A armadilha do túnel do tempo psicológico
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A armadilha do túnel do tempo psicológico


Visto que o sofrimento é pensamento, e o pensamento tempo, deveis compreender o tempo. Há o tempo do relógio — ontem, hoje e amanhã. O sol se põe e o sol nasce — o fenômeno físico. O ônibus sai a uma certa hora, e o trem parte na hora marcada; é esse o tempo do relógio, o tempo cronológico. Mas, existe outro “tempo”? Fazei a vós mesmo esta pergunta: “Há outro tempo, além do tempo cronológico?” Há: o tempo compreendido como duração, separado do tempo cronológico, do tempo do relógio. Há duração, a continuidade da existência — eu fui, eu sou, eu serei. As memórias, as experiências, as diferentes ansiedades, temores, esperanças — tudo isso está na esfera do tempo entendido como “passado”. E esse passado, que é psicológico, que é memória, essa carga de ontem, com todas as suas experiências, eu a estou transportando hoje; a memória a está transportando hoje, memória essa que está identificada, pelo pensamento, como “Eu”. Se não houvesse memória, se não houvesse identificação com aquela memória de que nasce o pensamento, não haveria nenhum “centro”, ou seja “Eu”, a transportar aquela carga de dia para dia.

Temos, pois, o tempo marcado pelo relógio. E há o tempo psicológico; mas este tempo é válido? É o tempo verdadeiro? O tempo não é o intervalo existente entre ações? Quando há ação espontânea, real, não há, com efeito, tempo. Estais esquecidos do passado, do presente e do futuro, quando estais vivendo naquele estado de ação. Mas, quando a ação procede do passado, introduzistes o tempo na ação. Mas, quando a ação procede do passado, introduzistes o tempo na ação. Isto exige muita atenção de vossa parte, porque estamos tratando de um problema sumamente complexo, relativo à ação dentro do campo do tempo e à ação fora do campo do tempo; não se trata de teorias, não se trata do que está dito no Gita ou no Upanishads.

(...) O que o orador está fazendo é levar o tempo a uma “crise”. Pois estamos habituados a servir-nos do tempo como meio de fuga. Ou, também, nos temos servido do tempo como o “presente único”, “o agora”, tratando de tirar da vida o melhor proveito, agora — com todos os seus desesperos, agonias, ansiedades, temores, esperanças, alegrias. Dizemos: “Só temos poucos anos de vida, e vivamos com tudo o que a vida oferece, tirando dela o melhor partido”. É o que fazemos, e o mesmo tem feito todos os filósofos. E todos os que tem inventado teorias têm, também, um medo imenso da morte.

Estamos, pois, examinando o tempo. Dissemos que o tempo é o intervalo existente entre ações. A mente que está em ação pode existir sem o tempo. Prestai atenção, por favor. A mente que está em ação com uma ideia, um motivo, uma finalidade, uma fórmula, está enredada no tempo; sua ação, por conseguinte, não se completa e, portanto, dá continuidade ao tempo. Como sabeis, o tempo, para nós, é não só a duração psicológica, mas também a continuidade da existência. Serei isto futuramente — amanhã ou no próximo ano. Esse “ser futuramente” está condicionado não só ao ambiente, à sociedade, mas também à reação a tal condicionamento, tal sociedade — reação que consiste em dizer: “Serei isto e o alcançarei futuramente”. Quando uma pessoa diz: “Se hoje não sou feliz, se não sou rico interiormente, profunda, ampla, abundantemente rico, eu o serei” — essa pessoa está na armadilha do tempo.  O homem que pensa que será alguma coisa e se está esforçando para alcançar o que será, para esse homem a maior aflição é o tempo.

É possível a mente achar-se sempre em ação, diretamente, espontânea e livremente, de modo que nunca tenha um momento de tempo? Porque o tempo é pensamento periférico. Todo pensar é periférico, marginal — todo. Pensamento é reação da memória, da experiência, do conhecimento, acumulados; daí procede o pensamento, a reação ao passado. O pensamento jamais pode ser original. Podeis usar palavras, que pertencem ao passado, expressar o original, mas o original não pertence ao tempo. Por conseguinte, para descobrir o original deve a mente estar inteiramente livre do tempo — do tempo psicológico; da duração; da ideia de “serei”, “alcançarei”, “tornar-me-ei”.

O funcionário, o pobre coitado que, por quarenta anos seguidos, tem de dirigir-se todos os dias a seu escritório, de trem subterrâneo, de ônibus, em transportes repletos de passageiros, malcheirosos, sujos — só pode nutrir a esperança de um dia tornar-se “Gerente”. A mulher o incita, a sociedade o impele, o compele a ser alguma coisa neste mundo, dono de uma casa maior, com mais conforto, mais satisfações. Todos necessitam de satisfação, de conforto físico. E, hoje em dia, cientificamente, é perfeitamente possível proporcioná-lo a todos os entes humanos. Mas isso não se verifica porque somos muito estúpidos: separamo-nos em nacionalidades; somos bairristas, estamos separados por línguas diferentes, etc., etc. Eis o nosso único empecilho.

