Onde há desejo de preenchimento, há frustração
autoconhecimento

Onde há desejo de preenchimento, há frustração


Não estamos todos nós procurando preencher-nos em alguma coisa? O alpinista que galga os mais altos cumes — para ele é esta a ação do preenchimento; pelo casamento e pela prole, pelo vosso filho, procurais preencher-vos; e o político, frente à multidão, ao recolher-lhe as vibrações, está-se preenchendo com ela. Se rejeitais essas expressões exteriores de ações e atividades tendentes ao preenchimento pessoal, voltai-vos para as ações interiores, as ações psicológicas, espirituais: quereis então preencher-vos numa ideia, em Deus, na virtude. Vemos, pois, que cada um de nós deseja preencher-se à sua maneira — o que significa  tornar-se algo por meio da identificação. Quereis preencher-vos pela identificação com um partido político; renunciais a vós mesmos e dizeis que o partido tem toda a importância: o partido representa o que acreditais ser a Verdade; o partido por consequência representa um meio pelo qual vos preencheis. O alpinista se preenche no deleite de ascender às grandes alturas, e o homem ambicioso se preenche no realizar a própria ambição. Ora, é isso o que estais fazendo, não é verdade?

O desejo de preencher-se, o desejo de vir a ser, o desejo de realizar, ganhar, governas as nossas relações, não é verdade?Desejo algo de vós e por isso vos trato muito amavelmente, muito urbanamente. Ofereço-vos ramalhetes, e trato com desdém aqueles de quem nada recebo. Tal é o processo constante de nossa existência. Senhores, existe de fato tal coisa — “preenchimento pessoal”? Compreendeis? “Ser é estar em relação” — isto é um fato muito evidente. Não posso viver sem estar em relação com alguma coisa, e essa coisa se torna o meio pelo qual procuro preencher-me — minha esposa, meu filho, minha casa, minha propriedade, meu quadro, meu poema, ou esta fala que vos dirijo agora. Se com ela me estou preenchendo, ela é evidentemente uma maneira de dar expansão ao meu “eu”; eu é que sou importante, e não vós, nem o de que estou falando. Consequentemente, o meio de preenchimento pessoal se torna muito mais importante para mim ou para vós, do que a Verdade que se encontra no investigar se de fato existe preenchimento.

Todo esforço, nas condições atuais, se baseia no desejo de preenchimento; sabemo-lo muito bem. Podemos tentar encobri-lo, disfarçá-lo com palavras e frases bem-soantes; essencialmente, porém, toda ação é produto do desejo de nos preenchermos por meio dela. Quando digo ´´Índia”, identifico-me com a Índia, e a Índia se transforma no meio pela qual realizo o meu preenchimento. Esses os fatos evidentes. Aprofundemos a questão um pouco mais. Existe possibilidade de preenchimento? Da infância à maturidade e até à morte, estamos sempre em busca de preenchimento, por diferentes maneiras, não é verdade? — e sempre, infalivelmente, encontramos a frustração. Logo que se realiza uma ambição, apresenta-se outra ambição mais alta, e viveis assim numa luta incessante. Assim, pois, o nosso esforço de preenchimento, o nosso impulso a preenchermos, é acompanhado sempre do medo do insucesso, da frustração. Observai vossa mente e vosso coração, para verdes se é ou não é verdade o que estou dizendo. Não sois obrigados a aceitar o que digo.

Onde há o desejo, o desejo consciente ou inconsciente, de nos preenchermos, existe sempre, forçosamente, o medo da frustração. Vendo-nos frustrados, procuramos outra espécie de preenchimento, para fugir a essa frustração. Achamo-nos, pois, encerrados nesta prisão perpétua do preenchimento e da frustração. Não achais, pois, muito importante que libertemos a nossa mente desse desejo de preencher-se numa ação, numa ideia, em qualquer coisa, enfim? Quando procuro preencher-me por meio de minha esposa e de meus filhos, isso significa amor? Se desejo preencher-me, discursando para grandes ou pequenos auditórios, estou realmente interessado na Verdade, tenho desejo fundamental de libertar os homens, ou estou me preenchendo por meio dos meus ouvintes?

Senhores, esta não é uma reunião de discussão. Não nos importa, pois, descobrir se existe uma maneira diferente de resolvermos este problema, uma maneira diversa de estuda-lo, não baseada no desejo de preenchimento, uma ação que não viase a um certo resultado? Não digais: “sim, é o que diz o Bhagavad-Gita, o Upanishads” — pondo de parte a questão. Quando dizeis uma coisa dessas, não estais realmente escutando à outra pessoa. E o que importa é o escutar. Com efeito, se souberdes escutar, o milagre se realizará. Se souberdes escutar tanto a melodia quanto o silêncio entre duas notas, talvez possais então descobrir a verdade relativa a qualquer coisa. Entretanto, enquanto estiverdes comparando, rejeitando, aceitando, em constante atividade de explanação e rejeição, não estais de fato escutando.

Estou aventando talvez haja uma forma diferente de proceder sem se visar ao preenchimento pessoal, e que não esteja só ao alcance de poucos. Se eu for capaz de compreender-me, de observar-me nas minhas atividades diárias, e reconhecer que a todas as horas do dia estou ocupado em preencher-me e, por conseguinte, vivendo na frustração e no  temor— se eu for capaz de reconhecer tal coisa — e não somente de aceita-la — então não haverá mais preenchimento pessoal, meu, em coisa alguma. Se perceberdes, realmente, momento por momento, nas vossas atividades diárias, que toda ação é insuflada pelo desejo de preenchimento e que o preenchimento traz sempre frustração; se perceberdes a coisa na sua inteireza, se a virdes, bem desperto, sem argumentação, sem discussão, sem desejo de comparar — então, daí, resultará forçosamente uma ação nova, uma ação que não será de preenchimento pessoal, mas de outra natureza.

É bem óbvio que, cada um de nós está tentando preencher-se há o caos na sociedade; e, a fim de dominar esse caos, a nossa mente apela para um determinado padrão ou condição. Se puderdes perceber bem isso ( se realmente estais escutando  o que digo ) reconhecereis este fato verdadeiro, isto é, que não há preenchimento. Podeis fazer tudo o que quiserdes, elevar-vos às maiores alturas — nunca há preenchimento. Se se reconhecer este fato verdadeiramente, se o sentirmos interiormente, haverá então possibilidade de ação, a qual não será produto ou resultado da compulsão, do temor, da frustração.

Krishnamurti  — Autoconhecimento — Base da Sabedoria





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