. A mente tem de ficar em completa quietude, sem uma palavra, sem um símbolo, sem uma ideia. E então vocês vão descobrir — ou virá à existência — o estado em que aquilo que chamamos de amor, aquilo que chamamos de sofrimento e aquilo que chamamos de morte, são a mesma coisa. Deixará de existir separação entre amor, sofrimento e morte; e não havendo divisão, haverá beleza. Mas para compreender, para se ficar nesse estado de êxtase, tem de haver a paixão que vem com o total abandono de si mesmo.
Krishnamurti – Saanen, 5 de agosto de 1962