Que procura a maioria de nós?
autoconhecimento

Que procura a maioria de nós?


Acho muito importante que sejamos sinceros no mais alto grau. Aqueles que vêm às nossas reuniões, aqueles que freqüentam várias reuniões desta natureza julgam-se muito sinceros e interessados. Mas eu gostaria de saber o que se entende por ser sincero, ter interesse. Há interesse, há sinceridade, em irmos de um conferencista ou orador para outro, em passarmos de um guia para outro, em freqüentarmos grupos diferentes ou passarmos por diferentes organizações, na busca de alguma coisa? Assim, pois, antes de começar a verificar o que significa estar interessado, precisamos saber o que estamos procurando.
            Que procura a maioria de nós? Que é que cada um nós deseja? Principalmente neste mundo inquieto, no qual todos querem encontrar paz e felicidade de alguma espécie, em que todos buscam um refúgio, muito importa, por certo, averiguar o que queremos procurar, o que queremos descobrir. Não achais? A maioria de nós, provavelmente, anda à procura de alguma espécie de paz, de felicidade; num mundo atormentado de agitações, guerras, disputas, lutas, todos querem um refúgio onde se encontre um pouco de paz. Penso que é isso o que deseja a maioria de nós. E saímos, assim, em busca do que desejamos, indo ora a um guia, ora a outro, ora a uma organização religiosa, ora a outra, ora a um instrutor, ora a outro.
            Pois bem; buscamos a felicidade, ou buscamos apenas alguma espécie de satisfação, a qual esperamos nos proporcione a felicidade? Existe, por certo, uma diferença entre felicidade e satisfação. Pôde-se procurar a felicidade? É possível, talvez, achar-se a satisfação, mas é impossível achar-se a felicidade. A felicidade é um derivado, um subproduto de uma outra coisa. Nessas condições, antes de aplicarmos a mente e o coração a uma coisa que exige grande soma de empenho, de atenção, pensamento, cuidado, precisamos verificar o que é que procuramos, se a felicidade ou a satisfação. Parece que a maioria de nós está à procura de satisfação. Queremos sentir-nós satisfeitos, encontrar um sentimento de plenitude, no fim de nossa busca.
            Ora bem, pode-se procurar alguma coisa? Por que razão compareceis a estas reuniões? Por que estais aqui á escutar-me? Seria muito interessante averiguar por que estais aqui escutando, por que vos dais o incômodo de percorrer longas distâncias, em dias de calor, para ouvir-me falar. E com que propósito escutais? Estais procurando uma solução para vossas dificuldades, e é isso o que vos faz ir de um conferencista para outro, passar por várias organizações religiosas, ler livros, etc., etc.,? Ou quereis descobrir a causa de todas as dificuldades, aflições, disputas e lutas? Isso, por certo, não exige que leiais muitos livros, que freqüenteis inúmeras reuniões, ou que andeis à procura de um instrutor. O que se requer é clareza de propósito, não é verdade? Afinal de contas, quem busca a paz, pode encontrá-la mui facilmente. Qualquer um é capaz de devotar-se cegamente a uma causa, uma idéia, e nela abrigar-se. Mas isso, naturalmente, não resolve o problema. O mero isolamento e enclausuramento numa idéia não é libertação do conflito. Assim, pois, precisamos — não é verdade? — achar o que cada um de nós tanto interior, como exteriormente. Se temos clareza a tal respeito, não é, então, necessário irmos a parte alguma, a nenhum instrutor, nenhuma igreja, nenhuma organização. Nossa dificuldade, pois, é a de termos clareza em nós mesmos, quanto ás nossas intenções. Podemos ter esta clareza? E vem-nos ela como resultado da busca, procurando descobrir o que outros dizem, do instrutor mais sublime ao pregador medíocre da igreja mais próxima? Precisais recorrer a alguém para descobrirdes alguma coisa? É isso, entretanto, o que estamos fazendo, não é? Lemos livros e mais livros, freqüentamos muitas reuniões, tomamos parte em discussões, filiamo-nos a várias organizações, tentando por essa maneira achar um remédio para o conflito, para as atribulações de nossa vida. Ou, se não fazemos isso tudo, pensamos que já achamos o que procurávamos; isto é, dizemos que uma dada organização, um determinado instrutor ou livro nos satisfaz; encontramos nele o que desejávamos, e ai fica cristalizados e fechados.
