Toda forma de fuga do sofrimento torna a mente mais embotada
autoconhecimento

Toda forma de fuga do sofrimento torna a mente mais embotada


Quase todos estamos às voltas com o sofrimento. Sofremos de uma ou de outra maneira, física, intelectual, ou interiormente. Somos torturados e nos torturamos a nós mesmos. Conhecemos o desespero, e a esperança, e o medo sob todos os aspectos; e nesse vórtice de conflito e contradições, preenchimentos e frustrações, ciúmes e ódio, debate-se a mente. Aprisionada que está, sofre, e todos sabemos que sofrimentos são estes: o sofrimento ocasionado pela morte, o sofrimento da mente sensível , o sofrimento da mente muito racional e intelectual, que conhece o desespero, porque reduziu tudo a pedaços e nada mais lhe resta. A mente sofredora faz nascer várias filosofias do desespero; busca refúgio através de numerosas vias de esperança, conflito, conforto, através do patriotismo, da política, das argumentações verbais, das opiniões. E para a mente sofredora sempre existe uma igreja, uma religião organizada pronta a acolhê-la e torná-la mais embotada ainda, com suas promessas de consolo.

Conhecemos tudo isso; e quanto mais refletimos , tanto mais intensa a mente se torna e nenhuma saída se encontra. Fisicamente, é possível fazer algo contra o sofrimento, tomar uma pílula, procurar o médico, alimentar-se melhor, mas aparentemente nenhuma saída existe senão pela fuga. Mas a fuga torna a mente muito embotada. Ela poderá ser penetrante em seus argumentos, em suas defesas; mas a mente em fuga está sempre temerosa, porque precisa proteger a coisa em que se refugiou, e, evidentemente, tudo aquilo que protegemos, que possuímos, faz nascer o medo. 

E, assim, o sofrimento continua; conscientemente, talvez, possamos afastá-lo, mas interiormente ele continua existente, corrompendo, putrefazendo. Mas podemos ficar livre dele, totalmente, completamente? Esta me parece a pergunta correta que se deve fazer; porque, se perguntamos "Como ficar livre do sofrimento?", então, o "como" cria o "padrão" do que se deve ou não se deve fazer. e isso significa seguir por uma via de fuga, em vez de enfrentar o problema, a causa-efeito do próprio sofrimento. Assim, antes de começarmos a discutir, gostaria de investigar esta questão. 

O sofrimento perverte e deforma a mente. O sofrimento não é o caminho da Verdade, da Realidade, de Deus (ou como quiserdes chamá-lo). Temos tentado enobrecê-lo, dizendo-o inevitável, necessário, alegando que traz compreensão, etc. Mas a verdade é que, quanto mais intensamente uma pessoa sofre, tanto mais ansiosa se torna de fugir, de criar ilusão, de encontrar uma saída. Parece-me, pois, que a mente são, saudável, deve compreender o sofrimento e ficar completamente livre dele. E isso é possível? 

Ora, como compreender por inteiro o sofrimento? Não estamos tratando de uma única qualidade de sofrimento por que acaso estejam passando ou esteja passando; existem, como sabem, muitas variedades de sofrimento. Mas estamos falando sobre o penar em geral, estamos falando da totalidade da coisa; e como compreender ou sentir o todo? Espero que esteja me fazendo claro. Através da parte nunca é possível sentir o todo; mas, se se compreende o todo, a parte pode então ajustar-se nele e tornar-se, assim, significativa. 

Ora, como se sente o todo? Entendem o que quero dizer? Sentir, não apenas como inglês, mas sentir  a totalidade da humanidade; sentir não apenas a beleza das paisagens da Inglaterra, que são realmente belas, porém a beleza de toda a Terra; sentir o amor total — não apenas o amor por minha mulher e meus filhos, mas o sentimento total de amor; conhecer o sentimento total da beleza, não da beleza de um quadro pendente na parede, ou de um sorriso num rosto belo, ou de uma flor, de um poema, porém aquele sentimento de beleza que transcende todos os sentidos, todas as palavras, toda expressão. Como sentir assim?

(...) A mente que está em conflito, em batalha, em guerra, interiormente, se torna embotada; não é uma mente sensível. Ora, que é que torna a mente sensível, não apenas para uma ou outra coisa, porém sensível como um todo? Quando ela é sensível não apenas para o belo, mas também para o feio, para tudo? Só o é, por certo, quando não há conflito; isto é, quando a mente está tranquila interiormente e, por conseguinte, é capaz de observar todas as coisas exteriores com todos os seus sentidos. Ora, o que é que gera conflito? E existe conflito não apenas na mente consciente, exterior — a mente que está sumamente cônscia de seus raciocínios, seus conhecimentos, sua proficiência técnica, etc. — mas também a mente interior, inconsciente, a qual provavelmente se acha no "ponto de fervura" a todas as horas. O que é pois, que cria o conflito?



(...) O que cria o conflito é, obviamente, o "puxão" em diferentes direções. O homem que se deixou comprometer completamente com alguma coisa é, em geral, insano, desequilibrado; para ele não há conflito: ele é essa coisa. O homem que crê inteiramente numa dada coisa, sem duvidar, sem interrogar, que se identificou completamente com aquilo que crê — esse homem não tem conflito nem problema. Tal é mais ou menos o estado da mente doente. E a maioria de nós gostaria muito de identificar-se, de "comprometer-se" com alguma coisa de tal maneira que não houvesse mais problema algum. Em geral, por não termos compreendido o processo do conflito, só desejamos evitar o conflito. Mas, como já assinalamos, o evitar só produz mais sofrimento. 

Assim, percebendo tudo isso, faço a mim mesmo e, portanto, também a vocês, esta pergunta: O que cria conflito?



Krishnamurti em, O PASSO DECISIVO





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