O ideal é um modo hipócrita de olhar a vida
autoconhecimento

O ideal é um modo hipócrita de olhar a vida


Como puderam os entes humanos viver dois milhões e mais de anos, a seguir sempre o mesmo padrão, interiormente? Embora tenha havido exteriormente enorme mudanças, interiormente somos mais ou menos o que sempre fomos: ávidos, invejosos, ambiciosos, competidores, impiedosos, cruéis, egocêntricos, sempre a batalhar pela conquista de posição e prestígio. Isso vem ocorrendo há milhares de anos, e o homem tem sofrido. O sofrimento sempre foi sua sina. Ele teme a vida e a morte. Porque têm medo, inventa fugas, deuses e diversões de todo gênero. Dessa maneira temos vivido, e aceitamos como a norma da vida, o caminho da vida. Todos estamos vendo isso; notamo-lo muito bem. Vendo tudo isso suceder, não só exterior mas também interiormente, perguntamos se é possível uma mudança radical e, se é, como poderá verificar-se.

Cada um é produto do país em que nasceu. As influências religiosas, sociais, econômicas e climáticas, a alimentação, os trajes, tudo tem influenciado a sua mente. Somos vítimas da ansiedade, do medo, do desespero, de múltiplas frustrações, e nos vemos ameaçados de cair num estado neurótico — se já não caímos. O viver nos parece inteiramente sem significação, só nos oferecendo tédio, frivolidade, morte, sofrimento interminável, conflito interior e exterior. Em vista de tudo isso, há possibilidade de mudança completa?

Se dizemos que não há tal possibilidade — como de fato se diz — então não há saída desta situação. No momento em que dizemos que não é possível aquela mudança, fechamos todos os caminhos. Para descobrirmos se ela é possível, temos de investigar, e para investigar necessitamos de liberdade, para perceber o fato real — não a ideia do medo, porém o fato, e isso é muito difícil. A palavra "medo" não é o medo. Temos de compreender a palavra e dela libertar-nos, a fim de enfrentarmos o fato — o medo.

Analogamente, é-nos possível mudar tão radicalmente que nossa maneira de vida, nossa perspectiva da vida se torne amplamente diferente? Essa é uma dimensão inteiramente nova. Vamos investigar isso. E, se é possível a mudança, como poderá verificar-se? Em primeiro lugar, devemos compreender o que significa "olhar", "perceber", "ver". Para se ver claramente uma coisa, não deve haver interferência do pensamento, da palavra, da ideia. Quando olhamos ou percebemos uma árvore, uma flor, podemos olhá-la com nossos conhecimentos botânicos, e nesse caso não estamos olhando realmente a árvore; estamos olhando através da palavra, através de nossos conhecimentos e experiência; nossa experiência nos impede de olhar diretamente. Não sei se já experimentastes olhar diretamente para uma árvore, livre da palavra, da imagem por esta criada, e sem a tendência para julgar ou avaliar. Não se pode olhar realmente de outra maneira, e esse modo de olhar não é um estado de abstração, porém, de intensa atenção.

Observar, ver — essa é a coisa principal; ver o que realmente somos e não o que achamos que deveríamos ser; observar nossa avidez, inveja, ambição, ansiedade, medo, tais como existem realmente, e sem interpretação, sem julgamento. Nesse estado de observação não há esforço algum. Isso temos de compreender claramente, porque estamos condicionados para fazer esforço. Tudo o que fazemos envolve esforço, luta. Se desejo mudar, se, por exemplo, desejo deixar de fumar, tenho de lutar, de forçar-me, de manter minha resolução e, assim, talvez eu acabe deixando de fumar, mas minha energia se terá esgotado nessa batalha.

Pode-se abandonar alguma coisa pelo esforço? O fumar é uma coisa muito trivial. Abandonar o prazer, em todas as suas formas, porque o prazer sempre produz dor, eis um problema extremamente complexo, que iremos considerar numa destas palestras. O que nos interessa é isto: Se temos possibilidade de abandonar alguma coisa, de agir sem esforço. Porque paz é isso, não achais? A paz alcançada por meio de uma batalha interior não é paz, porém exaustão, pois a paz de modo nenhum pode ser um resultado de esforço. Só vem quando há compreensão. Esta é uma palavra um pouco difícil. Compreensão não significa "compreensão intelectual". Quando dizemos que compreendemos uma coisa, entendemos em geral uma apreensão intelectual, conceitual. Só pode verificar-se a percepção, quando há atenção total. A atenção total só é possível quando "nos damos" completamente. A mente, o corpo, os nervos, todo o nosso ser fica então sobremodo ativo. Só então há compreensão.

Temos de compreender nossa vida de entes humanos. Para nós, a vida é uma caótica contradição. Não a estamos descrevendo sentimental, emocionalmente ou noutro sentido qualquer, porém, tão só em sua realidade. Vemo-nos confusos, aflitos, ansiosos, aterrados, desesperados. Está sempre a aquietar-nos esse medo e sofrimento. Tal é a nossa vida, e, no final de tudo e inevitavelmente, a morte; só isso sabemos. Podemos imaginar coisas, ter muitos ideais, fórmulas e fugas, mas, quanto mais fugimos, tanto maior a contradição, tanto mais profundo o conflito.

