autoconhecimento
Para além das superficiais camadas da consciência
Mesmo quando repetimos certas palavras de profunda significação, vivemos, em geral, bem superficialmente; vivemos num mundo verbal, num mundo de ações e emoções superficiais. Nossa mente é sem profundidade, mesquinha, estreita, e um dos problemas mais importantes da vida é como tornar essa mente profunda, rica, cheia. A mente “carregada” de conhecimentos não é uma mente rica; só o é a mente que penetrou fundo em si mesma e descobriu seus próprios e inumeráveis recessos, suas secretas ideias e motivos, e é capaz de penetrar e transcender o pensamento.
Estou empregando a palavra “mente” não só para denotar a mente superficial que está ativa dos “motivos”, aquela que busca o preenchimento de secretos desejos, que está consciente de suas frustrações, suas aptidões, suas limitações, e sempre a buscar, sempre a sondar. Refiro-me à totalidade da mente, tanto à mente consciente como à inconsciente. Pouco sabemos dessa totalidade, porque a maioria funcionamos nas camadas superficiais da consciências; estamos completamente ocupados a respeito de nosso emprego, da rotina de nossa vida, de crenças, dogmas e fácil recitação de orações — coisas que a mente superficial se apega porque lhe são convenientes, proveitosas, e com isso nos damos por satisfeitos.
Agora, se pudermos aprofundar-nos no inteiro processo da mente, penetrar fundo no inconsciente, talvez então possamos descobrir por nós mesmos toda a extensão e limitação da faculdade de pensar. O inconsciente, por certo, não é um mistério, uma coisa que temos de aprender com os psicólogos ou com os que estudaram filosofia. Ele é parte integrante de nossa existência diária e está constantemente a indicar algo, a fornecer sugestões, mas acontece que nossa mente superficial acha-se sempre tão ocupada, tão atarefada com suas próprias sugestões; mas a mente oculta está lá. Ela não é mais sagrada nem mais divina do que a mente consciente, porquanto as duas fazem parte do processo total de nossa consciência, e, para podermos transcender as limitações dessa consciência, devemos compreender suas peculiaridades.
Em geral, julgamos ser necessário passarmos por essa luta e conflito, por pesares e várias frustrações; que é preciso a mente disciplinar-se; que certas coisas devem ser superadas ou rejeitadas a fim de se alcançar um degrau transcendente à mente, mas não me parece possível transcendê-la dessa maneira. Para se descobrir o que está além da mente, cumpre investigá-la em profundidade e compreender seus movimentos; porque a mente que não compreendeu de todo a si mesma projeta ideias, ilusões, que assumem uma falsa realidade. Enquanto eu não compreender as características de minha própria mente, as características do “eu”, todo o impulso a buscar baseia-se nos desejos, nos “motivos” da mente. Dessa forma, se não se compreenderem realmente as peculiaridades da mente, é impossível descobrir o que é verdadeiro. Eu posso dizer que existe um Atman, uma “superalma”, uma realidade atemporal, mas isso será uma mera repetição baseada em meu condicionamento, minha crença, e sem validade alguma. Enquanto eu não compreender toda a esfera de meu pensamento, todo o conteúdo de minha mente, não é possível ir além; e nós temos de ir além, porquanto, se não descobrirmos algo totalmente novo, a vida se torna mecânica, superficial, estéril.
Assim, como pode a mente compreender a si mesma? Existe, dentro da esfera da mente, uma entidade superior à mente? Compreendem, senhores? Existe, dentro do processo do pensamento, uma entidade que está acima e além do pensamento e que, por conseguinte, é capaz de controlar o pensamento? Ou essa coisa a que chamamos Atman, “o sublime”, “a alma”, é mera invenção do pensamento e, consequentemente, está compreendida na esfera do pensamento? Se existe uma superentidade, um agente exterior que transcende todo o processo de pensamento, então de nada adianta pensarmos a respeito dele, porquanto não se acha em sua esfera. Só podemos pensar a respeito de coisas que já conhecemos e que podemos reconhecer; mas, para se encontrar o que se acha além da mente, o pensamento terá de cessar.
