A questão da mediocridade
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A questão da mediocridade


Um dos nossos problemas assim me parece — é a questão da mediocridade. Não estou empregando esta palavra em sentido condenatório, mas é fato óbvio que a grande maioria de nós é medíocre. Poderá alguma técnica, religiosa ou mecânica, libertar nos dessa mediocridade? Ou não deve, antes, haver uma revolta contra toda técnica? Porque, parece-me, mais observamos e menos e mais raros se vão tornando os indivíduos criadores. Não estou empregando a palavra “criador” para designar o homem que pinta, que escreve poesias ou produz invenções, o gênio. Veremos, no prosseguimento desta palestra, o que significa ser criador.

Antes de descobrirmos, porém, o que é “ser criador”, não devemos investigar por que é que quase todos nos deixamos influenciar tão facilmente? Por que é que tantos de nós permitimos a ingerência de outros nas nossas vidas? Por que gostamos, também, de ingerir-nos na vida dos outros e somos tão eficientes no julgar os outros? E talvez descubramos, nesta investigação, a possibilidade de que, justamente nas coisas tão carinhosamente cultivadas por nós — o julgamento, a capacidade de desenvolver unia técnica, mecânica ou dita espiritual — se a as raízes da mediocridade e que enquanto não houver uma revolta contra a técnica, haverá imitação, autoridade, o desenvolvimento da capacidade, o seguimento de certas idéias, no espírito consistente indicando tudo isso a estrutura de uma mentalidade medíocre.

Tende a bondade de escutar; não tomeis notas. Não estamos em aula. Não sou um professor a prelecionar-vos para tomardes notas, a fim de as estudardes posteriormente. Vamos andando e pensando juntos. Estou apenas dizendo uma coisa que é muito evidente ou suficientemente evidente; e se não escutardes, talvez não possais experimentar diretamente aquele “estado de criação” que temos a possibilidade de descobrir juntos pelo compreender, isto é, pelo ouvir diretamente o que é que constitui a mediocridade.

A criação é um “estado de solidão”. Se a mente não está completamente só, não há criação. Só quando a mente é capaz de sacudir de si todas as influências, todas as interferências quando é capaz de estar completamente só, independente, desacompanhada, livre de toda influência modeladora e do julgamento, só nesse estado de solidão há criação. Entretanto, esse estado de solidão não é compreensível ao espírito medíocre, a mente que se exercita numa atividade, na técnica, na maneira de fazer qualquer coisa.

Hoje em dia se estão desenvolvendo técnicas e mais técnicas - a técnica de influenciar pessoas, por meio da propaganda, da compulsão, da imitação, dos exemplos, da idolatria, do culto do herói. Têm-se escrito livros inumeráveis sobre como fazer uma coisa, como pensar eficientemente, como construir uma casa, como montar maquinismos; e, desse modo, estamos perdendo pouco a pouco a iniciativa, a iniciativa para acharmos qualquer coisa original, por nós mesmos. Na nossa educação, em nossas relações com o Governo, estamos sendo influenciados por diferentes maneiras, para nos ajustarmos, para imitarmos. E quando nos deixamos persuadir por uma dada influência a adotar determinada atitude ou ação, criamos naturalmente a resistência e outras influências. No processo, justamente, de criarmos resistência a outra in fluência, não estamos sucumbindo a essa influência, negativamente?

Não somos o resultado de inumeráveis influências? Nossa mente, nossa estrutura, nosso ser não é uma contextura de influências — influências econômicas, climáticas, sociais, culturais, religiosas? Nossa mente é composta de partes, e com essa mente queremos descobrir, queremos criar. Essa mentalidade, porém, é tão somente capaz de imitar, de ajustar outras coisas entre si, e esta é a razão do crescente desenvolvimento tecnológico quê se observa no mundo. Um homem tecnologicamente eficiente nunca pode ser um ente humano criador. Poderá construir uma casa maravilhosa, montar um aeroplano; mas não é uma entidade criadora. Porque sua mente é constituída de partes; sua mente não é inteiriça, “integrada”.

Como pode haver uma mente integrada, se somos segmentos de várias formas de influências? Nossa mentalidade é o resultado dessas influências; ela está condicionada por todas essas influências, como hinduísta, como muçulmana, como cristã. E condicionados que estamos e sujeitos a influências várias, dizemos: “Escolherei uma determinada influência, um guru, escolherei o que é bom, o que é nobre; e cultivarei por meio de vários exercícios, de vários métodos, tal excelência”. Todavia, não obstante isso, nossa mente continua a ser uma mente influenciada, controlada, moldada, mente que luta para alcançar um fim predeterminado; e essa mente jamais pode achar-se em revolta, pode? Pois, no mesmo instante em que se revolta, essa mente se vê num estado de caos. A mente medíocre, pois, nunca pode estar revoltada, sendo capaz unicamente de passar de um estado condicionado para outro, de uma influência para outra.

