autoconhecimento
Qual é a única solução para os nossos problemas?
Temos problemas incontáveis; e quanto mais pensamos neles, conscientemente, tentando resolvê-los, tanto mais crescem as complicações e se multiplicam os problemas. Uma vez que estamos tratando de problemas não originados na mente superficial, mas resultantes de lutas, conflitos, ambições, agitações que se processam nas profundezas inconscientes, se se não operar uma transformação radical e fundamental naquele nível profundo, muito pouco valor terá qualquer reforma de remendos que se fizer no nível superficial — no terreno econômico, social, político, etc. Pode-se ver que as revoluções não nos alteraram fundamentalmente o processo do viver. A transformação que se opera no nível consciente não passa de uma simples continuidade modificada, pois nesse nível a mente opera de modo superficial, calculando, julgando, pensando; mas esse "processo" de calcular, pesar e julgar é a continuidade de uma coisa condicionada; por conseguinte, por esse meio não se resolve o problema de modo nenhum; o que se faz é apenas modificá-lo, alterar a sua direção; todavia, a nova direção é confusa, do mesmo modo.
Enquanto quisermos resolver nossos problemas no nível superficial, com ideia contra ideia, argumento contra argumento, lógica contra lógica — tudo isso reações da mente superficial — é bem óbvio que os resultados que a mente obterá serão produtos de pensamento condicionado. Nesse "processo", por conseguinte, não há revolução psicológica, profunda, fundamental. Creio, o mais importante atualmente não é a revolução no nível superficial, mas a revolução no nível inconsciente, profundo, porque vivemos muito mais nesse nível, e nosso ser está mais lá do que no nível superficial.
Assim sendo, não acham importante que escutemos de maneira que o inconsciente absorva — se assim me posso expressar — o que nos é transmitido, e a revolução, por conseguinte, não seja uma revolução consciente? Considero muito importante que se escute de tal maneira que a transformação seja inconsciente, e que tenhamos uma nova perspectiva da vida não fundada na ação consciente deliberada, mas na revolução não produzida pelo "processo" deliberado do pensamento.
Afinal, nós temos tantos problemas em níveis diversos — problemas econômicos, sociais, religiosos; o problema do amor, da morte, o problema das relações, da penúria, o que é Deus, se há continuidade, o que é imortalidade, o que é aquele estado de "atemporalidade", o que é criação, etc., etc. Temos problemas inumeráveis e a eles sempre nos aplicamos com a intenção de resolvê-los com nossa mente consciente, nossa mente comum, a mente que tem pensamentos, a mente que é resultado do tempo, resultado da tradição, da chamada educação (que é o processo de "nos condicionarmos" numa determinada ideia, atividade ou padrão — comunista, socialista, capitalista, católico, etc.) e com esse condicionamento queremos resolver os inúmeros problemas; mas, é bem óbvio, uma mente condicionada não pode resolver tais problemas.
Necessitamos de uma solução inteiramente diferente, de uma revolução diferente — de natureza psicológica, interior, fundamental. Isso, parece-me, só será possível quando souberem escutar não só a mim, mas a todas as coisas: a conversação que se trava ao redor de vocês, o diálogo que tem com a esposa, o marido, os filhos, o patrão, as conversas no trem, no ônibus, as falas do mendigo, a melodia de uma canção, o canto dos pássaros, o marulho das ondas. Se souberem escutar sem interpretação, sem tradução, haverá então a possibilidade de se realizar a revolução inconsciente.
Acho que o que se faz mais necessário, nos dias atuais, é esta revolução — e não uma série de líderes, não um determinado sistema político. Porque todos os líderes falharam completamente; porque os sistemas que eles advogam, ou que criaram, são o produto da mente condicionada e seus resultados serão sempre condicionados — de modo que nunca mais sairemos da rede de problemas em que nos vemos embaraçados. Esse caminho não conduza à felicidade humana, à ação humana criadora, ao descobrimento do que é verdadeiro.
O descobrimento do que é verdadeiro não se efetua por meio de esforço consciente. Se compreendermos isso verdadeiramente[...] chegaremos ao estado em que a mente reconhecerá a sua incapacidade de atender aos nossos problemas. Então talvez nos seja oferecida a possibilidade de descobrirmos uma nova fonte de ação, uma fonte diferente, cujo descobrimento nos habilitará a encontrar uma nova maneira de pensar, de sentir de viver, de existir.
Nossos problemas não são individuais — porque não existe a entidade "indivíduo". O indivíduo — vocês — pode ter nome diferente, corpo diferente, viver numa casa separada; mas o conteúdo da mente de vocês é o mesmo conteúdo da minha mente. O que pensam eu penso; são ambiciosos, e eu também; o que são, eu sou, e o é o vizinho de vocês. Temos um problema coletivo e não um problema individual. Vocês, como indivíduo "condicionado" dentro de um certo sistema de ideias, não podem resolver este problema da existência; ele será resolvido quando vocês e eu o estudarmos juntos, e não separadamente. A ação coletiva só poderá vir a efeito, só poderá se realizar quando houver pensamento que não seja coletivo. Mas, como já sabemos, a ação coletiva implica atualmente pensamento coletivo; pensamento coletivo é pensamento "condicionado"; e é isso o que nos interessa, em virtude de toda espécie de propaganda, da educação, da compulsão, etc., etc. Os fazem pensar coletivamente, tradicionalmente — quer seja uma tradição nova, quer velha; fazem com que se ajustem, a pensarem segundo uma norma coletiva, esperando-se que desse modo produzirão ação coletiva; mas não é possível a ação coletiva, visto que pensamento coletivo é sempre pensamento condicionado.