Assim como o bancário deseja tornar-se gerente do banco, e o gerente aspira a ser diretor, assim como o vigário aspira a ser o arcebispo, assim como o sanyasi deseja “vir a ser”, alcançar, no final de tudo, isto ou aquilo — assim também nós adotamos perante a vida a mesma atitude. Abeiramo-nos do viver de cada dia com a ideia de realização e, assim, psicologicamente, abeiramo-nos da vida, dizendo “devo ser bom”, “devo fazer isto”, “devo vir a ser...” É a mesma mentalidade, a mesma ambição; portanto, introduzimos o tempo em nosso viver. Nunca questionamos o tempo. Nunca dizemos: “É mesmo assim? Daqui a dez anos, serei feliz, serei inteligente, vigilante, imensamente rico interiormente, e então só uma coisa existirá?” Nunca questionamos o tempo; aceitamo-lo, como temos aceitado tudo o mais: cegamente, estupidamente, sem pensar, sem raciocinar.

Por isso eu digo que o tempo é veneno, que o tempo é um perigo contra o qual deveis estar sumamente precavidos, perigo tão vivo como um tigre. Deveis estar consciente, a cada minuto, de que o tempo é um veneno mortal, uma cosia fictícia. Estais vivendo hoje; e não podeis viver hoje, de modo completo, com riqueza, plenitude, com extraordinária sensibilidade à beleza, à graça, se vindes com toda a carga de ontem. É preciso, pois, examinar a questão da memória. Memória, conhecimento, experiência, todo o acúmulo de dados científicos e técnicos, são da maior importância quando se trata de executar um trabalho material. Nas coisas de que necessitamos para viver, a memória deve funcionar com o máximo de eficiência, qual um cérebro eletrônico. Este é capaz das coisas mais extraordinárias: pintar, escrever poemas, traduzir, e até dirigir uma orquestra. Mas, esse cérebro eletrônico só pode funcionar com os dados que lhe são fornecidos, por associação, etc. E quando se faz uma pergunta ao cérebro eletrônico, devem-se usar termos precisos; senão, ele não responderá. Por isso mesmo, há hoje todo um conjunto de cientistas empenhados em investigar a questão da ação na linguagem; mas não é este o assunto que nos interessa no momento.

Como já sabemos, a maioria de nós traz o passado para o presente, e o presente se torna mecânico. Se observardes vossa própria vida, vereis quanto é mecânica! Funcionais tal qual uma máquina, como uma imitação perfeita do cérebro eletrônico. Porque aceitastes o tempo e com ele vos acostumastes. Ora, há uma vida fora do tempo, quando se compreende o passado, que é só memória e nada mais.

A memória, na forma de conhecimento, de acumulação de experiência, de coisas que o homem vem juntando a milhões de anos — a memória é o passado, consciente ou inconsciente; nela estão depositadas todas as tradições. E com tudo isso vindes para o presente, para o agora e, por conseguinte, não estais, em absoluto, vivendo. Estais “vivendo” com as lembranças, as cinzas frias de ontem. Observai a vós mesmo. Com essas cinzas frias da memória, inventais o amanhã: um dia, serei não-violento; hoje sou violento, mas irei limando esta minha “grata” violência e, um dia, hei de ser livre, não-violento. Que infantilidade! É uma ideia que aceitastes e, portanto, não podeis despreza-la. E há homens que dizem tais absurdos! E os tratais como grandes homens; porque estais aprisionados no tempo, tal como eles. Esses homens não vos estão libertando, fazendo-vos enfrentar o fato — o tempo — isto é, trazer para o presente o passado inteiro e levá-lo a uma “crise”.

Sabeis o que sucede quando vos vede numa crise — numa crise real, não uma crise inventada, uma crise verbal, de ideias e teorias? Quando vos vedes, de fato, em presença de uma crise, que vos exige atenção integral e “atenção integral” significa: atenção com vossa mente, vossos olhos, vossos ouvidos, vosso coração, vossos nervos, com todo o vosso ser — sabeis o que acontece? Não existe, então, o passado; não há então ninguém para dizer-vos o que deveis fazer; e, então, dessa extraordinária atenção, vem a espontaneidade; e, nesse estado, não existe o tempo. Mas, no momento em que começais a pensar a respeito da crise, no momento em que começais a pensar, todo o passado entra em ação. O pensamento é a reação do passado — associação, etc. E verifica-se, nesse momento, o começo do tempo e do sofrimento.

Por conseguinte, quando a mente não se acha verdadeiramente num estado de ação, porém, num estado de inação, daí vem mais inação, que é do tempo. Há duas espécies de inação: a inação gerada pelo tempo, e a inação que é o estado total da mente que se vê em presença de uma tremenda crise. Com o enfrentar uma crise tremenda, a mente se torna completamente inativa, quer dizer, livre de todo pensamento; e dessa inação vem ação; esta é a única ação importante, e não a outra.

Assim, pois, cumpre compreender a natureza do tempo e o significado do tempo. Com a palavra “compreender” quero dizer “ter vivido” com a coisa, tê-la penetrado; não ter aceito nenhuma teoria nem explicação verbal; não ter fugido por meio do passado, porém ter perquirido, de fato, o fenômeno do tempo psicológico. Fazendo-o, levais o tempo a uma “crise”; essa crise vos torna então sobremaneira atento e, por conseguinte, a mente fica num estado de ação. Fica atuando sempre, porque já se livrou daquele estado de “passado e futuro” — do tempo. E nesse estado, em que a mente não está interessada no passado nem no futuro, tem o presente uma diversa significação. Isso não é teoria, e não se trata de um estado de desespero. Por conseguinte, a cessação do sofrimento é a cessação do pensamento, e a cessação do pensamento é o começo da sabedoria. A cessação do sofrimento é sabedoria.

Krishnamurti – Bombaim, 23 de fevereiro de 1964
O Despertar da Sensibilidade — ICK




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