A limitação do intelecto e do pensamento
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A limitação do intelecto e do pensamento


O intelecto tem o poder de raciocinar, de reunir dados, qual um computador, para funcionar de forma objetiva e sã. Um bom intelecto nunca chega a uma conclusão. Ele examina, explora. Mas, se o intelecto está condicionado por exigências e precon­ceitos pessoais, se está condicionado por seu meio cultural, ele é incapaz de explorar, incapaz de compreender. O intelecto jamais descobrirá a solução destes problemas. Isto é bem óbvio, não? Podeis ir à Lua... o intelecto é bastante eficiente para realizar esse feito ou fazer coisas as mais fantásticas, organizar toda a estrutura de um exército, aprestá-lo para destruir. Mas, o inte­lecto separa as pessoas. A divisão em vida particular e vida pública, a divisão em nacionalidades e línguas diferentes, enfim, todas as espécies de divisão são criadas pelo intelecto; a divisão é uma das funções do intelecto. Provavelmente sua função prin­cipal é pensar, e o pensamento, tanto religioso como mundano, só está criando divisão em todo o mundo. E é o pensamento que está tentando resolver este problema — o problema das re­lações humanas!

Cumpre-nos, pois, compreender toda a estrutura e natureza do pensar, não segundo "tal" filósofo ou psicólogo, porém obser­vando nosso próprio pensar. Talvez parecerá herético o que vou dizer, porque tendes lido tantos livros, estais tão repleto das coisas ditas por outros ou pelo Gita, pelo Upanishads, etc. etc.

Mas não conheceis as bases de vosso pensar, porque sois entes humanos "de segunda mão", porque acumulastes conhecimentos recebidos de outros, e nada sabeis de aprendido por vós mesmo.

Eis, pois, um problema que temos de examinar em comum, a fim de descobrirmos a verdade que ele encerra. Vê-se o que está acontecendo no mundo — divisão, conflito, contradição, corrupção política. Escusa entrarmos em pormenores a esse res­peito, porquanto a descrição não é a coisa descrita; e o que nos interessa não é a descrição, mas a coisa descrita, a coisa expli­cada —"o que é", criado pelo pensamento que, por sua vez, é reação da memória, da experiência, do conhecimento.

Até aqueles passarinhos concordam conosco — se, como espero, os estais ouvindo com "atenção completa", ouvindo a beleza de cada som, sem resistência alguma, sem traduzi-lo em prazer, ou vendo a luz do poente nas palmeiras; observando, simplesmente. Com essa observação aprendemos, e o que apren­demos não nos é ensinado por ninguém.

Dissemos que nosso pensamento, nosso pensar, é reação da memória, da memória acumulada por nossos antepassados, por nossa espécie, através de milênios. Essa memória se armazenou, consciente ou inconscientemente, e esse "armazém" é o cérebro, as células cerebrais, como podeis observar em vós mesmo. É muito mais importante aprendermos a respeito de nós mesmos pela auto-observação, pois esta é a única maneira de nos conhe­cermos, porque quando começamos a conhecer-nos surge a sabe­doria e, também, porque, quando conhecemos nossa inteira estru­tura, termina o sofrimento. Cabe-vos observar a vós mesmo, vossa maneira de andar, as palavras que usais, vosso comporta­mento, pois, assim, vereis que vossa mente — que inclui as cé­lulas cerebrais — é o repositório de toda a experiência, não só da experiência pessoal, direta, mas também das experiências raciais, das experiências de todo o passado, lá depositadas. Essas células cerebrais contêm a memória inteira — tanto a consciente ou manifesta, como a oculta. E toda reação proveniente dessa memória é pensamento. Se não tivésseis memória, serieis comple­tamente incapaz de pensar. O pensamento, pois, é a reação do passado, que é conhecimento e, portanto, nunca pode ser livre, e é sempre velho. Aí está, mais uma vez, um fato absoluto.

E queremos resolver todos os nossos problemas, não apenas os problemas técnicos, com o único instrumento que pensamos possuir, ou seja o intelecto, o pensamento; e, ao mesmo tempo, estamos vendo que o pensamento dividiu as pessoas em hinduístas, muçulmanos, cristãos, etc. Tudo isso é obra do pensa­mento; e, reconhecendo-se incapaz de resolver este problema — o problema das relações humanas — o pensamento construiu um "eu superior", "Atman Superior", que pensamos o resolverá. Mas a ideia de "eu superior" faz parte de nosso pensar e, sendo o pensamento tempo, resultado do tempo, então "Atman Su­perior", Brahma, alma, ou o nome que preferis, tudo isso faz parte do tempo e, portanto, não é real. Só é real como constru­ção do pensamento. Temos, pois, agora, este problema: este mundo, a sociedade, a cultura, as relações humanas, as divisões, tudo foi criado pelo pensamento, por nosso pensar. Isto, a meu ver, é óbvio e real; não é apenas uma conclusão baseada em fatos, etc. — pois, se observamos, estudamos, aprofundamos interessadamente este problema da existência humana, o caos e a aflição em que o homem se vê mergulhado, percebe-se que tudo isso o pensamento criou — essa divisão, esse conflito, essa angústia. Por conseguinte, o pensamento, como intelecto, por mais capaz de raciocinar, não pode de modo nenhum resolver este problema.