            Temos, assim, de chegar ao ponto em que nos perguntamos, com real interesse e profundeza, se a paz, a felicidade, a realidade, Deus, ou o que quer que seja, nos pode ser dado por uma outra pessoa. Pode essa busca incessante, essa constante aspiração, dar-nos aquele extraordinário senso da realidade, aquele Ser criador, que se manifesta quando verdadeiramente compreendemos a nós mesmos? Vem-nos o autoconhecimento como resultado de nossa busca, do seguirmos outra pessoa, do pertencermos a uma dada organização, do lermos livros, etc? Afinal de contas esta é a questão principal, isto é, que, enquanto eu não compreender a mim mesmo, me faltará base para o pensamento e a minha busca será inteiramente baldada. Posso refugiar-me em ilusões, fugir de todas as lutas e disputas; posso render culto a outro indivíduo, procurar a salvação através de outra pessoa. Mas enquanto desconhecer a mim mesmo, enquanto desconhecer o processo total de minha consciência, não terei base alguma para o pensamento, para o afeto, para a ação.
            No entanto, o que menos desejamos é conhecer a nós mesmos. E essa é, positivamente, a única base sobre a qual podemos construir. Mas antes que possamos construir, antes que possamos transformar, que possamos condenar ou destruir, precisamos saber o que somos.
            Assim sendo, o sairmos a procurar, trocando de instrutores, de gurus, praticando a ioga, fazendo exercícios respiratórios, celebrando ritos, seguindo mestres, etc., é coisa de todo inútil, não achais? Nenhuma significação tem isso, ainda que as próprias pessoas que seguis vos digam que deveis estudar a vós mesmos. Porque, o que somos, o mundo é. Se somos mesquinhos, invejosos, vaidosos, ambiciosos, assim também é o que criamos em torno de nós, assim também a sociedade em que vivemos.
            Parece-me, portanto, que antes de encetarmos a jornada para encontrar a realidade, para encontrar Deus; antes que possamos agir, ter relações uns com os outros — o que constitui a sociedade — é, sem dúvida essencial que, em primeiro lugar, comecemos a compreender a nós mesmos. E considero deveras interessada a pessoa que dá importância, em primeiro lugar, a isso, e não a alcançar um determinado alvo. Porque, se vós e eu não compreendermos a nós mesmos, como poderemos, com a nossa ação promover qualquer transformação na sociedade, nas relações, em tudo o que fazemos. Mas isso não significa, é claro, que o autoconhecimento esteja em oposição à vida de relação ou separado dela. Não implica a exaltação do individuo, do “eu”, como oposto da coletividade ou de outro individuo. Não sei se algum de vós já empreendeu a sério o estudo de si mesmo, observando cada palavra e as correspondentes reações; observando cada movimento do pensamento e do sentimento — observando, simplesmente, mantendo-vos cônscio das reações corporais, quer a ação proceda dos centros físicos, quer de uma idéia, cônscio de como reagis às condições do mundo. Não sei se já alguma vez examinastes seriamente essa questão. Talvez o tenhais feito, alguns de vós, esporadicamente, como último recurso, depois de tudo falhar e por sentirdes enfadados.
            Ora, sem conhecerdes a vós mesmos, sem conhecerdes a vossa própria maneira de pensar, e a razão por que pensais certas coisas, sem conhecerdes o fundo do vosso condicionamento, e sem saberdes por que tendes certas crenças acerca da arte, da religião, de vossa nação, de vosso semelhante, e acerca de vós mesmo, como podeis pensar corretamente a respeito de algo? Sem conhecerdes o vosso fundo, sem conhecerdes a substância do vosso pensamento e de onde ele procede, vossa busca é por certo completamente inútil e vossas ações nenhuma significação tem. Não é verdade isso? Nada significa, tão pouco, que sejais americano ou hindu, nem qual seja a vossa religião.
