Pode a mente libertar-se do vício da crença?
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Pode a mente libertar-se do vício da crença?


Como disse, é de fato um problema interessantíssimo essa questão da crença e do conhecimento. Que papel extraordinário ela tem em nossa vida! Quantas crenças temos! É certo que quanto mais sagaz, quanto mais culta, quanto mais espiritual é uma pessoa (se posso usar tal expressão) — tanto menor é a sua capacidade de compreender. Os selvagens têm inúmeras superstições, mesmo no mundo moderno. Os mais refletidos, os mais despertos, os mais alertados são talvez os que menos creem. Isso acontece, porque a crença amarra, a crença isola — como se vê no mundo inteiro: no mundo econômico e no mundo político, e bem assim no chamado mundo espiritual. Vocês acreditam que há Deus, e eu talvez creia que não existe Deus; ou acreditam no poder absoluto por parte do Estado de todas as coisas e de todos os indivíduos, e eu creio na inciativa privada, etc., etc.; acreditam que só existe um Salvador e que por meio dele alcançarão o alvo, e eu não creio em tal coisa. Desse modo, vocês com suas crenças e eu com a minha estamos querendo impor-nos um ao outro. Entretanto, ambos falamos de amor, falamos de paz, da unidade do gênero humano, de uma só vida — o que não significa absolutamente nada; porque, na realidade, a própria crença é um processo de isolamento. Vocês são brâmanes, e eu sou não-brâmane; você são cristãos e eu muçulmano, e assim por diante. Vocês falam de fraternidade, e eu também falo da mesma fraternidade, de amor, de paz. Na realidade, estamos separados, desunidos. O homem que deseja a paz e deseja um mundo novo, um mundo feliz, não pode por certo isolar-se por meio de qualquer espécie de crença. Isso está claro? Pode ser apenas um enunciado verbal; mas se penetrarem o seu significado, a sua validade e sua verdade, ele atuará. 

Vemos que sempre há um processo de desejo em ação, tem de haver o processo de isolamento por meio da crença; porque, é evidente, vocês acreditam com o fim de se sentirem seguros, econômica, espiritual, e interiormente também. Não me refiro às pessoas que creem por motivos econômicos; tais pessoas foram criadas para viver na dependência de suas profissões, e por isso permanecerão católicos, hindus — seja o que for — enquanto existir esse emprego para elas. Tão pouco estamos estamos tratando das pessoas que se apegam a uma crença por conveniência. Talvez a maioria de vocês, aqui presentes, estejam nesse caso. Por conveniência, cremos em certas coisas. Colocando de lado essas razões econômicas, vocês devem entrar mais fundo na questão. Considerem as pessoas que creem firmemente em alguma coisa de ordem econômica, social, ou espiritual; o processo que está na base dessa crença é o desejo psicológico de segurança. Não é verdade? Há também o desejo de continuar a existir. Não estamos aqui considerando se há ou não há continuidade; estamos apenas tratando desse impulso, dessa força constante que nos força a acreditar. O homem amante da paz, o homem que deseja realmente compreender todo o processo da existência humana, não pode estar amarrado por uma crença. Significa isso que ele percebe o seu desejo, que atua no sentido de alcançar a segurança. Por favor, não passem para o outro lado dizendo: "Você está pregando a não-Religião". Não é este, absolutamente, o meu propósito. O meu propósito é fazer-lhes ver que enquanto não compreendermos o processo do desejo, sob a forma de crença, haverá disputas, conflitos, há de haver sofrimento, e o homem estará contra o homem, como vemos acontecer todos os dias. Se, estando bem vigilante, percebo que aquele processo assume a forma de crença — que é uma expressão da ânsia de segurança interior — se percebo isso, o meu problema não é mais se devo acreditar nisto ou naquilo, mas, sim, que devo libertar-me do desejo de estar em segurança. Pode a mente ficar livre dele? Este é o problema, e não no que acreditar ou quanto acreditar. Isso são simples expressões de ânsia interior de estar em segurança psicológica, de estar certo a respeito de alguma coisa, quando todas as coisas estão incertas no mundo. 