Vosso pensar, sutil ou superficial, resulta do passado. O passado é "coisa ajuntada"; e tudo o que, literalmente, é "ajuntado", horizontal ou verticalmente, é tempo. Tudo o que se ajunta, peça por peça, qual uma máquina, exige tempo. Tal como as células cerebrais, toda a nossa "coleção" de "memórias" é resultado do tempo; e através do tempo, que é pensamento, esperamos resolver os problemas humanos. Por certo, eles nunca serão solucionados pelo pensamento, que é tempo, que gera medo e prazer. Pode o pensamento, o diário funcionamento do pensar, resolver qualquer dos nossos problemas? Não pode, evidente­mente. Então, que mais poderá resolvê-lo? Para respondermos a esta pergunta, cumpre examinar o problema da percepção, do ver.

Como já dissemos, a mente é incapaz de ver com clareza quando tem qualquer espécie de conclusão ou de preconceito. Se, sendo hinduísta, muçulmano ou sabe Deus o que mais, olhais o mundo, a existência, por essa estreita fresta chamada hinduísmo, comunismo, etc., como podeis ver qualquer coisa em sua totalidade? Precisamos, pois, estar livres de tal condiciona­mento, para compreendermos este extraordinário e complexo problema das relações humanas. E devemos compreender o "princípio do prazer", porquanto, para a maioria de nós, por mais altaneiro que seja o nosso pensar (esse pensar que é reação do passado e, portanto, condicionado), nossa moralidade, nossas atividades, nossas buscas e lutas, baseiam-se nesse princípio do prazer, não achais? Observai isso; podeis vê-lo por vós mesmo. Nossas ambições, nosso desejo de êxito, nosso espírito de competição, nossa agressividade e violência, nossas relações pessoais, tudo se baseia no princípio do prazer e, por conseguinte, se não compreendemos o prazer e o medo, jamais saberemos o que é o amor. A mente que percebe pode compreender o prazer, com­preender o medo, compreender o amor, e compreender também o imenso problema da morte, e descobrir se de fato existe uma realidade.

Impende-vos, pois, compreender tudo isso e, para compreen­dê-lo, deveis ter a capacidade de perceber, não pelos olhos de outrem, não pelos ditos dos analistas, dos professores, dos filó­sofos — deveis ter a capacidade de olhar com vossos próprios olhos.

Cabe-nos considerar o que é o prazer. Esta é uma questão muito importante, porque, se a compreenderdes, compreendereis o que é o amor, e descobrireis se existe, ou não existe, algo além das coisas criadas pelo pensamento. Investiguemos, pois, rapidamente, o que é o prazer. O prazer é amor? O prazer é desejo? Que é o prazer? Observai a vós mesmos, observai vossas exigências de prazer, vossa busca de prazer. Observai tudo isso e fazei vossos próprios descobrimentos; embora o orador vá dar explicações, tende em mente que a explicação nunca é a coisa explicada, nunca! A palavra jamais é a coisa. Que é o prazer, que todo ser humano busca por tantas maneiras, da mais sutil à mais cruel; que é o prazer, que o homem anda a buscar incessantemente? Já observastes, ao contemplardes um belo pôr do Sol, em que todo o céu se tinge de um fulgor róseo — como se observa no Ocidente, na hora do entardecer — já observastes que experimentais um inefável deleite — se tendes vontade e tempo para olhar?

Isso é uma "experiência". Tal experiência vos deleitou intensamente, e passais a ocupar-vos com outras coisas; mas a mente, o cérebro, registraram esse deleite e exigem a sua repe­tição. Observai isso, por favor, em vós mesmo, o desejo de repetição do deleite que tivestes em ver o ocaso — há uns dois minutos, talvez. Desejais que ele se repita; isto é, a "memória" do crepúsculo ficou registrada, e o pensar naquele incidente, naquela experiência, naquela ocorrência, dá continuidade ao prazer.

Tivestes experiências sexuais ou de outra natureza; ficais pensando, ruminando essas experiências, imagem por imagem. Eis como o pensamento, ocupando-se com um fato passado, agra­dável ou doloroso, dá continuidade ao que se chama prazer ou dor. O pensamento, pois, cria o prazer e o medo, e dá-lhes continuidade e nutrição. Isto é, sofrestes dor, um incômodo físico, um sofrimento físico e psicológico. Isso aconteceu há dias, na semana passada, no mês anterior; ficais pensando nessa dor, e esperando que ela não volte. Assim, o pensar-se numa coisa que não se deseja, mas que pode acontecer, é o começo do medo.

O pensamento, pois, sustenta o prazer e o medo; e, obser­vando-se bem, pode-se ver que a alegria, o êxtase, qualquer forma suprema de deleite não está em nenhuma relação com o pensa­mento. Acontece, às vezes, quando não estamos ocupados, quan­do nossa mente não está tagarelando, vir-nos subitamente um extraordinário sentimento de deleite, de beleza, uma alegria indes­critível. Logo a seguir surge o pensamento "gostaria que se repetisse esta alegria" — e, então, aquela alegria tão natural e espontânea se torna prazer. Deste modo, o pensamento é a reação do passado, da memória, vale dizer, o pensamento é reação do conhecimento.

