autoconhecimento
A escuta é uma arte
É bem evidente que percorremos a vida criando problemas, que nunca são resolvidos; pois, ao vermos como são difíceis, complicados, sutis eles são, tratamos de evitá-los de todas as maneiras possíveis — por meio da religião, da bebida, do sexo, e de inúmeras outras maneiras inventadas pelo homem; temos uma verdadeira rede de vias de fuga. E a menos que, psicologicamente, resolvamos todos os nossos problemas, nossa mente permanecerá confusa, num estado de aflição, perenemente atormentada pela incerteza e pelo desejo de certeza, estabilidade, segurança. Torna-se, então, necessário resolvermos os nossos problemas humanos.
Temos problemas econômicos, sociais, emocionais, intelectuais e religiosos. Vivemos em compartimentos diferentes, separados, e cada separação, cada segmento, cada fragmento tem seu peculiar problema ou problemas; e tais problemas, oriundos dos diferentes fragmentos da mente, se acham naturalmente, em contradição entre si. Todo indivíduo deseja preencher-se intelectualmente, tornar-se escritor famoso, artista famoso — preencher-se de uma ou outra maneira na vida. E essa ânsia de preenchimento contradiz outros modos de existência. Vendo- nos incertos, buscamos a certeza, a permanência; desejamos compreender a imortalidade, enquanto vamos nos tornando velhos e definhando emocional, psicológica e fisicamente.
Nessas condições, em toda a nossa vida — embora gozemos boa situação financeira e, mesmo, mantendo relações satisfatórias uns com os outros — em toda a nossa vida temos problemas. E, se não resolvermos esses problemas totalmente — e isso é possível — não importa sermos muito talentosos, muito brilhantes em nossos raciocínios, muito competentes — eles devorarão a nossa mente e coração. E que possibilidade tem um ente humano que vive neste mundo sem o evitar, sem refugiar-se num mosteiro, em alguma fantasia mitológica, alguma crença, dogma ou ritual, em visões ilusórias, extravagantes — que possibilidade tem esse ente humano de varrer de sua mente todos os problemas, tornando-a vigorosamente, juvenil, INOCENTE?
Ora, para compreender o que estamos dizendo é necessário escutar; e esta é uma das coisas mais difíceis do mundo: escutar. É uma arte. Porque, em verdade, nunca escutamos. Não estão escutando realmente o que está sendo dito. Na realidade, têm suas opiniões, juízos, avaliações, conclusões; e têm certas ideias a respeito da reputação do orador. Ficamos, assim, numa atitude de expectativa, a qual, com efeito, impede vocês de escutarem realmente, atuando como uma cortina que não permite escutar com toda a intensidade. Só quando escutam sem tensão ou esforço, sem concordar ou discordar, porém observando e vendo o fato e a respeito dele não deixando interferir sua opinião, suas conclusões e conceitos intelectuais, suas fórmulas — só então parece-me, poder escutar realmente, com toda a calma e facilidade, penetrar o que está dizendo e descobrir se é verdadeiro ou falso. E esta parece uma das coisas mais importantes, quando desejamos comunicar uns com os outros. Porque, aqui nos achamos — eu e você — com o fim de nos comunicarmos, de comungarmos. Não vieram para ouvir minha palestra e sair daqui concordando ou discordando, contrapondo suas opiniões, contestações, etc., etc. Aqui estamos com o fim de entrar em comunhão a respeito do extraordinário problema da vida; e, para esse efeito, não só teremos de empregar palavras, mas também de compreender a significação das palavras, cientes de que a palavra não é, nunca é, a coisa; e, também, enquanto escutam, devem conhecer ou perceber os seus preconceitos, suas oposições, seu desejo de vantagens, seus embustes, enfim toda a estrutura psicológica com a qual escutam.
Assim, precisamos não só compreender a palavra, de que maneira ela cria, domina ou dá colorido ao sentimento, mas também devemos estar cônscios de que a palavra não é a coisa, não é o sentimento. Para a maioria de nós, a palavra é o sentimento; há imediata correspondência entre o sentimento e a palavra. Assim, se desejamos entrar em contato com o fato, precisamos ver a significação, a importância, a natureza e o sentido da palavra.
O importante é que se compreenda toda essa estrutura, não por meio de um processo intelectual, porém que se esteja totalmente cônscio de tudo isso — do passado, do presente — sem fugir dos fatos mas, ao contrário, entrando em contato direto com eles. Talvez, então, saberemos o que significa viver. E será um descobrimento feito por nós mesmos, não como indivíduos, porém como entes humanos, porque o ente humano é muito mais importante do que o indivíduo; o ente humano é a entidade total de dois milhões de anos, com tudo o que tem acumulado; não é um indivíduo isolado num canto pequeno. Talvez, então, saberemos, por nós mesmos, viver uma vida sem conflito — vida em que há tanta beleza! Só a mente que se libertou de todo e qualquer problema e, portanto, de toda espécie de esforço, só ela é capaz de descobrir algo não "projetado" de si própria, algo que não é mera palavra, mero sentimento, emoção.
Krishnamurti – O descobrimento do amor
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