A ação criadora em que não existe um “eu” a se preencher
autoconhecimento

A ação criadora em que não existe um “eu” a se preencher


Pergunta: A fé no materialismo dialético suscitou uma onda de atividade criadora na Nova China. A fé religiosa parece tornar os homens complacentes e estra-terrenos. Pode a generosidade própria da índole espiritual combinar-se com a ação dinâmica do materialista?

Krishnamurti: é relativamente fácil, como vocês devem saber, inflamar-nos de entusiasmo pelo Estado, pela Liberdade, pela guerra ou pela paz, e identificar-nos com o Estado, com Deus, com uma ideia. O esquecer-nos a nós mesmos, ou melhor, o preencher-nos por meio da ideia do Estado, de Deus, ou da dialética materialista, é coisa relativamente fácil; infunde-nos um entusiasmo e uma capacidade espantosa. Como vocês pensam que se luta nas guerras — nas guerras que exigem o assassínio desapiedado, que acirram ódios, que impõem sofrimentos e sacrifícios, que nos desobrigam de todas as responsabilidades e nos transportam às frentes de batalha, para matar? Para tanto necessita-se um extraordinário grau de entusiasmo, energia, ímpeto, ódio, e do chamado amor da pátria, o qual faz o indivíduo preencher-se numa ação de tal ordem. Por conseguinte, para esse homem não há problema algum. Ele está vivendo. Analogamente, a identificação com o que chamamos Deus, o Estado, a identificação com a ideia, considera mais importante do que o “eu”, dá-nos evidentemente uma espantosa energia e força criadora. E o mesmo acontece no tocante à religião. Se sou um desses indivíduos ditos religiosos, isso me dá uma fé, uma capacidade, um ímpeto extraordinário. Temos de tudo isso nesse país. Quando vocês estavam lutando pela liberdade, eram capazes de tudo.

A luta pela liberdade representa preenchimento do “eu”, a pátria com que vocês se identificam representa um meio de fugirem de si mesmos. A luta, a dor, o sofrimento, para criar um mundo novo, uma Nova Índia, é um meio artificial de auto-esquecimento. É tudo preenchimento, de diferentes maneiras, do “eu”. Essas coisas nos dão uma energia extraordinária e transitória, provocam uma explosão de entusiasmo. Atrás de tudo isso, porém, está sempre o “eu”, na sua perpétua busca de plenitude; e o preenchimento, o desejo de preencher-se, produz conflito.

A religião, tal como vocês a conhecem e praticam, é uma rotina monótona, uma coisa morta, uma vez que está limitada pela tradição, pelo que Sankara disse, pelo que Buda disse. A mente, por conseguinte, empresta um significado ao que Sankara disse, ao que disse o Bhagavad-Gita, e esse significado constitui o caminho por onde vocês irão se preencher. A interpretação e os comentários de vocês, se tornam, por conseguinte, extraordinariamente importantes. Há uma falsa ação criadora, surgindo quando estão empenhados em se preencher. Não é criadora tal ação e sim, meramente, e sim uma progressão pela via da calamidade e do pensar condicionado. Mas há uma atividade que se acha muito além e muito acima desse impulso para o preenchimento do “eu”; e essa atividade só pode surgir depois de cessar definitivamente o nosso desejo de nos preenchermos, por diferentes maneiras.

Refleti a respeito de tudo isso, Senhores. Não se limitem a concordar ou discordar. É uma coisa essencial, para se alcançar a experiência, o verdadeiro “escutar”. Ele lhes comunicará uma energia incalculável, lhes dará uma vida isenta de mágoas, de opressão e de escravidão. Faz nascer uma ação criadora em que não existe “eu” a se preencher.

O “eu”, identificando-se com o Estado ou com determinado sistema, produz calamidades, cria antagonismo, cria inimizade, cria ódios. Se vocês se identificam com uma certa casta, não se sentem possuídos de assombroso entusiasmo e dispostos a manter essa casta, a lutar e a guerrear pra destruir todas as outras castas? O nosso problema, por conseguinte, não tem nada a ver com a mera identificação com uma “coisa maior”, e nem se acha ai a sua solução. Vejam mais uma vez como a nossa mente atua, como a nossa mente se movimenta, esperando compreender o todo através da parte. Pensamos que o todo é o Estado, a comunidade, a nação ou um ideal. O todo não é nenhuma dessas coisas, pois todas elas são “projeções” do pensamento, e o pensamento é sempre condicionado. Eis porque é impossível, quer por meio da religião, quer por meio dos livros, compreender-se o todo.

A experiência do todo só pode revelar-se e ser compreendida e sentida, quando a mente está totalmente cônscia de que se acha condicionada. Então, a mente, que é o centro do “eu”, o qual busca sem cessar o seu preenchimento e por conseguinte se evade através do entusiasmo — então a mente, reconhecendo a impossibilidade de mover-se em qualquer direção, se torna tranquila; e aí, nessa tranquilidade, há uma atividade que não é mero produzir, inventar, e sim uma atividade criadora. É essencial que se manifeste em cada um de nós esse estado criador, para desfazer as causas de todos os malefícios, sofrimentos e destruições. Você e eu somos entes humanos comuns; mas se descobrirmos esse estado criador, então este mundo será o nosso mundo, que vocês e eu estamos edificando juntos, vós e eu operando juntos, criando um mundo em que terá deixado de existir o sofrimento, a dor e a fome. Sem aquela Realidade Criadora, porém, qualquer outra ação é mera progressão no sofrimento, progressão do pensamento condicionado.

Krishnamurti – 2ª Conferência em Poona – Índia – 25 e janeiro de 1953

Do livro: Autoconhecimento — Base da Sabedoria





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