Dizem-nos os Sábios que deixaremos de identificar-nos com o nosso corpo — e assim nos libertaremos de uma vez por todas dos sofrimentos que surgem por intermédio dele — apenas quando alcançarmos a experiência direta do Ser Real. Assim como agora temos a experiência direta do corpo, devemos ter a experiência direta desse Ser como ele realmente é. Essa ignorância, que nos leva a identificar-nos com o corpo, é um hábito mental arraigado, engendrado na mente durante longo tempo de ações e pensamentos errôneos. Deles surgiram os vários apegos às coisas. Tais hábitos mentais formam a própria estrutura da mente; e a simples introdução de um pensamento contrário — que é muito fraco, igual a um recém-nascido — fará pouca diferença. A mente fluirá pelos mesmos canais habituais. Continuará sujeitas às mesmas atrações e repulsões. E isso acontecerá porque enquanto é possível ao filósofo livresco sentir às vezes que ele não é o seu corpo, não pode, com a mesma facilidade, chegar a sentir que não é a sua mente. E esta dupla ignorância só terá fim quando conhecermos o Ser — não teórica mas praticamente, isto é, pela experiência real do Ser.
Até surgir essa compreensão, não se pode dizer que o filósofo tenha se descartado de sua ignorância. Ela sobrevive com todo vigor. Seu conhecimento filosófico não faz qualquer diferença no seu caráter. De fato, como assinala o sábio, o filósofo livresco está até mesmo em piores condições do que outros homens. Seu coração é assediado por novos apegos — dos quais o iletrado está livre — que não lhe dão tempo para dedicar-se à tarefa de descobrir o Ser Real. Muitas vezes não têm nem mesmo consciência da premente necessidade de se prepararem para tal empresa, harmonizando o conteúdo de sua mente e dirigindo suas energias para o Ser, e não para o mundo. Interfere-se daí que, quem conhece o Ser apenas por intermédio de livros, não o conhece mais do que a gente simples. Por essa razão o sábio compara o filósofo livresco ao gramofone. Não é melhor do que ninguém pela sua erudição, assim como o gramofone não é melhor pelas boas coisas que repete.
Os livros, devemos lembrar, não passam de sinais indicadores na estrada para a sabedoria, que nos liberta; logo, essa sabedoria não pode ser encontrada nos livros. O Ser que precisamos conhecer está no interior e não no exterior. Caso a sabedoria desperte, nessa oportunidade, o Ser, refulgindo em todo o seu esplendor, mostrar-se-á diretamente, sem qualquer agente intermediário. Os estudos dos livros porém engendra a idéia de que o Ser é algo externo, que se precise conhecer como um objeto, por intermédio da mente.
A vasta confusão que reina nas especulações filosóficas e teológicas é devida a essa ignorância. Todos estão totalmente convencidos de que as questões abstrusas, referentes ao mundo, à alma e a Deus, podem ser resolvidas, final e satisfatoriamente, pelas especulações intelectuais sustentadas por argumentos tirados da experiência humana comum, a qual é o que é, devido a essa ignorância. Filósofos e teólogos discutem desde o início da criação — se é que houve criação — sobre a causa primeira, o modo da criação, a natureza do tempo e do espaço, a realidade ou irrealidade do mundo, a discordância entre o determinismo e o livre-arbítrio, o estado de libertação, e assim por diante, numa sucessão infinita. E não chegam a nenhuma conclusão… Não pode haver conclusão final — uma conclusão que possa não ser derrubada por argumentos novos, ou aparentemente novos, enunciados por outros contendores, a menos que o Ser real seja alcançado. Para aquele que atingiu o Ser real, estas controvérsias chegaram ao fim. Mas para os outros, elas devem continuar, a menos que ouçam o conselho do Sábio, cuja finalidade é fazer com que deixem de lado todas essas questões e se dediquem de coração a busca do Ser. Ou aceitamos o ensino dos Sábios sobre essas especulações, pelo menos a título de hipótese, de modo a não sermos desviados, por elas, da nossa busca, ou reconhecemos a profunda verdade de que esses assuntos não têm a menor importância e não precisam de respostas — que a única coisa necessária é encontrar o Ser. Essas questões surgem, se é que isso acontece, apenas para aqueles que consideram a mente ou o corpo como o Ser.