            Nessas condições, antes de podermos descobrir qual é a finalidade da vida, qual o significado de tudo o que vemos — as guerras, os antagonismos nacionais, os conflitos, a confusão geral — precisamos começar por descobrir a nós mesmos, não achais? Isso parece tão simples e, no entanto, extremamente difícil. Porque, para observar a si mesmo, ver como funciona o seu próprio pensamento, precisa um homem estar extraordinariamente vigilante: logo que uma pessoa começa a perceber melhor os meandros do próprio pensar, de suas reações e sentimentos, começa, igualmente, a ter um melhor conhecimento, não só de si mesma, mas também daqueles com quem está em relação. Conhecer a si mesmo, é estudar a si mesmo em ação, o que é relação. Mas a dificuldade está em sermos muito impacientes, em querermos ir por diante, chegar a um alvo. E, assim, falta-nos tempo e ocasião para darmos a nós mesmos uma oportunidade de estudar-nos e observar-nos. Ou, ainda, obrigamo-nos a desempenhar várias atividades — ganhar o nosso sustento, criar os nossos filhos — ou assumimos certos deveres perante várias organizações: tomamos tantos compromissos, em diferentes sentidos que quase não nos sobra tempo para a reflexão nós mesmos, para a observação e o estudo de nós mesmos. Assim sendo, a responsabilidade da reação cabe, com efeito, ao próprio individuo, e não a outro. E esse interesse que se observa, tanto na América do Norte como no mundo inteiro, pelos gurus e seus sistemas, pela leitura dos livros mais recentes sobre este ou aquele assunto, etc., etc., me parece profundamente vazio; podeis percorrer a terra toda, mas tereis de voltar a vós mesmos. E visto que, em geral, estamos completamente alheados de nós mesmos, é extremamente difícil começarmos a perceber claramente o processo do nosso pensar, sentir e agir. E este é o assunto de que vou tratar nas semanas vindouras.
            Quanto mais conheceis a vós mesmos, tanto mais clareza há. O autoconhecimento não tem fim; não se chega a uma realização final, não se chega a uma conclusão. É um rio infinito. E, ao estudá-lo, ao penetrá-lo mais e mais, encontra o homem a paz. Só quando a mente está tranqüila — em virtude do autoconhecimento e não de uma disciplina imposta — só então, nessa tranqüilidade, nesse silêncio, pode a realidade despontar. Só então pode haver a felicidade suprema, a ação criadora. E a mim me parece que, sem esta compreensão, sem esta experiência, se formos apenas ler livros, assistir a conferências, fazer propaganda, procederemos de maneira infantil, pois não tem grande significação a nossa atividade. Mas, se formos capazes de compreender a nós mesmos e de, com essa compreensão, fazer nascer àquela felicidade criadora, aquela experiência de algo que não procede da mente, então, talvez, se operará uma transformação nas nossas relações imediatas e, conseqüentemente, também no mundo em que vivemos.

            PERGUNTA: Preciso estar num nível especial de consciência para compreender-vos?

            KRISHNAMURTI: Para se compreender qualquer coisa — não apenas o que estou dizendo, mas qualquer coisa — que é que se necessita? Para compreenderdes a vós mesmos, compreenderdes vosso marido, vossa esposa, um quadro, a paisagem, as árvores, que é que se necessita? Atenção adequada, não é? Porque, para compreenderdes alguma coisa, precisais entregar-vos inteiramente a ela, dar-lhe exclusiva, plena e profunda atenção, não é verdade? E como pode haver atenção profunda e completa, se estais distraído? Se estais, por exemplo, a tomar notas enquanto falo? Ouvis, porventura, uma boa frase e exclamais: “Olá! Preciso tomar nota disso, para empregá-lo em minhas conversas” Como pode haver atenção plena se estais preocupados somente com o sentido na palavras? Quer dizer, estais concentrados apenas no nível verbal, e por essa razão sois incapazes de passar além desse nível. As palavras são apenas um instrumento de comunicação. Mas, se não sois capazes comunicação e vos apegais somente às palavras, é claro e não pode haver atenção plena; e não há, conseqüentemente, compreensão correta.
            Escutar é, pois, uma arte, não? Para compreenderdes algo, precisais aplicar-lhe toda a atenção e tal não é possível se há qualquer coisa a distrair-vos — se tomais notas, se estais sentado desconfortavelmente, ou se estais lutando e despendendo esforços para compreender. Fazer esforço para compreender é obviamente um empecilho à compreensão, uma vez que toda a atenção está aplicada no esforço. Não sei se já notastes que, quando tendes interesse numa coisa que outro diz, não fazeis esforço algum, não ergueis barreira contra a distração. Não há distração quando há interesse: dá-se atenção plena, ardorosa e espontânea, ao que se diz. Quando há interesse vital, a atenção é espontânea. Mas, em geral, achamos muito difícil essa atenção. Porque, conscientemente, no nível superficial da mente, pode haver o desejo de compreender, porém, interiormente, há resistência; interiormente talvez haja o desejo de compreender, mas superficialmente há resistência.
