Sinto ser os grupos anônimos, um necessário processo de “refamília”, processo esse que nos abre para os estruturantes fundamentos de uma “educação psíquica”, a qual, mediante sua instalação, ao mesmo tempo em que descondiciona nossa mente, a realinha com os níveis sutis de nosso coração.
Os princípios espirituais contidos nos Doze Passos apontam para a revelação direta de níveis de consciência nunca antes se quer imaginados; são poderosas ferramentas necessárias para a instalação de um “processo de realinhamento e harmonização psíquica, emocional e física”, processo este que nos prontifica para o estado fecundo onde se torna possível a revelação da abarcante “Natureza Real que somos”, natureza esta, totalmente livre dos limites separatistas da imagem, da persona, do eu, do ego, com o qual, a maior parte de nós, por décadas, se viu totalmente identificado e que, por tal identificação, acabou mantendo estagnada nossa caminhada evolutiva consciencial, bem como nossos talentos tão necessários para a exteriorização de nossa real vocação.
Inicialmente, se bem trabalhados estes princípios espirituais quanto o disciplinar de um determinado padrão comportamental obsessivo compulsivo, num novo momento de consciência, estes mesmos princípios, mediante a presença de um estado de mente aberta, podem ser observados em níveis superiores que apontam para um necessário “alinhamento superior” — o qual não parte de nosso desejo e esforço —, pelo qual se dá o resgate e a reorientação de nossa energia vital — outrora desperdiçada com a prática comportamental da ativa —, para o conhecimento e a prática amorosamente responsável do serviço evolutivo vocacionado.
Para que tal “alinhamento superior” possa se fazer manifesto, há que se estudar de forma minuciosa e destemida a multiplicidade dos medos e desejos que parasitam nossos corpos psíquico, emocional e físico; medos e desejos esses que nos habitam — de forma totalmente indevida — desde a mais tenra idade e que, com o passar dos anos, à eles fomos acrescentando novas camadas que estruturam a desestruturação do conhecimento direto da realidade que somos, dessa imensurável grandeza que nos habita e na qual somos.
Em última análise, toda forma de sofrimento humano, toda forma de manifestação de conflito humano, encontra-se na inconsciência de nossa negligência de uma escuta atenta e não defensiva, tanto de nós mesmos, como da natureza e do “outro” com quem “pensamos” estar em real contato. Sem a tomada de consciência da gravidade e seriedade de nosso estado de inconsciência, o qual nos impede a escuta atenta da fala mansa e suave que nos habita e na qual somos, é humanamente impossível a descoberta de um “estado de ser” dotado de real sentido, amor, compaixão, felicidade, liberdade, autenticidade, originalidade, sensibilidade curativa e inteligência amorosamente criativa. Sem esse “contato consciente” com a Realidade que somos, estamos fadados à um “estado existencial” cujas frágeis bases se encontram na comparação, na imitação, na desumana competição separatista, no ajustamento servil, comportamentos estes, sempre moldados em arcaicos sistemas de crenças, disfuncionais tradições, modismos, manias, conceitos, achismos e neuroses coletivas. Enquanto não nos abrimos para essa prática da escuta atenta, enquanto essa prática não deixa de ser apenas um “verbo”, uma “idéia”, para passar então, a “habitar em nosso corpo, em nossa mente e coração”, não há como deixar de ser uma pessoa de 2ª mão; alguém que está sempre preso ao imperioso vício de “acumular” conhecimento de terceiros, estes, em sua grande maioria, conhecimento livresco e institucionalizado, portanto, nada tendo de original, nada resultante de um contato consciente com essa inefável grandeza que nos habita. Sem esta escuta atenta que possibilita um estado de “prontificação incorporante”, o único estado de ser que podemos conhecer está na continuidade de um compulsivo ciclo fechado de desequilibrios e infelicidade crônica, estado este que impede a tão necessária “reencarnação” da Consciência Real que somos, esta, até então abafada pela nefasta identificação com a imagem personalista de nós mesmos e do mundo que nos cerca, a qual ao longo dos anos de uma existência sem vida, viemos alimentando, com a ajuda da família e sociedade. Sem que ocorra a bem-aventuraça da “reencarnação” da Consciência Real que somos, não há como ocorrer a percepção pura do real sentido de nossa existência neste espaço tempo, não há como descobrir nossa real vocação, nossa missão no mundo, através da potencialização de nossos talentos adormecidos. Enquanto não “reencarnamos” a Consciência Real que somos, só podemos ser excelentes “mecânicos especialistas”, extremamente técnicos e cartezianos, mas destituídos da sensibilidade e da inteligencia amorosa vocacionada e, como resultado, não há como deixar de experienciar nossos quase sempre abafados sentimentos de tédio, mesmice, rotina e insatisfação, os quais nos forçam ao ciclo compulsivo de desejos, medos e nefastas somatizações.