Pode a mente, a mente consciente, pode a personalidade estar livre desse desejo de segurança? Desejamos estar em segurança, e por isso necessitamos a ajuda de nossos bem imóveis, nossa propriedade e nossa família. Desejamos estar em segurança interior e também espiritual, erguendo muralhas de crença, que denotam a nossa ânsia de certeza. Podem vocês, como indivíduos, ficarem livres desse impulso, dessa ânsia de segurança, manifestada no desejo de acreditar em alguma coisa? Se não estamos livres de tudo isso, somos uma fonte de discórdia; não somos agentes da paz; não temos amor em nossos corações. A crença destrói tudo isso, como se pode observar em nossa vida cotidiana. Posso ver a mim mesmo, quando estou preso nesse processo de desejo, manifestado no apego a uma crença? Pode a mente libertar-se dele? Deve a mente ficar livre da crença e, não, procurar um substituto para ela. Vocês não podem responder "sim" ou "não" a esta questão; podem dar uma resposta positiva se possuem a intenção de ficar livre da crença. Chegam então, inevitavelmente, ao ponto em que começam a buscar o meio de se libertarem da necessidade de segurança. Evidentemente, não há segurança interior que seja contínua — como gostam de acreditar. Vocês gostam de acreditar que há um Deus que cuida muito solicitamente de suas pequeninas coisas... a quem vocês devem procurar, o que devem fazer, como devem proceder. Ora, isso, evidentemente, é uma maneira infantil de pensar. Vocês pensam que o Pai Supremo está velando por cada um de nós. Isso não passa de projeção do próprio gosto pessoal de vocês. Não é evidentemente verdadeiro. A verdade tem de ser coisa inteiramente diferente. Encontrar essa verdade que não é um projeção do gosto de vocês, tal é o nosso propósito em todas estas discussões e palestras. Se vocês sentem verdadeiro ardor, no esforço por descobrirem o que é a Verdade, deve ficar bem claro para vocês que a mente mutilada, amarrada, enredada pela crença, não pode dar um passo, sequer, para a frente. 

(...)Nosso problema, portanto, tal como o vejo, é o seguinte: "estou amarrado, dominado pela crença, pelo conhecimento; é possível para a mente ficar livre do ontem e das crenças adquiridas através do processo do ontem?" Compreendem a questão? É possível a mim, como indivíduo, e a vocês, como indivíduos, viver nesta sociedade e ao mesmo tempo estarmos livres das crenças em que fomos criados? É possível para a mente libertar-se de todo aquele conhecimento, de toda aquela autoridade? Por favor, senhores, deem um pouco de atenção a este ponto, porque eu o julgo importantíssimo — se realmente sentem empenho em examinar o problema da crença e do conhecimento. Lemos as várias escrituras, os vários livros religiosos. Eles já descreveram minuciosamente o que se deve fazer, como se atinge o alvo, o que é o alvo, e o que é Deus. Todos vocês sabem de cor e os têm seguido. Isso é o conhecimento de vocês, é o que adquiriram, o que aprenderam; e continuam por esse caminho. É claro que obterão aquilo que desejam alcançar, aquilo que veem. Mas será a realidade? Não será a projeção do próprio conhecimento de vocês? — Não é a realidade. É possível perceberem isso com clareza agora — não amanhã, mas agora — e dizerem "percebo a verdade disso" — e não mais lhe darem atenção, de modo que a mente de vocês não continue tolhida por esse processo de imaginação, de projeção, de ver a coisa como desejam que ela seja. 

