autoconhecimento
Abrindo mão da dependência de gurus
Pergunta: Não admitis a necessidade da orientação dada por um guia? Se, como dizeis, não deve mais haver nem tradição nem autoridade, nesse caso todos terão de lançar novas bases para a sua existência. Assim como o corpo físico teve um começo, não deve haver também um começo para o nosso corpo espiritual e mental e não deve este ascender de cada degrau para o degrau superior, imediato? Assim como nosso pensamento se inflama, quando vos ouvimos, não é necessário despertá-lo, pelo contacto com os grandes espíritos do passado?
KRISHNAMURTI: Senhor, este é um problema velho como o mundo. Pensamos que necessitamos de um guru, um instrutor, para nos despertar a mente. Pois bem. Que implica isso? Implica, de um lado, o homem que sabe, de outro lado, o homem que não sabe. Continuemos devagar, sem nos deixarmos influir por preconceitos. "O homem que sabe" se torna a autoridade, e "o homem que não sabe" se torna seu discípulo. E o discípulo vai sempre seguindo o mestre, na esperança de alcançá-lo, de se colocar no mesmo nível que ele. Agora, prestai atenção! Quando o guru diz que sabe, já não é guru. Porque o homem que diz que sabe, não sabe. E vede porque não sabe: porque a Verdade, a Realidade, ou "o outro estado", não se acha num ponto fixo, não se pode alcançar por um certo caminho, e temos de descobrí-la momento por momento. Se está num ponto fixo, nesse caso esse ponto se acha dentro dos limites do tempo. Para um ponto fixo pode haver caminho, como há um caminho para vossa casa; mas para uma coisa viva que não tem pouso fixo, que não tem começo nem fim, não pode haver caminho algum.
Ora, um guru que se oferece para ajudar-vos a conhecer a Realidade só poderá ajudar-vos a reconhecer o que já conheceis; porque o que se pode reconhecer, experimentar, tem de ser reconhecível, não achais? Quando o reconheceis, dizeis: "Experimentei" — mas o que é reconhecível, não pode ser aquele outro estado. O outro estado não é reconhecível, pois nunca foi conhecido; não é uma coisa que já experimentastes e que sois capaz de reconhecer. O "outro estado" é uma coisa que tem de ser descoberta momento por momento; e para descobrí-la, a mente tem de ser livre. Senhor; a mente tem de estar livre para descobrir qualquer coisa; e a mente agrilhoada pela tradição, antiga ou moderna, a mente que leva a carga da crença, dos dogmas, dos ritos, não é livre, evidentemente. Para mim, a ideia de que um outro pode despertar-vos, não tem validade alguma. Isto não é uma opinião; é um fato. Se um outro vos desperta, ficais sob sua influência, dependente dele; por conseguinte não sois livre; e só a mente livre pode descobrir.
É este, portanto, o problema, não achais?
Aspiramos àquele outro estado, e uma vez que não sabemos como alcançá-lo, passamos invariavelmente a depender de alguém, a quem chamamos instrutor, guru, ou a depender de um livro, ou de nossa própria experiência. E está criada, assim, a dependência, e onde há dependência há também autoridade. A mente se torna, por conseguinte, escrava da autoridade, escrava da tradição, e essa mente, de toda evidência, não é livre. Só a mente que é livre, pode descobrir; e contar com a ajuda de outro para o despertar da mente, é o mesmo que recorrer a uma droga que vos fará ver as coisas com muita nitidez, muita clareza. Há drogas que podem fazer a vida parecer, momentaneamente, muito mais "vital", de modo que todas as coisas assumem um relevo, um brilho extraordinário — as cores que vedes todos os dias, sem lhes dar atenção, se tornam extraordinariamente belas, etc. Tal poderá ser o vosso "despertar" da mente, mas estareis então na dependência da droga, como dependeis agora de vosso guru ou de um certo livro sagrado. E quando se torna dependente, a mente se embota. Da dependência provém o temor — o temor de não realizar o que se quer, o temor de não ganhar. Quando dependemos de outro, seja o Salvador, seja outro qualquer, isso significa que a mente está em busca de um resultado feliz, um fim satisfatório. Podeis chamá-lo Deus, a Verdade, ou como quiserdes — mas é sempre uma coisa que se quer ganhar. E, assim, a mente fica aprisionada, se torna escrava e, não importa o que faça — sacrificar-se, disciplinar-se, torturar-se — essa mente nunca descobrirá o outro estado.
O problema, pois, não é quem seja o instrutor correto, mas sim descobrir se a mente pode manter-se desperta. E isso só se pode descobrir quando todas as relações se tornam um espelho, em que ela se vê exatamente como é. Mas a mente não pode ver-se como é, quando há condenação ou justificação daquilo que vê, ou se há qualquer forma de identificação. Todas essas coisas tornam a mente embotada e, embotados que estamos, desejamos ser despertados. Por essa razão amparamo-nos em outro, para que nos desperte. Mas, em virtude do próprio desejo de ser despertada, a mente embotada se torna mais embotada ainda, porquanto não percebe a causa do seu embotamento. É só quando a mente percebe e compreende todo esse processo, e não depende de explicações de ninguém, é só então que ela é capaz de libertar-se.
Mas, como é fácil nos satisfazermos com palavras, com explicações! São muitos poucos os que rompem a barreira das explicações, ultrapassando as palavras e descobrindo por si mesmos o que é verdadeiro. A capacidade é produto da aplicação, não é? Mas nós não nos aplicamos, porque nos satisfazemos com palavras, com especulações, com as tradicionais respostas e explicações com que fomos criados.
Krishnamurti — Da solidão à Plenitude Humana
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