            Nessas condições, para que se dê atenção completa a uma coisa, é necessária a integração de todo o vosso ser. Porque num nível da consciência, podeis desejar descobrir, conhecer; mas, noutro nível, esse mesmo conhecimento, que desejais pode significar destruição, pode obrigar-vos a alterar toda a vossa vida. E assim, trava-se um conflito interior, uma disputa interior, da qual, talvez, não vos deis fé. E, assim, embora penseis estar atento, na realidade alguma coisa está a distrair-vos, interna ou externamente; e essa é a dificuldade.
            Assim, pois, para se compreender alguma coisa, necessita-se toda a atenção; e essa é a razão por que, em várias reuniões vos tenho recomendado não tomar nota, fazendo-vos ver que não estais aqui para fazer propaganda, nem de mim nem de vós mesmos, e que deveis escutar com o fito único de compreender. Nossa dificuldade de compreender se deve a que nossa mente nunca está quieta. Nunca contemplamos uma coisa calmamente, numa disposição receptiva. Muita coisa inútil nos é servida pelos jornais e revistas, pelos políticos e oradores de rua; qualquer pregador de segunda ordem nos diz o que devemos e o que não devemos fazer. Tudo isso jorra incessantemente; e, naturalmente, levanta-se uma resistência interna contra tudo isso. Não pode haver compreensão enquanto a mente está perturbada. Se a mente não está muito calma, silenciosa, tranqüila, receptiva, sensível não há possibilidade de compreendermos; e essa sensibilidade da mente não se acha apenas no nível superior da consciência, na mente superficial. É necessário tranqüilidade de ponta a ponta, tranqüilidade integral. Se, quando em presença de algo muito belo, começais a tagarelar, não percebereis o seu significado. Mas, se estais quietos, se estais receptivos, ser-vos-á comunicada a sua beleza. Analogamente, se desejamos compreender uma coisa, precisamos não apenas estar fisicamente tranqüilos, mas também a nossa mente deve estar em extremo vigilante, e ao mesmo tempo tranqüila. Essa passividade vigilante da mente não se adquire por meio da compulsão. Não se pode exercitar a mente para ficar silenciosa; ela semelharia, em tal caso, um macaco amestrado: muito quieta por fora, e por dentro em efervescência. Como vedes, o escutar é uma arte; e precisais dedicar o vosso tempo, o vosso pensamento, todo o vosso ser, àquilo que desejais compreender.
           
            PERGUNTA: Posso compreender mais facilmente o que dizeis, ensinando-o a outros?

            KRISHNAMURTI: Comunicando-o a outros, podeis, talvez, aprender uma nova maneira de expressar as coisas, de transmitir o que desejais dizer, mas, francamente, isso não é compreensão. Se não compreendeis a vós mesmo, como, pelo amor de Deus, podeis expressá-lo a outros? Isso é meramente propaganda, não achais? Vós não compreendeis uma coisa, mas falais sobre ela com outras pessoas; e julgais que uma verdade pode ser repetida. Pensais, se tiverdes uma experiência, que a podeis transmitir a outros? Podeis comunicá-la verbalmente; mas podeis contar a outros o que foi a vossa experiência, isto é, transmitir o experimentar da coisa? Pode-se descrever a experiência, mas não se pode transmitir estado de experimentar. Assim, pois, verdade repetida não é mais verdade. Só a mentira pode ser repetida. No momento em que repetimos uma verdade, ela perde a sua significação. Entretanto, em geral, temos mais interesse em repetir do que em experimentar. Ao homem que está experimentando algo não interessa a mera repetição, a conversão de outros, a propaganda. Mas, infelizmente, a maioria de nós está interessada na propaganda; porque, pela propaganda, não somente procuramos convencer a outros, mas também ganhar o nosso sustento, pela exploração de outros; a propaganda se torna, gradualmente, um meio de exploração.
            Nessas condições, se não estais preso à mera verbalização, se estais realmente ocupados em experimentar, então vós e eu estamos em comunhão. Mas, se desejais fazer propaganda — e eu afirmo que a verdade não pode ser propagada — não há então relação entre nós. E quer-me parecer que esta é a nossa dificuldade na época atual. Quereis ensinar a outros, sem experimentardes; e esperais que, ensinando possais experimentar. Isso é pura excitação dos sentidos, mera satisfação. Não tem valor nem se baseia em realidade alguma. Mas, uma realidade experimentada, quando transmitida a outrem, não cria vínculo algum. A experiência é muito mais importante, muito mais significativa do que a comunicação no nível verbal.