A maioria de nós crê em algo existente além da mente, um observador que observa não só a mente mas também as coisas da mente, não é verdade? — que controla, molda, disciplina o pensamento. Enquanto não colocarmos em dúvida a existência de tal entidade transcendente à mente, transcendente à esfera do pensamento, continuaremos a considerar tal entidade como o princípio que guia a nossa vida e molda nossa conduta.
Ora, existe tal entidade — Atman, alma, ou o que quiserem — a qual está nos moldando, dirigindo e ajudando a viver uma vida são e equilibrada? Ou essa entidade se encontra dentro da esfera de nosso próprio pensar, sendo uma invenção de nosso próprio pensamento e, por conseguinte, irreal? A mente é produto do tempo, de experiências inumeráveis, resultado de muitos condicionamentos. O comunista não crê em Atman, na alma, porque foi condicionado para crer diferente, assim como vocês foram condicionados para crerem que existe uma alma, um Atman. Vocês, tal como ele, partem de um postulado, uma asserção, resultantes ambos de uma mente condicionada. Enquanto não se se perceber realmente esse fato e não for compreendido o seu significado, a mente é incapaz de transcender a si própria; ou, expressando diferentemente, o pensamento nunca pode estar tranquilo, a mente nunca pode estar completamente quieta, porque existem sempre “observador” e coisa “observada”; há sempre o experimentador desejando mais experiência, e assim se torna a nossa vida a infindável série de lutas que realmente é.
Ao terem uma experiência prazerosa, desejam repeti-la; e quando a experiência é dolorosa, vocês, como “experimentador”, desejam afastar a dor. O pensador abre a porta ao prazer e repele a dor, e por isso trava-se uma perene batalha interior, a qual se torna bem óbvia quando examinam a si mesmos. Entretanto, possuem a ideia de que o pensador, o observador, existe acima e além do pensar. Acreditam, porque leram em seus livros religiosos que o Atman ou a alma existe e está observando o pensamento. Mas, se examinarem com atenção, verão que quando não há pensar não há pensador; quando não há exigência de mais e mais experiência, nem acumulação de experiência, não há “experimentador”. Convencionou-se que existe uma entidade transcendente a tudo isso. Essa entidade, porém, ainda é resultado do pensar e, por conseguinte, está compreendida na área do tempo; logo, ela não é atemporal, nem divina.
(...)Se não compreendem a totalidade do “eu”, isto é, se a mente não compreende a totalidade de si própria, sua atividade estará sempre restrita à esfera que ela própria criou. A menos que a mente se liberte de seu condicionamento, tanto consciente como inconsciente, não poderá haver investigação real, porque o que buscam será conforme o condicionamento de vocês, e suas experiências de acordo com o “fundo” (background) de vocês. As experiências de um homem que tem visões do Cristo, de Krishna, disto ou daquilo, estão obviamente baseadas no seu “fundo”, sua tradição. Assim, a mente que está em busca do verdadeiro, que deseja descobrir se existe a Verdade, a Realidade, Deus, deve estar livre de seu “fundo”; e, se não descobrirmos o que é verdadeiro, nossa vida se torna um padrão mecânico, porventura modificado por circunstâncias, porém sempre um padrão mecânico, a que chamamos “progresso”, “evolução”.
(...) Ora, esse processo total é a mente; e quando a mente compreende seu “processo” total, ela se torna quieta, extremamente tranquila, porque não há o desejo de ser ou de não ser. Essa mente não é posta tranquila, ou induzida a ficar tranquila, mas se torna tranquila porque compreendeu o conteúdo de si própria. Só então é possível descobrirem por si mesmos se existe a Realidade ou não. Enquanto a mente de vocês não houver alcançado esse estado, suas afirmações de que existe ou não existe a Realidade, Deus, o Atman, nada significam. São puras repetições por parte de uma mente condicionada e que, como disco de gramofone, repete seguidamente a mesma frase.
O autoconhecimento, pois, é essencial, mas não pode ser encontrado nos livros; o autoconhecimento resulta de observarmos a nós mesmos no espelho das relações, o qual revela o funcionamento total da mente. Só depois de havermos compreendido a totalidade da mente, existe tranquilidade.
Jiddu Krishnamurti — O homem livre
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