Meio de Vida Correto; Vocação, Incompatibilidades
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Meio de Vida Correto; Vocação, Incompatibilidades


O que é viver de maneira certa? Na sociedade como ela é agora, não há nenhum modo correto de viver. Você tem de ganhar o seu sustento; você se casa, tem filhos, torna-se responsável. (…) Ou será a busca de um modo certo de viver apenas uma busca de Utopia, um anseio por algo mais? O que se deve fazer numa sociedade corrupta, que tem tantas contradições em si mesma, na qual há tanta injustiça? (1)

É possível viver nesta sociedade, não apenas para ter um modo correto de subsistência, mas também para viver sem conflito? (…) Viver uma vida sem nenhum conflito requer grande dose de compreensão de si mesmo e, portanto, grande inteligência - não a inteligência aguda do intelecto, mas a capacidade de observar, de ver objetivamente o que está acontecendo, tanto externa como internamente.(2)

O que desejo discutir (…) é o problema da mente que se aplica a este vasto e complexo problema da existência. A existência não compreende apenas a obtenção ou a conservação de um emprego, mas toda a esfera da existência psicológica, quase desconhecida para a maioria de nós. (…) O problema da existência é este vasto complexo de guerras, classes, castas, divisão, a perpétua batalha do homem contra o homem, em competição. (3)

Senhores, que significa “meio de vida”? É ganhar o suficiente para as nossas necessidades, que são alimento, roupa e moradia (…) A dificuldade (…) só surge quando nos servimos das coisas essenciais à vida como meios de agressão psicológica. (4)

Isto é, quando me sirvo das necessidades, das coisas indispensáveis, como meios de engrandecimento pessoal (…); e a nossa sociedade está essencialmente baseada, não no suprimento das coisas essenciais, mas no engrandecimento psicológico (5)

Há suficientes conhecimentos científicos para suprir todas as necessidades do homem; isso já foi calculado, e tudo poderia ser produzido em tal escala que nenhum homem passaria necessidade. Mas por que não se realiza isso? Porque ninguém se satisfaz apenas com alimento, roupa e moradia; cada um quer mais. E esse “mais” é poder. (6)

Mas seria irracional ficarmos satisfeitos apenas com as coisas necessárias à vida. Ficaremos satisfeitos com as coisas necessárias, no seu sentido exato que é estar livre do desejo de poder - quando tivermos encontrado o imperecível tesouro interior a que chamamos Deus, a verdade (…) Se puderdes encontrar essas riquezas imperecíveis dentro em vós, vos sentireis satisfeitos com poucas coisas. (7)

Qual é então, o meio de vida correto? Essa pergunta só poderá ser respondida quando houver completa revolução na atual estrutura social, não uma revolução segundo a fórmula da direita ou da esquerda, mas completa revolução de valores não baseados nos sentidos. (8)

Temos crescente desemprego, exércitos cada vez maiores, os grandes negócios (…) formando vastas empresas. (…) Dada essa situação (…) como ireis encontrar um meio de vida correto? (…) Ou tendes de retirar-vos para formar com uns poucos uma comunidade autárquica, cooperativa, ou sucumbis (…) Mas, como sabeis, a maioria de nós não tem verdadeiro empenho em encontrar o meio de vida correto, cada um está interessado em obter um emprego e nele se manter. (9)

(…) Assim, o meio de vida justo, em vasta escala, deve começar com aqueles que compreendem o que é falso. Quando batalhais contra o falso, estais criando o meio de vida justo. Quando batalhais contra toda a estrutura da dissenção, da exploração por parte da esquerda ou da direita, ou contra a autoridade da religião (…) - essa é a profissão correta, no momento atual. Porque os que assim procedem criarão uma nova sociedade, uma nova civilização. (10)

Mas, para batalhar, precisais ver com toda a clareza e precisão o que é falso (…) Para descobrirdes o que é falso, cumpre percebê-lo lucidamente, observar todas as coisas que estais fazendo, pensando e sentindo; e, como resultado disso, não apenas descobrireis o que é falso, mas virá também uma nova vitalidade (…) energia, e essa energia determinará que espécie de trabalho deveis ou não deveis fazer. (11)

A maioria das nossas ocupações são inspiradas pela tradição, pela avidez ou pela ambição. Em nossas atividades, somos desapiedados competidores, embusteiros, ardilosos e altamente preocupados com nossa própria proteção. A qualquer momento (…) correremos o risco de soçobrar e por isso temos de ajustar-nos ao ritmo altamente eficiente da insaciável máquina dos negócios. É uma luta incessante pela manutenção de uma posição. (12)

Mas, na vida de relação está implicado um processo inteiramente diferente. Nela é indispensável que haja afeto, consideração para com os outros, ajustamento, abnegação, condescendência; nela não se trata de vencer, porém de viver feliz. (13)

Mas, como é possível conciliar duas coisas, como o egoísmo e o amor, os negócios e as relações com os semelhantes? Uma é desapiedada, competidora, ambiciosa; a outra, abnegada, delicada, suave. (…) Com uma das mãos contamos dinheiro e derramamos sangue, enquanto procuramos com a outra afagar, testemunhar afeto e consideração. (14)