Na realidade, enquanto não “reencarnamos” esta Consciência Real que somos, além de continuarmos sendo vitimados por uma incessante rede de desejos — estes, quase sempre, desejos não originais, não oriundos de nosso interior, mas sim, desejos que seguem a tradição parental/social — não teremos a menor condição de viver a realidade da manifestação de uma qualitativa “Vontade Superior”, sem a qual, não há como descobrirmos o significado da verdadeira liberdade do espírito humano, bem como daquilo que transcende em muito o que convencionou-se chamar de amor. O que hoje chamamos de amor, nada tem a ver com as genuínas qualidades do Amor; Amor não é apego parental, não é ciúme, não é prazer, não é desejo sexual, não é controle, não é posse, não é domínio. Não há como expressar o que é o Amor, só há como expressar aquilo que ele não é; para saber o que é Amor é preciso vivenciá-Lo e, em consequencia natural, expressá-Lo através de seu natural transbordamento ético. Quase todos nós falamos de amor e liberdade, mas, no fundo, no fundo, tememos a responsabilidade que os mesmos trazem em seu borjo; dizemos querer a excelência, mas, em última análise, a grande maioria de nós, conforma-se com aquilo que “pensamos” ser bom (ou o que nossas famílias dizem ser bom). Tudo isto, porque evitamos a ação curativa proveniente de uma “escuta atenta, não defensiva, não comparativa, não negociável”. Se existe algum tipo de “antídoto”, algum tipo de “Poder Superior” à estagnante “neurose do não-ser”, este se expressa através deste tipo de escuta incondiconada, a qual nos “prontifica” para um processo de “desentulho cultural”, sem o qual, não há como se manifestar a beleza, o frescor e a fecundidade criativa do imensuravelmente novo.
Todos os princípios espirituais contidos nos Doze Passos dos Grupos anônimos, trabalham para a reorientação de nossos desejos, para o realinhamento de nossos desejos deturpados pela ação de uma emaranhada rede de pensamentos condicionados pela cultura e tradição; eles possibilitam o recentramento no ser que somos, bem como a revelação de nosso desejo essencial: o conhecimento consciente da Vontade Superior que trazemos em nós e, pela qual, somos. No entanto, o conhecimento consciente desta Vontade Superior, só se faz possível se, anteriormente, dá-se o necessário trabalho de “reparação”, de “inventariar”, momento a momento, os condicionantes entulhos culturais que nos impedem de viver a realidade que somos e que nos forçam a continuidade da alimentação e defesa de uma auto-imagem falsa, a qual nos mantém estagnados num modo de existir sem o conhecimento direto do significado da expressão “Vida em Plenitude”. Todos trazemos no mais íntimo de nosso ser, aquilo que podemos chamar de um “desejo essencial”, desejo este que não se limita ao mundo das formas e a dimensão temporal. Tenho certeza que, você leitor, sabe muito bem o que significa isso que aqui, agora expresso; você pode até não saber explicar aquilo que lhe pede esse desejo essencial, mas, de fato, pode sentí-lo, a todo momento, escondido nessa constante inquietude que lhe impulsiona para algo mais, algo mais esse, que você nunca poderá encontrar na temporalidade do mundo das formas. Para tanto, se faz necessário inventaria de forma minuciosa e destemida “o que é que realmente buscamos”, “o que é que nos faz perder noites de sono ao mesmom tempo em que potencializa nossa energia vital”; perguntar “para que e para quem acordamos a cada dia”; no enfrentamento incondicionado e destemido destas perguntas e que podemos nos deparar com nossa resposta divina, a qual pode nos curar de nossa “disritimia do ser”, causada pela “disritimia do ter e do vir-a-ser”.
Através de nossa experiência, podemos afirmar que nossos conflitos existênciais se dão pela teimosia de atendimento dos insanos desejos de nossa personalidade viciada, em detrimento dos desejos dos Ser que somos; nossa mente nos pede por coisas finitas diametralmente opostas aos valores infinitos expressos pelos mais profundos anseios de nosso coração-amor-compaixão. É na continuidade de nossa imatura teimosia que se proliferam as raízes daninhas de toda manifestação de neuroses fragmentadoras e separatistas. Toda vez que insistimos em fechar nossa escuta atenta para esta fala mansa e suave que nos habita em nosso centro cardíaco sutil — e na qual somos — , consequentemente, damos continuidade as falas e imagens desconexas de nossa mente, as quais nos impelem ao ajustamento servil, nos afastando de nossa realidade interna; em consequencia, não há como deixar de somatizar o desequilíbrio causado por nossa falta de escuta à nossa profunda voz interior. Como nos dizeres de Jean-Yves Leloup:
“Quando mentimos a nós mesmos, quando fugimos de nossa vocação, quando renegamos o nosso ser essencial, ocorrem consequencias nefastas, não somente para nós mesmos, mas também para nosso ambiente... Não ser você mesmo, não escutar o seu desejo mais profundo, acarretará consequências sobre o outro — é bom que o saibamos. Estar em harmonia consigo mesmo, escutar a sua voz interior, mesmo se esta voz tem exigências que nos fazem medo, é bom para nós mesmos e não acarretará consequências nefastas para o nosso próximo.”