Podemos observar nossa vida, tal como é realmente e não como deveria ser? Os ideais são de todo em todo fúteis. Nenhuma significação tem. São como o ideal dos que creem na não-violência e, na realidade, são violentos. Isso é um fato. Os entes humanos são violentos. Demonstram-no suas palavras, seus gestos, seus atos e sentimentos. Cultivaram o ideal de "não ser violento" — que representa um estado de paz, de ausência de violência. Há o fato e o que "deveria ser". Entre o que é e o "desejável", entre o fato e a ideia, a utopia, "o que deveria ser", acha-se o intervalo de tempo. No esforço para alcançar "o que deveria ser", estamos sempre a semear a violência. O ideal é uma maneira hipócrita de olhar a vida. Não há, decerto, nenhuma necessidade de ideal, se sabemos olhar o fato e dele libertar-nos. Porque não sabemos olhar os fatos e libertar-nos deles pensamos que com um ideal os resolveremos. Em verdade, o ideal, a utopia é uma fuga da realidade. Sabendo-se olhar a violência, talvez se torne possível uma ação de espécie diferente. Consideremos um pouco mais este ponto.

Sou violento e percebo que qualquer forma de fuga à realidade, ao fato de que sou violento, toda e qualquer fuga — bebidas, ideias, etc. — diminui a energia de que necessito para olhar o fato. Preciso dessa energia para olhar, para manter-me completamente atento. Isso também é um fato simples. Se desejais olhar qualquer coisa que seja, necessitais de muita energia. Se só estais incompletamente atento, porque tendes ideais que não devíeis ter, então estais dissipando vossa energia e, por conseguinte, sois incapaz de olhar. Olhar é uma operação que requer toda a vossa atenção. Só se pode olhar quando não se está querendo alcançar nenhum ideal, nem desejando alterar o que é.

Só aparece o desejo de alterar o que é, quando o fato é desagradável. Quando agradável, não desejamos alterá-lo. Nossa preocupação é perseguir o ideal e evitar a dor. Nosso maior interesse é o prazer e não a violência ou a não-violência, a bondade, etc. Queremos prazer, e para alcançá-lo estamos dispostos a tudo. Enquanto estivermos a olhar o fato com a intenção de alterá-lo, não teremos a possibilidade de alterá-lo, porquanto nosso principal interesse é modificar o farto, para termos prazer — ainda que seja um prazer muito nobre. Devemos perceber isso muito claramente, porque os nossos valores morais, éticos e religiosos estão todos baseados no prazer. Eis o fato verdadeiro. Não é um fato imaginário, como veremos, se nos sondarmos muito profundamente e olharmos todos os valores que estabelecemos. Quando existe esse princípio do prazer, tem de haver inevitavelmente dor. Olhamos a violência com o fim de transformá-la num prazer e passamos deste a um prazer maior; por isso, somos incapazes de alterar o fato de que somos violentos. Consideramos a vida com a mira no prazer.

No fundo, os seres humanos são violentos, por várias razões. Uma das razões fundamentais é que todas as suas atividades se concentram em perpetuar o EU, o EGO. A atividade egocêntrica é uma das causas da violência. Por outro lado, a fim de realizar uma revolução radical, tenho de compreender o princípio (razão fundamental, regra, base) do prazer. Amo os meus deuses; isso me proporciona enorme satisfação. Amais os vossos deuses, vossas fórmulas, vossa nacionalidade, vossa bandeira. O mesmo faço eu. Tudo isso se baseia no prazer. Posso dar-lhe diferentes nomes, mas não importa; o fato é este. Ora, é possível considerarmos a violência, sem procurarmos transformá-la em prazer; posso observar simplesmente o fato de que sou violento?

(...) Apesar das religiões, apesar de toda a bondade existente, aceitamos a guerra como norma da vida. O homem aceitou a violência como norma da vida. os políticos, as pessoas religiosas, todas elas falam a respeito da paz. Não podemos ter paz, se não vivemos pacificamente. Para vivermos pacificamente, não deve existir violência... A transformação, a revolução radical na consciência, só se tornará possível quando formos capazes de observar, de ver, de escutar, e quando soubermos que o observar e ver é agir. É possível extinguir a violência dentro de nós imediatamente, instantaneamente, e não em termos de tempo? Tão condicionados nos achamos, que dizemos: "Gradualmente me libertarei da violência". Estamos acostumados com a gradualidade, a evolução, mas é possível extinguir instantaneamente a violência existente em nós mesmos? Digo que podemos terminar a violência imediatamente, quando somos capazes de observar esse fato completamente, com atenção total, em que não exista nenhuma espécie de imagem. Isso é como uma pessoa tornar-se consciente de um precipício, de um perigo. A menos que seja neurótica, desequilibrada, a pessoa se afastará do perigo; a ação é imediata. Pode-se então olhar com absoluta serenidade, em completo silêncio. Verificar-se-á, então, uma total mutação do fato.

Uma revolução em toda a psique do homem não é realizável por meio da vontade que é desejo, determinação, por meio de um plano de vida conducente à paz. Ela só é possível quando o cérebro pode estar quieto e ao mesmo tempo ativo, para observar sem criar imagens de acordo com sua experiência, conhecimento e prazer. A paz é essencial, porque só na paz pode o indivíduo florescer em bondade e beleza. Essa possibilidade só existe quando somos capazes de escutar o todo da existência, com todas as suas agitações, aflições, confusão e angústias — escutá-lo, simplesmente, sem nenhum desejo de alterá-lo. O próprio ato de escutar é a ação que operará a revolução.

Krishnamurti — 26 de abril de 1966 — Encontro com o eterno





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