Não deveria a mente estar sempre revoltada, para compreender as influências que a assaltam incessantemente, interferindo, controlando, moldando? Um dos fatores da mente medíocre não é o medo constante que a domina e, também, o estado de confusão em que se acha, em virtude do qual ela deseja ordem, consistência, deseja urna fórmula, um modelo pelo qual possa ser guiada, controlada; e, entretanto essas fórmulas, essas várias influências geram contradições no individuo, geram confusão no indivíduo. Estais condicionado como hinduísta ou como muçulmano; outro está condicionado pela idéia de “ser nobre” ou por idéias econômicas ou religiosas. Qualquer escolha entre diferentes influências denota sempre um estado de mediocridade. A mente que escolhe entre duas influências e começa a viver em conformidade com a influência preferida, continua a ser medíocre não é verdade? Pois essa mente nunca se acha num estado de revolta, e a revolta é essencial para que se possa descobrir algo.

Se a mente nunca está só, pode ser criadora? Se examinardes a vossa mente, vereis como tem ela medo de desviar-se, de errar. A mente está de contínuo em busca de segurança, de certeza, de uma garantia, em determinado padrão consistente de pensamento; e pode essa mente que nunca está só, ser criadora? Quando digo “só” não me refiro àquela solidão em que há desespero; refiro-me à solidão em que não há dependência de coisa alguma, em que não dependemos de nenhuma tradição, nenhum costume, nenhum companheiro. E não deve a mente achar-se num tal estado de isenção de qualquer espécie de temor? Porque, no momento em que começo a depender, nasce o temor; e perde-se toda a iniciativa, toda a originalidade — “originalidade” não no sentido de “excentricidade”, mas de “capacidade para pensar e descobrir.” Não deve a mente ter a capacidade de investigar, de não imitar, de não deixar-se moldar, e ser sem medo? Não deve a mente ser “só”, e, portanto, criadora? Esse poder de criar não é coisa vossa nem minha; é anônimo.

Prestai toda a atenção a isto, já que quase todos nós somos medíocres. Existe a possibilidade de uma transformação imediata e completa que nos ponha nesse estado criador? Porque é disso que se necessita na hora atual, no mundo; não precisamos de reformadores, ideólogos ou filósofos, mas, sim, que vós e eu, compreendendo a nossa mediocridade, façamos surgir imediatamente aquele estado de solidão em que não há dependência nem temor; em que nos achamos completamente sós, livres de influências; e onde não há interferências, nem imitação, nem desejo de seguir. Podemos, vós e eu, produzir imediatamente essa mentalidade? Porque, se assim não for a nossa mente, tudo o que fizermos, todas as nossas reformas apenas produzirão mais sofrimentos e mais caos.

É possível à mente que sempre foi medíocre, que sempre sofreu interferências, que foi ajustada, moldada, controlada, que precisa de arrimo, é possível a essa mente realizar, de pronto, aquele estado de solidão? Não digais “talvez seja possível, mas não a mim; outro talvez o consiga” — mas escutai, simplesmente, não as palavras, mas o significado das palavras. Pode um espírito que sofreu interferências, que é o resulta do dessas interferências, que é resultado do tempo, da influência — pode um tal espírito lançar tudo fora e ficar só? Porque, nessa solidão há criação. Não importam quais sejam as palavras que empregais. Aquela criação não é coisa do tempo, não é coisa vossa nem minha; é completamente anônima. E enquanto estiverdes cultivando uma técnica, não há anonimato, porque a mente de quase todos nós só está interessada em aprender “como fazer isto”, “como deixar de ser influenciada”, “como libertar-se do condicionamento” Quando uma pessoa diz: “Vou exercitar-me em tal coisa, para adquiri-la”, “Vou disciplinar-me, para não ser mais influenciado”, ou “edificarei em torno de mim uma muralha contra todas as influências” — isso indica que sua mente está procurando o método, a técnica. Essa mente é capaz, em algum tempo, de ser livre, de estar revoltada? E não é medíocre essa mente? Ela, por conseguinte, jamais pode estar só. Se se deseja criar um novo mundo, uma nova civilização, uma nova arte, tudo novo, não contaminado pela tradição, pelo temor, pelas ambições; se se deseja criar algo que seja anônimo, que seja vosso e meu, uma nova sociedade; se desejamos criar isso juntos — no que não há vós e eu, mas, sim, nós-juntos, não se faz necessário um espírito que seja completamente anônimo, e por conseguinte esteja só? Isso implica, não é certo? - na necessidade de uma revolta contra o ajustamento, contra a respeitabilidade, pois o homem respeitável e o homem medíocre, visto desejar alguma coisa, visto depender de alguma influência para sua felicidade; depende do que pensa a seu respeito o seu vizinho, do que pensa o guru, do que diz o Bhagavad Gita, ou os Upanishads, ou a Bíblia, ou Cristo. Sua mente nunca está sozinha. Nunca anda só esse homem, por que esta sempre em companhia de suas idéias.

Não é importante que se descubra, que se perceba de maneira completa a significação da interferência, da influência, da confirmação do “eu”, que é a contradição do anonimato? Percebendo-se bem isso, não surge invariavelmente a questão: é possível fazer surgir imediatamente aquela mentalidade livre de influências; a mente não influenciável nem pela própria experiência nem pela experiência de outros; a mente incorruptível, independente? Só então se tem a possibilidade de criar um mundo diferente, uma civilização diferente, uma sociedade diversa, em que será possível a felicidade.

Krishnamurti – 1 de março de 1953 – 7ª Conferência em Bombaim
Do livro: Autoconhecimento- Base da sabedoria - ICK




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