            PERGUNTA: Parece-me que o movimento da vida se faz sentir nas nossas relações com as pessoas e as idéias. Se nos desfazemos de tal estímulo, condenamo-nos a viver num vácuo opressivo. Necessito distrações, para sentir-me viver.
            KRISHNAMURU: Nesta pergunta está encerrado todo o problema do desapego e da vida de relação. Ora, por que queremos ser desapegados? Que instinto é esse, da maioria de nós, que procura desprender-se, desapegar-se? Para a maioria de nós, talvez essa idéia de desapego tenha surgido porque tantos instrutores religiosos nos têm falado a respeito dela. “Precisais ser desapegados, a fim de encontrardes a realidade; deveis renunciar, deveis desistir, e então encontrareis a realidade”. Mas, podemos ser desapegados na vida de relação? Que entendemos por vida de relação? Precisamos, pois, examinar essa questão com certo cuidado.
            Pois bem; por que temos essa reação instintiva, essa constante aspiração ao desapego? Os vários instrutores religiosos vos têm dito que deveis ser desapegados Por quê? A primeiro lugar, o problema é: por que somos apegados? — e não de que maneira nos desapegamos.
            Sem dúvida, se puderdes encontrar a resposta, desaparecerá então a questão do desapego, não achais? Por que vivemos apegados a atrações, sensações e coisas da mente ou do coração? Se pudermos descobrir por que somos apegados, então, talvez descubramos a resposta correta, e não a maneira de nos tornarmos desapegados.
            Por que sois apegado? E que acontece se não fôsseis apegado? Se não fôsseis apegado ao vosso nome, vossa propriedade, vossa posição — todo o conjunto das coisas que constituem a vossa existência: vossa mobília e vosso carro, vossas características pessoais, vossas idiossincrasias, vossas virtudes, crenças, idéias — que aconteceria? Se não tivésseis esse apego, sentir-vos-íeis como nada, não é verdade? Se não tivésseis apego aos vossos confortos, vossa posição, vossa vaidade, estaríeis subitamente perdido, não é verdade? Assim, pois, o medo do vazio, o medo de ser Nada, vos torna apegado a alguma coisa — vossa família, marido, esposa, uma cadeira, um carro, a pátria — não importa qual seja a coisa. O medo de ser Nada nos faz apegar-nos a alguma coisa e nesse processo de apego há conflito e dor. Porquê aquilo a que nos apegamos breve se desfaz e perece: vosso carro, vossa posição, vossa propriedade, vosso marido. Assim, pois, no processo do apego existe sofrimento; e, para nos livrarmos do sofrimento, dizemos que precisamos ser desapegados. Examinai a vós mesmos, e vereis que assim é. O temor da solidão, o temor de ser Nada, o temor do vazio faz-nos apegados a alguma coisa: à pátria, a uma idéia, a Deus, a uma organização, a um Mestre, a uma disciplina, a tudo, enfim. No processo do apego há sofrimento; e para evitar esse sofrimento, procuramos cultivar o desapego e mantemo-nos, assim, nesse círculo doloroso, no qual há sempre luta. Ora, por que não podemos ser Nada, uma entidade negativa, não apenas no nível verbal, porém interiormente? Não há então problema de apego ou desapego, não é verdade? E, num tal estado, pode haver alguma relação? E isso o que o interrogante deseja saber. Diz ele que, sem estarmos em relação com coisas ou pessoas, vivemos num vácuo opressivo. É exato isso? E a vida de relação um processo de apego? Quando sois apegado a uma pessoa, estais em relação com essa pessoa? Quando sou apegado a vós, e me agarro a vós, e vos conservo em meu poder, estou em relação convosco? Vós vos tornais uma necessidade para mim, porque, sem vós estou perdido, fico inconsolável, sinto-me infeliz e só. Por essa forma, vós vos tornais uma necessidade, uma utilidade, uma coisa com que preencho o meu vazio. Vós mesmo sois sem importância; o que importa é que satisfaçais a minha necessidade. E há relação entre nós, quando, para mim, sois uma necessidade, uma utilidade, como uma peça de mobília?
            Expressando-o por outra maneira: Pode-se viver sem relações? E o estado de relação representa apenas um estímulo? Porque, sem relações, que chamais distrações, vós vos sentis perdido, vos sentis sem vida. Isto é, o estado de relação é para vós como uma distração, que vos dá o sentimento de estar vivo. É o que diz o autor da pergunta.
