autoconhecimento
A razão como trave de tropeço
Afirma-se frequentemente que a razão é a faculdade mais alta do homem e que ela lhe possibilitou dominar-se a si mesmo e dominar a Natureza. Foi a razão realmente bem sucedida nisto?
À parte da ação vacilante do mundo, tem havido um trabalho do pensador individual no homem, e este atingiu uma qualidade mais alta e se ergueu a uma atmosfera mais elevada e mais clara, acima dos níveis de pensamentos humanos gerais. Tem havido o trabalho de uma razão que sempre busca conhecimento e pacientemente se esforça por descobrir a verdade por ela mesma — sem desvio, sem a interferência de interesses que distorcem — por estudar tudo, por analisar tudo, por conhecer o princípio e o progresso de tudo. A Filosofia, a Ciência, o conhecimento adquirido, as artes fundadas na razão, todos os trabalhos de eras da razão crítica ao homem, tem sido o resultado deste esforço. Na era moderna, sob o impulso da Ciência, este esforço assumiu enormes proporções e pretendeu por algum tempo examinar com êxito, e finalmente estabelecer, o verdadeiro princípio e a suficiente norma de processo não apenas para todas as atividades da Natureza, mas para todas as atividades do homem. Isto fez grandes coisas, mas não foi, por fim, bem sucedido. A mente humana começa a perceber que deixou o coração de quase todo problema sem ser tocado, e iluminou apenas exterioridades e uma certa ordem de processos. Tem havido uma classificação e mecanização grande e ordenada, uma grande descoberta e resultado prático de conhecimento cada vez maior, mas apenas na superfície das coisas. Jazem em baixo, vastos abismos da Verdade, nos quais estão ocultas as reais fontes, os misteriosos poderes e as influências secretamente decisivas da existência. A questão é se a razão intelectual será algum dia capaz de nos dar uma explicação adequada destas coisas mais profundas e maiores, ou de submetê-las à vontade inteligente, pelo fato dela ter conseguido explicar e canalizar, embora ainda imperfeitamente mas com muita mostra de resultado triunfante, as forças da Natureza física. Mas estes outros poderes são muito mais vastos, sutis, profundos, encobertos, indefiníveis e variáveis que aqueles da Natureza física. Mas estes outros poderes são muito mais vastos, sutis, profundos, encobertos, indefiníveis e variáveis que aqueles da Natureza física.
Toda a dificuldade da razão em tentar governar nossa existência advém do fato de que, devido suas limitações inerentes, ela é incapaz de lidar com a vida em sua complexidade, ou em seus movimentos integrais; ela é compelida a decompô-la em partes, a fazer classificações mais ou menos artificiais, a construir sistemas com dados limitados, que são contraditos, derrubados ou têm que ser continuamente modificados por outros dados, obrigada a elaborar uma seleção de potencialidades ainda não reguladas.
Quando a razão se aplica à vida e à ação, ela se torna parcial e apaixonada, e se torna serva de outras forças que não a verdade pura.
Mas mesmo que o intelecto se mantenha tão imparcial e desinteressado quanto possível — e totalmente imparcial, totalmente desinteressado o intelecto humano não pode ser, a menos que ele se satisfaça com o chegar a um inteiro divórcio da prática, ou a um tipo de tolerantismo e ecletismo grandes mas inefetivos, ou a uma curiosidade cética — ainda assim as verdades que ele descobre ou as ideias que promulga se tornam, no momento em que são aplicadas à vida, o brinquedo de forças sobre as quais a razão tem pouco controle. A Ciência, em sua maneira fria e imparcial, fez descobertas que serviram por um lado a um humanitarismo prático, e por outro forneceram armas monstruosas para o egoísmo e a destruição mútua; ele tornou possível uma gigantesca eficiência de organização que tem sido usada por um lado para o melhoramento econômico e social das nações, e por outro para tornar cada uma delas um aríete de agressão, demolição e matança. De um lado ela deu surgimento a um grande humanitarismo racionalista altruísta, e de outro justificou um egoísmo e vitalismo perversos, ambição vulgar de poder e sucesso. Ela juntou a espécie humana e deu-lhe uma nova esperança, ao mesmo tempo em que a esmagou com a carga de um comercialismo monstruoso. E isto não se deve a seu divórcio da religião, como frequentemente se afirma, nem a uma falta de idealismo. A filosofia idealista tem estado igualmente a serviço do bem e do mal, e proporcionou uma convicção intelectual tanto para reação quanto para progresso. A própria religião organizada, bastante frequentemente no passado, incitou os homens ao crime e ao massacre e justificou o obscurantismo e a opressão.
A verdade é isto em que estamos agora insistindo: que a razão é em sua natureza uma luz imperfeita, com uma grande mas ainda assim restrita missão, e que, tão logo se aplica à vida e à ação, ela se torna sujeita ao que estuda, e serva e conselheira das forças em cuja luta obscura e mal compreendida intervém. Ela pode em sua natureza ser usada, e sempre o tem sido, para justificar qualquer ideia, teoria de vida, sistema de sociedade ou governo, ideal de ação individual ou coletiva a que a vontade do homem se apegue momentaneamente ou através dos séculos. Na filosofia ela dá igualmente boas razões para o monismo e o pluralismo ou para qualquer estação intermediária entre eles, para a crença no Ser ou para a crença no Tornar-se, para o otimismo e pessimismo, para ativismo e quietismo. Ela pode justificar o religiosismo mais místico e o ateísmo mais positivo, descartar-se de Deus ou não ver nenhuma outra coisa. Na estética ela fornece a base igualmente para o classicismo e para o romantismo, para uma teoria idealística, religiosa ou mística da arte, ou para o realismo mais terra-a-terra. Ela pode com igual poder fundamentar austeramente um moralismo rigoroso e estreito ou provar triunfantemente a tese do antinomiano. Ela tem sido o profeta suficiente e convincente de toda espécie de autocracia ou oligarquia e de todas as espécies de democracia; ela fornece razões excelentes e satisfatórias para o individualismo competitivo, e igualmente razões excelentes e satisfatórias para o comunismo ou contra o comunismo e para o socialismo de Estado ou para uma variedade de socialismo contra outra. Ela pode colocar-se com igual eficácia a serviço do utilitarismo, economismo, hedonismo, esteticismo, eticismo, idealismo, ou qualquer outra necessidade ou atividade essencial do homem, e construir em torno disso uma filosofia, um sistema político e social, uma teoria de conduta de vida. Peça-lhe que não se incline para uma ideia só, mas que faça uma combinação eclética ou uma harmonia sintética, e ela irá satisfazê-lo; somente, qualquer que seja o número de combinações ou harmonias possíveis, ela justificará igualmente bem uma ou outra, e erigirá ou derrubará qualquer uma delas, conforme o espírito no homem for por ela atraído ou dela se retirar. Pois em verdade é ele quem decide, e a razão é apenas um servo e ministro brilhante deste velado e secreto soberano.
Sri Aurobindo em, A evolução futura do homem
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