Compreendemos, assim, que todos os nossos sofrimentos são devidos à nossa ignorância sobre o Ser Real. Devemos vencê-la se quisermos gozar a verdadeira felicidade, pois a remoção da causa é a única forma de cura radical que existe. O mais é tratamento paliativo, que pode até mesmo, no final de contas, ser maléfico, agravando, na verdade, a doença. E só poderemos ser livres dessa ignorância, por meio da experiência com o Ser.
Não é empresa fácil, pois o instrumento a ser usado nesse trabalho é a mente. Ela tem que se desligar de tudo o mais e dirigir-se para o Ser Real. Mas a mente não se desliga facilmente de suas preocupações costumeiras. Se for forçada a isso, não se concentra, e logo volta ao ponto de partida. Assim é porque está cheia de idéias que são frutos da ignorância; e tais idéias rebelam-se para defender a vida de sua geratriz, a ignorância, porque a vida desta é também delas. Temos, portanto, de liquidar todas essas idéias.
Por serem causadas pela ignorância primordial, provavelmente tais idéias são falsas. E é lógico que o conhecimento falso é o inimigo do despertar da Verdade. Portanto, é necessário que examinemos essas idéias e as rejeitemos, se julgadas incorretas; ou mesmo apenas duvidosas. Somente assim, estaremos seguros contra sublevações traiçoeiras, ao empreendermos a busca do Ser Real.
Nessa análise, devemos guiar-nos pela absoluta devoção à Verdade. O Gita nos diz: “Aquele que ama a Verdade e submete todo o seu ser ao amor da Verdade, A encontrará.” Essa condição é muito importante. É claro que não pode haver amor parcial pela Verdade. Um amor à Verdade sendo limitado implica amor também pela inverdade, em maior ou menor grau. O amor perfeito pela Verdade significa uma total boa-vontade para renunciar a tudo que se julgue ser falso, em decorrência de uma análise justa. Implica, também, a capacidade de submeter a exame completo e imparcial todas as crenças que temos agora quanto ao mundo, à alma e a Deus. O amante da Verdade caracteriza-se por não ter maior apego às suas crenças do que as crenças alheias. Conserva-as a título de hipótese e pode claramente refletir sobre a possibilidade de achar que são insustentáveis e dignas de renúncia. É a isenção de apego às suas próprias crenças que lhe permite fazer uma análise imparcial de sua validade. E, se em decorrência dessa análise, julgar que não são válidas, não somente renúncia a elas, como também fica sempre alerta contra a possibilidade de que voltem, até que venham perder influência sobre ele. Por conseguinte, devemos cuidar para que sejamos devotos somente da Verdade, e livres de erros. E em prol da Verdade, renunciar ao amor que devotamos às nossas crenças, de modo que a Verdade possa reinar suprema em nossos corações quando a tivermos encontrado.
O que se conhece como filosofia é apenas este exame imparcial de todas as nossas idéias — do conteúdo inteiro de nossa mente. Somente isso é verdadeira filosofia. Tudo o mais não passa de pseudofilosofia. E podemos afirmar com segurança que pseudofilósofos são aqueles que, ou não compreenderam o fato de que ignoram o Ser, ou estão completamente satisfeitos de permanecerem sujeitos a tal ignorância.
Consideremos agora como nos certificarmos de que, em nosso filosofar, evitaremos os engodos que se emboscam em nosso caminho, e de que chegaremos a idéias que não serão adversárias da nossa Busca do Ser Real.
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