autoconhecimento
É possível produzir uma mutação radical em nossa consciência?
A crise não está no mundo econômico, nem no mundo político; a crise está na consciência. Acho que muitos poucos de nós percebem isto. A crise está na nossa mente e em nosso coração; isto é, a crise está em nossa consciência. A nossa consciência é a nossa existência em sua totalidade. Com as nossas crenças, com as nossas conclusões, com o nacionalismo, com todos os medos que temos; são os nossos prazeres, os problemas aparentemente insolúveis e aquilo que chamamos amor, compaixão; ela inclui o problema da morte — o imaginar se existe alguma coisa após a morte, alguma coisa além do tempo, além do pensamento, alguma coisa eterna: este é o conteúdo da nossa consciência.
este é o conteúdo da consciência de todo ser humano, em qualquer parte do mundo em que viva. O conteúdo da nossa consciência é o terreno comum de toda a humanidade. Acho que temos que deixar isto bem claro desde o início. Um ser humano de qualquer parte do mundo sofre, não apenas fisicamente, mas também interiormente. Ele está incerto, amedrontado, confuso, ansioso, provado de qualquer sentido de profunda segurança. Assim, a nossa consciência é comum a toda a humanidade... A consciência de vocês, o que vocês pensam, o que vocês sentem, as suas reações, as suas ansiedades, a sua solidão, os seus pesares, a sua dor, a sua procura de alguma coisa que não seja apenas física, mas que ultrapasse todo o pensamento, é igual à de uma pessoa que viva na Índia, na Rússia ou na América. Todos eles passam pelos mesmos problemas que vocês, os mesmos problemas de relacionamento uns com os outros, homem, mulher. Assim, todos estão no mesmo terreno da consciência. A consciência é comum a todos nós e, portanto, não somos indivíduos... Nós fomos treinados, educados, tanto religiosa quanto academicamente, para pensar que somos indivíduos, almas separadas, em luta por nós mesmos; mas isso é uma ilusão, porque a nossa consciência é comum a toda a humanidade. Não somos indivíduos em separado batalhando por nós mesmos. Isto é lógico, é racional, sensato. Não somos entidades separadas, com conteúdo psicológico separado, lutando por nós mesmos, mas somos, cada um de nós, na realidade, o resto da humanidade.
Talvez vocês aceitem intelectualmente a lógica disto, mas se vocês sentirem profundamente, então toda a atividade de vocês sofrerá uma mudança radical. Essa é a primeira questão que temos que pensar juntos: que a nossa consciência, o modo como pensamos, o modo como vivemos, alguns talvez mais confortavelmente, com mais fartura, com maior facilidade de viajar do que os outros, é, interiormente, psicologicamente, exatamente igual à dos que vivem milhares e milhares de milhas distantes.
Tudo é relação; a nossa própria existência é relação. Observem o que fazemos com as nossas relações uns com os outros, sejam elas íntimas ou não. Em toda relação há um tremendo conflito, luta — por quê? Por que os seres humanos, que vivem há mais de milhões de anos, não resolveram esse problema da relação?... Toda a sociedade está baseada no relacionamento. Não há sociedade se não houver relacionamento; a sociedade torna-se, então, uma abstração.
Observamos que existe conflito entre o homem e a mulher. O homem tem seus próprios ideais, as suas próprias buscas, as suas próprias ambições, está procurando o sucesso, ser alguém no mundo. E a mulher também está lutando, também está querendo ser alguém, querendo realizar-se, transformar-se. Cada um está buscando sua própria direção. Assim, homem e mulher são como duas ferrovias que correm paralelas, nunca se encontram, a não ser, na cama, mas de outro modo — se vocês observarem profundamente — nunca na realidade se encontram psicologicamente, interiormente. Por quê? Essa é a questão. Quando perguntamos por que, estamos sempre perguntando pela causa; pensamos em termos de causação, na esperança de que, se pudermos entender a causa, então, talvez, possamos mudar o efeito.