A ocupação justa não se inspira na tradição, nem na ganância, nem na ambição. Quando cada um estiver verdadeiramente interessado em estabelecer a verdadeira vida de relação, não só com um, mas com todos, achar-se-á, então, a ocupação justa. Esta resulta da regeneração, da transformação do coração, e não apenas da determinação intelectual de encontrá-la. (15)

Mas, embora importante e benéfica, a ocupação justa não constitui, em si, um fim. Podeis ter um justo meio de vida, mas se interiormente fordes incompletos e pobres, sereis uma fonte de miséria para vós mesmos e, portanto, para os outros; sereis irrefletidos, violentos, egoístas. Sem a liberdade interior da Realidade, não encontrareis nem a alegria nem a paz. Na busca e na descoberta daquela Realidade interior, podemos não somente contentar-nos com pouco, mas também adquirir conhecimento de algo que ultrapassa todos os padrões. É isso o que cumpre procurar em primeiro lugar; as outras coisas virão na sua esteira. (16)

Ora, nas condições em que a sociedade existe no presente, não há possibilidade da escolha entre o meio de vida correto e o (…) incorreto. Pegamos o primeiro emprego se temos a boa sorte de achar um. (…) Mas, para aqueles e vós que não sofrem igual premência (…) qual o meio de vida correto numa sociedade que está baseada (…) nas diferenças de classes, no nacionalismo, na ganância, na violência? (17)

É muito importante que cada um de nós descubra qual é a sua relação com a sociedade, se ela está baseada na ganância - que significa auto-expansão, preenchimento do “eu”, que supõe poder, posição, autoridade - ou se simplesmente aceitamos da sociedade as coisas essenciais, tais como alimento, roupa e moradia. (18)

(…) Se vossa relação é de necessidade e não de ganância, encontrareis então o meio de vida correto, em qualquer lugar, mesmo numa sociedade corrupta. Como a atual sociedade se está desintegrando rapidamente, precisamos descobrir; e aqueles cuja relação é só de necessidade criarão uma nova civilização, constituirão o núcleo de uma sociedade na qual as coisas necessárias à vida serão distribuídas equitativamente, e não utilizadas como meio de auto-expansão. (19)

Perguntais-me qual a profissão que vos aconselho (…) Que está acontecendo neste mundo? Há possibilidade de se escolher profissão? Cada um segura aquilo que pode. Já nos consideramos felizes se achamos trabalho. Assim é em todas as partes do mundo. Porque temos um único alvo: ganhar dinheiro, seja como for, para viver. (20)

(…) O pensar correto gera a profissão correta e a ação correta. Não podeis pensar corretamente, sem autoconhecimento. (…) É extremamente difícil escolher uma profissão num mundo civilizado desta espécie, em que toda ação conduz à destruição e à exploração. (21)

A maioria das pessoas são forçadas a entregar-se a trabalhos, atividades, profissões, para as quais de forma alguma estão talhadas. Passam o resto da existência batalhando contra essas circunstâncias, disparando assim todas as energias em lutas, dores, sofrimentos. (…)

Outros homens rompem as limitações do ambiente, depois de compreenderem o seu verdadeiro significado, passando a viver inteligentemente, em atividades criadoras, seja no mundo da arte, da ciência, seja nas profissões. (22)

Eis porque é importantíssimo achar a vocação justa. Sabeis o que significa “vocação”? É a ocupação que desempenhamos com agrado, com naturalidade. Afinal, tal é a função da educação (…) de uma escola como esta, a saber, ajudar-vos a crescer com independência, para que não sejais ambiciosos e possais achar a vossa verdadeira vocação. (23)

(…) A verdadeira educação deve ter por fim ajudar-vos a ser tão inteligentes que (…) possais escolher uma ocupação a vosso gosto (…) ou passar fome, mas nunca fazer uma coisa estúpida, que vos fará infeliz para o resto da vida. (24)

Para a maioria dentre nós, a profissão está separada da nossa vida pessoal. Temos o mundo da profissão e da técnica, e a vida dos sentimentos sutis, das idéias, (…) e do amor. Estamos adestrados para o mundo da profissão e só ocasionalmente (…) escutamos uns vagos murmúrios da realidade. (25) 

O mundo da profissão tornou-se, gradualmente, exigente, tomando quase todo o nosso tempo, de modo a deixar pouca margem ao pensamento profundo e à emoção. Por esse modo, a vida da realidade, da felicidade torna-se cada vez mais vaga. (26)

Com raras exceções, o exercer uma profissão não é a expressão natural do indivíduo. Não é a plenitude ou a completa expressão do seu ser integral. Se examinardes isso, haveis de averiguar que tal coisa é apenas o (…) adestramento do indivíduo no sentido de ajustar-se a um sistema rígido, inflexível. Esse sistema está baseado no temor, no espírito da aquisição e na exploração. (27)