De modo idêntico, é a mente capaz de libertar-se da crença? Só estarão livres dela quando compreenderem a natureza íntima das causas que lhes fazem se apegar a ela, quando compreenderem não apenas os motivos conscientes, mas também os motivos inconscientes que lhes fazem crer. Afinal de contas, não somos apenas uma entidade superficial, funcionando no nível consciente.  Vocês podem descobrir as atividades mais profundas, conscientes e inconscientes, se concederem a oportunidade para a mente inconsciente, visto que esta reage com muito mais presteza do que a mente consciente. Se escutam — como espero que estejam escutando — o que estou dizendo, a mente inconsciente de vocês deve estar reagindo. Enquanto a mente consciente de vocês está pensando, escutando, observando tranquilamente, a mente inconsciente está muito ativa, muito mais vigilante, muito mais receptiva; ela deve, portanto, ter uma resposta para dar. Pode a mente que foi subjugada, intimidade, forçada, compelida a acreditar, pode a mente em tais condições ser livre para pensar? Pode ela der de maneira nova e afastar o processo de isolamento entre nós? Por favor, não digam que a crença une as pessoas. Ela não une. Isso é um fato evidente, não é? Nenhuma religião organizada o tem conseguido. Olhem a vocês mesmos, neste país. Estão unidos? Bem sabem que não estão. Estão divididos em tantos pequenos partidos, tantas classes; vocês conhecem as inumeráveis divisões; o mesmo acontece no Ocidente. O processo é o mesmo no mundo inteiro: cristãos destruindo cristãos, assassinando-se por ninharias, transportando gente para os campos de concentração... os horrores da guerra. A crença, pois, não une as pessoas. É uma coisa evidente. Se isso está claro, se é verdadeiro e o percebem, cumpre então compreende-lo. A dificuldade está em que a maioria de vocês não o vê, porque somos incapazes de fazer frente àquela insegurança interior, àquele sentimento de "estar só". Queremos algo em que nos apoiar, seja o Estado, seja a classe, seja o nacionalismo, seja um Mestre, um Salvador, ou qualquer coisa a que nos apegar. Ao perceber a falsidade disso, a mente é capaz, pode ser temporariamente, por um segundo, capaz de perceber a verdade a esse respeito, e quando vê que ela é excessiva, volta. Mas o perceber temporariamente é suficiente; porque acontece então uma coisa extraordinária. O inconsciente continua funcionando, ainda que o consciente rejeite. Nesse segundo não ocorre nenhum progresso; mas esse segundo é a única coisa, e produzirá os seus resultados ainda que a mente consciente esteja lutando contra ele. 

Nossa questão, pois, é esta: É possível a mente estar livre do conhecimento e da crença? Não é a mente constituída de conhecimento e crença? Estão entendendo bem? A estrutura da mente não é a crença e o conhecimento? A crença e o conhecimento são os processos do conhecimento, o centro da mente. O processo se fecha, o processo é consciente. Pode, pois, a mente ficar livre de sua própria estrutura? Entendem o que quero dizer? A mente não é assim como a conhecemos.

(...) Pode a mente deixar de existir? Tal é o problema. A mente, tal como a conhecemos, é sustentada pela crença, ela tem desejo, impulso de segurança, conhecimento e força acumulada. E se, com toda essa força e superioridade, o indivíduo não pode pensar por si mesmo, não é possível a paz neste mundo. Podem falar a respeito, podem organizar partidos políticos, fazer proclamações do alto das casas; mas não podem ter paz; porque na mente se acha a própria base que cria a contradição, que isola e separa. 

(...) O homem amante da paz, o homem sincero, não pode isolar-se e ao mesmo tempo falar em fraternidade e de paz. Isso é mero jogo político ou religioso, e denota sempre interesse de consecução, ambição... O homem que sente real empenho a esse respeito, que deseja descobrir, tem de fazer frente ao problema do conhecimento e da crença; tem de penetrar a sua significação, descobrir todo o processo do desejo em funcionamento, do desejo de estar em segurança, do desejo de certeza. 

Jiddu Krishnamurti — Quando o pensamento cessa         





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