Assim, estamos fazendo uma pergunta muito simples e muito complexa: por que nós, seres humanos, não fomos capazes de resolver este problema do relacionamento, embora vivamos sobre esta terra há milhões de anos? Será porque cada um tem a sua imagem particular e especial, formada pelo pensamento, e que o nosso relacionamento se baseia em duas imagens, a imagem que o homem cria dela, da mulher, e a imagem que a mulher cria dele? Assim, neste relacionamento, somos como duas imagens que vivem juntas. Isto é um fato. Se vocês observarem por vocês mesmos, com muito cuidado, se é possível fazer esta observação, vocês terão criado uma imagem dela e ela criou um quadro, uma estrutura verbal de você, o homem. Assim, o relacionamento é feito entre estas duas imagens. Essa imagens foram formadas pelo pensamento. E o pensamento não é amor. Todas as lembranças desse relacionamento, de um com o outro, os quadros, as conclusões de um a respeito do outro, se observarmos cuidadosamente, sem qualquer preconceito, são produtos do pensamento; são o resultado de muitas lembranças, experiências, irritações e solidões e, assim, o nosso relacionamento de um com o outro não é amor, mas a imagem que o pensamento formou. Assim, se devemos entender a realidade das relações, temos que entender todo o movimento do pensamento, porque vivemos pelo pensamento; todas as nossas ações se baseiam no pensamento, todos os grandes edifícios, as catedrais, igrejas, templos e mesquitas do mundo são resultado do pensamento. E tudo dentro destes edifícios religiosos — as figuras, os símbolos, as imagens — tudo é invenção do pensamento. Não há como refutar isso. O pensamento criou não apenas os mais maravilhosos edifícios, mas também criou os instrumentos de guerra, a bomba sob todas as suas formas. O pensamento também produziu o cirurgião e os seus maravilhosos instrumentos, tão delicados na cirurgia. E o pensamento também produziu o carpinteiro, o seu estudo da madeira e os instrumentos que ele usa. O conteúdo de uma igreja, a habilidade de um cirurgião, a perícia do engenheiro que constrói uma bela ponte, tudo é resultado do pensamento — não há como refutar isso. Assim, temos que examinar o que é o pensamento e por que os seres humanos vivem do pensamento e por que o pensamento produziu esse caos no mundo — a guerra e a falta de relacionamento de uns com os outros — examinar a grande capacidade do pensamento, com a sua extraordinária energia. Também devemos perceber como o pensamento trouxe, durante milhões de anos, esse pesar da humanidade.
(...) O pensamento é uma resposta da lembrança de coisas passadas; ele também se projeta como esperança para o futuro. A memória é conhecimento; o conhecimento é a memória da experiência. Isto é: há a experiência, da experiência se faz o conhecimento como memória e pela memória vocês agem. Com essa ação vocês aprendem, o que quer dizer mais conhecimento. Assim, vivemos neste ciclo — experiência, memória, conhecimento, pensamento e daí ação — sempre vivendo dentro do campo do conhecimento.
(...) Podemos ter avançado tecnologicamente, ter melhores meios de comunicação, melhor transporte, higiene, e assim por diante, mas, internamente, somos mais ou menos os mesmos — infelizes, inseguros, solitários, carregando o pesar interminavelmente. E qualquer homem sério, quando se defronta com este desafio, deve responder a ele, não pode aceitá-lo casualmente, dar as costas. É por isso que essas reuniões são muito sérias, mas muito sérias mesmo, porque temos que aplicar as nossas mentes e os nossos corações para descobrirmos se é possível produzir uma mutação radical em nossa consciência e, portanto, em nosso comportamento.