Tenho afirmado através das falas e textos que nos vêem em momentos menos esperados — sem que os mesmos sejam “pessoalmente organizados” — que, muitos daqueles que se deparam com os mesmos, se encontram naquele período fértil que convencionamos chamar de “período de 40 anos no deserto do real”, período este que nos apresenta o divino portal que separa os adultos dos adolescentes espirituais. Neste portal, já não há mais espaço para as imaturas escolhas de narcotização da consciência que somos, através do alimentar de infundados e inconsequentes desejos influenciados por uma enorme e intrincada rede de condicionamento social. Neste precioso momento de nossa caminhada por esta assim chamada “terra sem caminho e sem mapas psicológicos”, onde a única bussola se encontra em nosso coração util, para aqueles que se encontram “realmente prontos”, a única possibilidade que se apresenta à nossa frente é a de, com boa vontade e mente aberta, ser uma pacífica testemunha da abertura do imenso mar de nossa inconsciência, testemunhar esse que nos aponta para a travessia da irrealidade de nós mesmos, rumo ao sólido e fecundo solo da Natureza e Verdade que somos.
Não raro, para nossa tristeza, neste momento da caminhada, temos constatado que muitos são aqueles que, insanamente, preferem a fuga para o ajustamento ao servilismo escravagista da “normalidade social”, o qual os mantém num estado de analfabetismo quanto a realidade de si mesmos. Aos que tristemente optam por isso, a única possibilidade que se apresenta, se faz através do isolamento emocional e físico, o qual resulta num estado de mediocridade, aceleradamente e visivelmente debilitante. Por mais que estes “fugitivos da realidade de si mesmos” tentem disfarçar através de um estressante e narcísico colecionar de posses, poses, aceleradas e caras práticas externas, ou em raros caos, pela busca do velho conhecimento dogmático-esotérico-metafísico, os cacoetes de seus obesos ou anoréxicos corpos cansados — por vezes, cirurgicamente adulterados —, juntamente com suas repetidas falas, estas sempre embasadas num passado morto que nada de real acrescentam, bem como a falta de brilho em seus olhares exaustos, o qual tentam disfarçar com caros e irrealistas cosméticos, acabam sempre denunciando a ausência de Vida em plenitude em sua rotineira e mecânica existência, e que, em última análise, nada de qualitativamente estruturante deixa de herança para a tomada de consciência das futuras gerações.
Como o próprio título deste texto nos sugere, tudo na vida faz parte de um grande processo, o qual, na maioria das vezes, não estamos devidamente conscientes. Olhando para o nosso passado, se somos realmente sérios, podemos ver com facilidade que o medo e o desejo sempre estiveram presentes e que os mesmos, até determinado momento, serviram de ponte para as necessárias experiências formadoras de novos níveis de consciência. Inicialmente, nossos desejos e medos se encontram na esfera da limitante e condicionada busca de aceitação e validação parental/social. Somente depois de chegarmos ao fundo de poço causado pelos “naturais e certos” desencantos e desilusões, é que se manifesta em nós, um desejo de níveis muito mais sutis que já não se encontra mais na esfera do tempo e da forma: o desejo de ir muito além da herdada idéia de deus ou da crença numa imagem auto-criada de deus, para “a vivência direta da Realidade Inefável de Deus”. Este é um momento muito delicado, confuso e dolorido em nossa caminhada, um momento em que não somos bem vistos por aqueles que — como nós em nosso inconsciente passado —, ainda se vêem prisioneiros de imagens, crenças e conceitos referentes a deus. É natural aqui, além do medo do ostracismo, sermos também assolados pelo medo de estarmos ficando loucos, quando, na realidade, o que vivenciamos é aquilo que muitos místicos chamaram de “a loucura que a tudo cura”. Neste momento, perfeitamente elucidado nos dizeres do princípio do 11º Passo dos grupos anônimos, nosso único desejo está em aprofundar nosso contato consciente com Deus, não mais para fazer dele algo como um gerente bancário/imobiliário ou um agente matrimonial, mas para tão somente tomarmos conhecimento de sua Vontade soberana em relação a nós, rogando forças para realizá-la, uma vez que, sua Vontade sempre contraria os interesses umbigóides de nosso ego. Os desejos do eu, do ego, são sempre exclusivistas e autocentrados, visando sempre privilégios pessoais, não levando em consideração o que é de direito coletivo. Já essa Vontade Soberana, visa tão somente o bem estar comum, onde de fato, estamos incluídos, desde que tomada a devida consciência, muito além de um níve mental, de que somos todos um. Enquanto nos limites do eu, do ego, da persona que fomos sistematicamente incentivados a acreditar que somos, nossa visão permanece sempre num modo dual, separatista, isolacionista e profundamente competitivo. Quando nos chega a conciência da Consciência Real que somos, adentramos numa nova visão, visão esta que supera em muito a antiga visão dos olhos que pensavam ver e que, por pensar ver, continuavam a pensar de forma reativa. Já com a instalação dessa consciência da Consciência Real que somos, nossa visão passa a ser profundamente abarcante, comungante e profundamente solidária.
Outsider44
Reunião transmitida pelo Paltalk na noite de 12/07/2012
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