[...] Entretanto deve haver uma maneira de agir que não seja a de vocês ou a minha, que não seja a do comunista, do socialista, do católico, do cristão, do hinduísta, do budista; tal é a maneira de agir que resulta do descobrimento da Verdade. O descobrimento da Verdade não depende de vocês e de mim, da mente condicionada de vocês ou da minha mente condicionada. O descobrimento da Verdade ocorrerá apenas quando vocês e eu reconhecermos a nossa mente condicionada, o nosso estado condicionado.
Se vocês e eu pudermos descobrir o que é a Verdade, desse descobrimento virá a ação coletiva. Mas o pensar coletivo não conduz à ação coletiva, e sim, somente, ao sofrimento em escala maior, como de fato está ocorrendo atualmente. Talvez possamos, porém, vocês e eu juntos, (porque nesse caso não sou eu quem está guiando, e não são vocês que estão seguindo) descobrir o processo do nosso próprio pensar. Eu não o posso mostrar para vocês, para o aceitarem ou rejeitarem, meramente; vocês é que tem que descobri-lo enquanto vamos andando juntos; vocês precisam observar o próprio estado mental, não só no nível consciente mas também inconscientemente, em todos os momentos do dia, nas suas relações, não só enquanto estão aqui a me ouvir, mas também depois de saírem daqui.
Só pode nascer o sentimento de que o descobrimento da Verdade não é individual, que a Verdade não é coletiva nem individual, mas A VERDADE, depois de compreenderem todo o processo do pensar. O pensar é coletivo; não se pode pensar independentemente; não há pensar individual; o que pensam é pensamento coletivo, pois estão "condicionados"como hinduístas, cristãos ou muçulmanos; estão aprisionados no molde da tradição, que é pensamento coletivo. Podem estar condicionados dentro do molde, supostamente como indivíduos, mas o molde é coletivo; podem estar condicionados como comunista, todavia o condicionamento é coletivo. O "coletivo" não pode descobrir o que é verdadeiro, e nem o pode o indivíduo, porquanto não há pensamento individual, pois tudo é pensamento coletivo.
[...] Em última análise, as palavras que estou empregando, os pensamentos que estou expressando, as tendências de nosso pensar, tudo é resultado de pensamento e ação coletiva; ainda que eu me considere um indivíduo distinto, atribuindo-me um nome, morando numa choça ou num palacete, meu funcionamento, meu "processo", é todo coletivo. Pode "o coletivo" encontrar o que é verdadeiro? O "coletivo" é a mente condicionada, a mente presa à tradição, à autoridade, a toda sorte de temor consciente ou inconsciente, a mente buscando sem cessar a segurança. Pode essa mente, que é a mente coletiva, achar a Verdade? A Verdade é aquilo que nunca se contaminou, que se não pode conceber, premeditar, ler nos livros, que não pode lhes ser dada por outrem. A única solução para os nossos problemas é o descobrimento do que é a Verdade.Esta é a única revolução capaz de nos influir radicalmente na existência, na nossa vida de cada dia, em nossas relações diárias.
Uma vez que o descobrimento daquilo que é a Verdade é de vital significação e importância, não devemos[...] indagar com todo o interesse se a mente é capaz de se despojar de todo o seu condicionamento, para ter a possibilidade de descobrir o que é a Verdade? Esse descobrimento do que é a Verdade não se verifica por meio de esforço consciente. Acho muito importante se compreender que não se pode ir à Verdade. E a Verdade só pode nos vir imperceptivelmente, quando não a esperamos. Qualquer forma de expectativa, de esperança, é uma forma de "projeção" — projeção do "eu", sendo "eu" o coletivo. Por conseguinte, nosso problema é este: compreensão do conflito, da luta, da vida de cada dia, das nossas relações, nossas ambições, nossas paixões e desejos, nosso espírito de imitação, a medonha degradação que vai dentro de nós, a corrupção, a escuridão, a morte, que constantemente nos acompanha; e compreendido tudo isso, o descobrimento de algo existente além dos limites da mente. E esse estado só é realizável quando compreendermos o processo da nossa mente, e não quando procurarmos imaginar o que ele seja, ou lhe especular a respeito. Tão-somente ao compreendermos o processo do nosso pensar e vermos o quanto estão condicionadas as nossas mentes, só então há uma possibilidade de descobrir o que é a Verdade, a qual, só ela, pode nos libertar de nossos problemas.
Jiddu Krishnamurti em, Autoconhecimento — Base da Sabedoria
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