O pensamento nasce da experiência e do conhecimento, e não há nada de absolutamente sagrado a respeito do pensamento. Pensar é um ato materialista, é um processo da matéria. E nós confiamos no pensamento para resolver os nossos problemas na política, nas religiões e nas nossas relações. O nosso cérebro, a nossa mente, são condicionados, educados para resolver os problemas. O pensamento criou os problemas e, depois, o nosso cérebro, a nossa mente, são treinados para resolvê-los com mais pensamento. Todos os problemas são criados, psicologicamente, interiormente, pelo pensamento... O pensamento cria o problema, psicologicamente; a mente é treinada para resolver os problemas com mais pensamento; assim o pensamento, ao criar o problema, tenta, depois, resolvê-lo. Assim, ele é preso num processo contínuo, numa rotina. Os problemas estão se tornando cada vez mais complexos, mais insolúveis; por isso, devemos descobrir se é possível abordarmos a vida de um modo diferente, não através do pensamento, porque o pensamento não resolve os nossos problemas; pelo contrário, o pensamento produziu uma complexidade maior. Devemos descobrir se é possível ou não, se há uma dimensão diferente, uma abordagem totalmente diferente da vida. Por isso, é importante entender a natureza do pensamento. O nosso pensamento se baseia na lembrança das coisas passadas — pensar no que aconteceu uma semana atrás, pensar nisso modificado no presente e projetá-lo no futuro. Este é realmente o movimento de nossa vida. Assim, o conhecimento tornou-se muito importante para nós, mas o conhecimento nunca se completa. Portanto, o conhecimento sempre vive dentro da sombra da ignorância. Esse é um fato...
O amor não é lembrança. O amor não é conhecimento. Amor não é desejo ou prazer. Lembrança, conhecimento, desejo e prazer são baseados no pensamento. O nosso relacionamento de uns com os outros, embora próximo, se for olhado com cuidado, baseia-se na lembrança, que é pensamento. Assim, essa relação — embora vocês possam dizer que amam suas esposas ou seus maridos ou as suas namoradas — está, na realidade, baseada na lembrança, que é pensamento. E nisso não há amor. Vocês percebem realmente esse fato? Ou vocês dizem: “Que coisa mais terrível de se dizer. Eu realmente amo minha esposa”. Mas será mesmo? Pode haver amor quando há ciúme, posse, ligação, quando cada um está perseguindo sua própria e particular ambição, cobiça e inveja, como duas linhas paralelas que nunca se encontram? Isso é amor?
(...) O amor não tem nenhum problema e, para entender a natureza do amor e da compaixão com a sua própria inteligência, devemos entender juntos o que é o desejo. O desejo possui uma extraordinária vitalidade, uma extraordinária persuasão, impulso, alcance; todo o processo do vir a ser, do sucesso, está baseado no desejo — desejo que faz com que nos comparemos uns com os outros, imitemos, nos conformemos. É muito importante, ao entendermos a nossa natureza, entender o que é o desejo; não suprimi-lo, não fugir dele, não transcende-lo,, mas entende-lo, perceber todo o seu ímpeto. (...)
Entender o desejo exige atenção, seriedade. É um problema muito complexo entender por que os seres humanos viveram desta extraordinária energia do desejo, assim como da energia do pensamento. Qual é a relação entre pensamento e desejo? Qual é a relação entre o desejo e a vontade? Vivemos muito pela vontade. Assim, qual é o movimento, a fonte, a origem do desejo? Se nos observarmos, veremos a origem do desejo; ele começa com as respostas sensoriais; depois, o pensamento cria a imagem e, neste momento, começa o desejo. Vemos algo na vitrina, um vestido uma camisa, um carro, seja lá o que for — nós vemos isso — sensação —, e então o tocamos, e então o pensamento diz: “se eu vestir esta camisa ou vestido, como vai ficar bem” — isso cria as imagens e, então, começa o desejo. Assim, a relação entre o desejo e o pensamento é muito próxima. Se não houvesse o pensamento, haveria apenas a sensação. O desejo é a quintessência da vontade. O pensamento domina a sensação e cria o estímulo, o desejo, a vontade de possuir. Quando o pensamento opera no relacionamento — que é lembrança, que é a imagem que um cria do outro pelo pensamento — não pode haver amor. O desejo, o desejo sexual ou outras formas de desejo, impede o amor, porque o desejo faz parte do pensamento.
Krishnamurti – A rede do pensamento
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