E existe o "desafio" da morte, ao qual respondemos em conformidade com a memória do "conhecido". O conhecido vem de ontem; tudo o que sabeis, vossas experiências, vossas imagens de vossa família, os conhecimentos que tendes acumulado, tudo, tudo, o que tendes juntado é o passado. Por conseguinte, tendes medo do que possa acontecer amanhã, tendes medo do desconhecido, da morte. Tudo isso podeis ver, podeis ver como o pensamento separou as pessoas, linguisticamente, nacionalmente, racialmente, e como está perpetuamente a buscar o prazer e a evitar o medo. Vendo tudo isso, que é resultado do pensamento, do intelecto, tanto racional como irracional (pois o intelecto — que é racional, capaz, eficiente — sendo também irracional, neurótico, condicionado, ilógico, criou não só a estrutura social, com sua moralidade, com suas divisões econômicas, sua injustiça, mas também esta batalha, este infindável conflito existente dentro em nós) — vendo tudo isso, compreendendo tudo o que o pensamento tem causado, que ides fazer?

Que sois vós? Sois "formado" (o que quer que signifique essa palavra) e estais meramente cultivando um cantinho insigni­ficante do imenso campo da existência; daí, pensais ser capaz de resolver todos os problemas, sem levar em conta o resto do campo. Não sei se já observastes isso em vós mesmos; se nunca o fizestes, fazei-o agora. Com vossa ciência tecnológica, e vivendo num pequenino canto, esperais compreender o campo inteiro; mas, operando dessa base, é claro que só podeis ter uma vida de contradição. Se sois comunista, se sois maoísta, desse limi­tado canto só podeis olhar o mundo com os olhos do comunista ou do maoísta.

Cumpre-nos, pois, olhar a vida com olhos não condicionados. E esta é que é a questão: se a mente, com suas células cerebrais, pode libertar-se inteiramente do passado, e olhar com olhos novos. O conhecimento é necessário. Sem ele não poderíeis ir "daqui" para "ali", não poderíeis "funcionar", não poderíeis ser um técnico competente, não poderíeis falar inglês ou tamil, não serieis capaz de reconhecer vossa esposa ou vossos amigos. O conhecimento é necessário, mas torna-se um obstáculo absoluto quando o pensamento, que vem do passado (e esse passado cons­titui o conhecimento), está operando. Embora se possa ver que uma pessoa, como cientista, engenheiro, etc., tem absoluta necessidade do conhecimento, apesar de suas complexidades, e não pode jogá-lo fora e voltar ao estado primitivo ou tribal, vê-se também que o conhecimento gera conflito nas relações hu­manas.

Isto é bem simples. Se um indivíduo é casado ou tem um amigo com quem vive há um certo número de anos ou há algumas semanas ou dias, cada um formou uma imagem do outro. Formastes uma imagem de vossa esposa ou de vosso amigo. Essa imagem se constitui das afrontas, dos prazeres, das imposições, das desconsiderações, etc., que se acumularam durante essas re­lações — bem sabeis como são elas, principalmente as relações entre marido e mulher; cada um tem uma imagem do outro. Essas imagens são o passado, e à conciliação das duas imagens chama-se "relações" — cada um com sua "vida particular", o marido com suas ambições, e a esposa com as dela. O passado está impedindo o verdadeiro estado de relação entre ambos. O passado destrói as relações humanas.

Agora, rejeitada a imagem, e sabendo-se que o pensamento tem uma função limitada, a questão é esta: Como realizar uma transformação radical, psicológica, sem influência do pensamento? O pensamento, por certo, não pode alterar o padrão que ele próprio criou ou criará, porque esse padrão é o passado. Assim, existe um movimento, um movimento psicológico, não procedente do passado? Porque, para descobrirdes se Deus existe ou não existe — se desejais investigar seriamente esta questão, a ela devotar vossa mente e coração — tendes de livrar-vos de toda espécie de crença, de toda espécie de medo e de conflito, e necessitais compreender totalmente o que é o prazer. Se não fizerdes isso, não tereis base para a ordem; e ordem é virtude. A virtude não é uma coisa que se pratica, que se exercita. Só nasce a ordem com a compreensão da desordem — nossa de­sordem real, nossa hipocrisia, conflito, agonia, desespero, a confusão em que estamos vivendo. Há desordem. E, ao começardes a compreender essa desordem — não, corrigindo-a, não dizendo que ela deve ou não deve existir, mas, sim, observando realmente a desordem que descobris em vossa vida — nascerá então a ordem em vosso viver.

Se possuis essa ordem absoluta, que é virtude, que é ação, em que não há divisão, tendes então a base para a meditação e a possibilidade de descobrir se existe ou não existe algo fora do tempo.

Krishnamurti — O Novo Ente Humano — ICK — Pág. 94 à 100





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