(…) Quanto mais planejamos e organizamos a nossa existência econômica, sem compreender e transcender as nossas paixões, temores e despeitos, tanto mais conflito e confusão haverão de surgir. O contentar-se com pouco resulta da compreensão de nossos problemas psicológicos, não da legislação (28)

(…) Pois bem, a maioria de nós se embota nisso que se chama trabalho, emprego, rotina, (…) Tão identificado (…) que não pode vê-lo objetivamente; (…) Vive numa gaiola (…) isolado (…) O seu trabalho, por conseguinte, é uma forma de fuga da vida: da sua esposa, de seus deveres sociais. (…) (29)

Se dizeis: “que aborrecimento, (…) preferiria fazer outra coisa qualquer” - o vosso espírito está evidentemente resistindo a esse trabalho. Uma parte da vossa mente está desejando que estivésseis fazendo outra coisa. Essa divisão produzida pela resistência, causa o embotamento, porque estais desperdiçando esforço. (30) Novo Acesso à Vida, pág. 128-129

(…) Mas, se aceitais a tarefa (…) e a executais o mais inteligentemente possível, que acontece então? Porque já não estais resistindo, as outras camadas da vossa consciência continuarão ativas, independentemente do que estais fazendo; estais aplicando apenas a mente consciente ao trabalho, e a parte inconsciente, a parte oculta da mente, está ocupada com outras coisas muito mais vitais (…) e profundas (…) (31)

Pergunta: De que maneira poderia um estadista que compreendesse o que dizeis, pô-lo em prática nos negócios públicos? Ou, não é mais provável que ele se retirasse da política, reconhecendo falsos os seus objetivos e bases?

Krishnamurti: Se ele compreendesse o que digo, não separaria a política da vida na sua plenitude; e não vejo razões por que devesse afastar-se da política. É verdade que a política é atualmente um instrumento de exploração; mas, se ele considerasse a vida como um todo, e não a política somente - uma vez que por política ele entende a sua pátria, o seu povo, e a exploração dos semelhantes - e considerasse os problemas humanos não como problemas nacionais, porém mundiais, não como problemas americanos, ou hindus, ou germânicos, nesse caso, se de fato correspondesse ao que digo, seria ele um verdadeiro ser humano, e não um político. (32)

Acho que aí é que está o mal. O político só cuida da política, o moralista de moral, o suposto mestre espiritual, do espírito, cada um deles se julgando autoridade, com exclusão de todos os outros. Toda a estrutura de nossa sociedade se assenta nessa base, e, assim, esses líderes das diversas especialidades promovem devastação e miséria cada vez maiores. (33)

Mas se nós, como entes humanos, percebêssemos a relação íntima entre todas essas coisas, entre a política, a religião, e a vida econômica e social, se enxergássemos essa relação, não pensaríamos nem agiríamos, nesse caso, separativamente, individualistamente. (34)

Enquanto não houvermos descoberto o que é verdadeiro, o que é Deus, essa coisa extraordinária que enche a vida de grandeza, de bondade e beleza, todas as nossas atividades, em qualquer nível que seja, só podem ter uma significação superficial. A menos que estejamos experimentando diretamente o que é verdadeiro, momento a momento, a nossa civilização se torna mecânica e, portanto, destrutiva. Certo, o homem existe para encontrar-se com Deus, e não apenas para ganhar o seu sustento e ajustar-se a um padrão social. (35)

Krishnamurti, em:

(1) Perguntas e Repostas, pág. 75
(2) Perguntas e Repostas, pág. 75
(3) O Problema da Revolução Total, pág. 38
(4) Novo Acesso à Vida, pág. 149
(5) Novo Acesso à Vida, pág. 149
(6) Novo Acesso à Vida, pág. 149-150
(7) Novo Acesso à Vida, pág. 150
(8) Novo Acesso à Vida, pág. 151
(9) Novo Acesso à Vida, pág. 152
(10) Novo Acesso à Vida, pág. 153
(11) Novo Acesso à Vida, pág. 153
(12) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 19-20
(13) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 20
(14) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 20
(15) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 21
(16) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 34
(17) A Arte da Libertação, pág.170
(18) A Arte da Libertação, pág.173
(19) A Arte da Libertação, pág.173-174
(20) Uma Nova Maneira de Viver, pág. 95-96
(21) Uma Nova Maneira de Viver, pág. 97
(22) A Luta do Homem, pág. 94
(23) Novos Roteiros em Educação, pág. 68
(24) Novos Roteiros em Educação, pág. 19
(25) Palestras no Uruguai e na Argentina, 1935, pág. 125
(26) Palestras no Uruguai e na Argentina, 1935, pág. 125
(27) Palestras no Uruguai e na Argentina, 1935, pág. 126
(28) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 113
(29) Novo Acesso à Vida, pág. 127
(30) Novo Acesso à Vida, pág. 128-129
(31) Novo Acesso à Vida, pág. 129
(32) A Luta do Homem, pág. 157-158
(33) A Luta do Homem, pág. 158
(34) A Luta do Homem, pág. 158-159
(35) Visão da Realidade, pág. 113




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