            Mas, pode-se viver neste mundo sem estar em relação? É óbvio que não. Coisa nenhuma pode viver no isolamento. Alguns de nós talvez gostássemos de viver isolados; mas isso é impossível. Por conseqüência, a vida de relação se torna mera distração, que nos faz sentir-nos como se fossemos viventes: o brigar, o lutar, o disputar, faz-nos sentir-nos vivos. E a vida de relação se torna, assim, mera distração. E, como diz o interrogante, sem distrações, sentimo-nos como mortos. Por esse motivo, a vida de relação vos serve apenas para distrações; mas a distração — o beber, o freqüentar cinemas, o acumular conhecimento — a distração, seja de que natureza for, insensibiliza a mente e o coração, não é verdade? Uma mente insensível e um coração insensível — que relações podem manter em tais condições? É só a mente sensível, o coração desperto para a afeição que pode estar em relação com algo.
            Nessas condições, se continuardes a considerar a vida de relação como uma distração, estareis vivendo num vácuo, porque tendes pavor de sair desse estado de distração. Daí o temerdes toda espécie de desapego, toda espécie de separação. A vida de relação é, em tais condições uma distração que vos faz sentir viver. Ao passo que a verdadeira vida de relação, que não é distração, é realmente um estado no qual viveis constantemente num processo de compreensão de vós mesmo em relação com alguma coisa. Isto é, a vida de relação é um,processo de auto-revelação e não de distração; e essa auto-revelação é sobremodo dolorosa, porquanto nas relações com outros não tardais a descobrir o que está em vós mesmo, se vos mostrais receptivo para esse descobrimento. Mas, visto que, em geral, não queremos descobrir a nós mesmos e preferimos esconder-nos de nós mesmos na vida de relação, torna-se esta sumamente dolorosa e procuramos, por esta razão, separar-nos dela. A vida de relação não é um estimulante. Por que desejais ser estimulado por meio de vossas relações? Mas, se achais estímulo, a vida de relação, como todo estimulante, acaba se tornando insípida. Não sei se já notaste que tudo o que estimula acaba insensibilizando a mente e o coração.
            Nessas condições, a questão do desapego nunca deveria surgir porque só o homem que possui pensa em renunciar; mas nunca pergunta por que possui, qual a causa fundamental do seu desejo de posse. Ao compreender o processo que gera o desejo de possuir, ficará ele então libertado desse desejo. Mas, essa libertação não é alcançável pelo cultivo de um oposto, tal como o desapego. E a vida de relação será apenas um estimulante, uma distração, enquanto nos servimos dos outros como meio de satisfação própria, ou como uma necessidade, para escapar-nos de nós mesmos. Vós vos tornais muito importante para mim, porque, em mim mesmo, eu sou paupérrimo, não sou nada, e por isso vós sois tudo. Uma tal espécie de relação acarreta inevitavelmente conflito e sofrimento; e uma coisa que nos causa dor, já não é uma distração. Por esse motivo desejamos fugir da vida de relação, e chamamos essa fuga desapego.
            Enquanto, nas nossas relações, nos servimos da mente, não há compreensão da vida de relação. Porque, afinal de contas, a mente é que nos faz ser desapegados. Quando existe o amor, não há nenhum problema de apego ou desapego. Logo que cessa o amor, começa a existir a questão do apego ou do desapego. O amor não é produto do pensamento: não se pode pensar no amor. Ele é um estado. E quando a mente intervém com seus cálculos, seus ciúmes, seus diferentes ardis, apresenta-se, então, o problema, em nossa vida de relação. A vida de relação só tem verdadeira significação quando é um processo pelo qual o individuo se revela a si mesmo; e se, nesse processo, o individuo agir com profundeza e amplitude, haverá, então, na vida de relação, a paz, e não antagonismo e hostilidade entre duas pessoas. Só nessa quietude, nessas relações em que há a fruição do autoconhecimento, existe a paz.
16 de julho de 1949. 
Krishnamurti - Solução para os nossos conflitos
(Conferências, com perguntas e respostas, realizadas em Ojai, Califórnia,




- Sobre A Existência De Deus - Krishnamurti
"Pergunta: Podeis responder-nos claramente existe ou não existe Deus? J. Krishnamurti: Senhor, porque o quereis saber? Que diferença faz, se eu o disser com clareza ou sem clareza? Ou confirmarei a vossa crença, ou abalarei a vossa crença. Se confirmo...

- Da Verdade, Nada Sabemos Por Nós Mesmos; Não Temos Uma Experiência Direta
Que estamos buscando, quase todos nós? Que é isso que cada um de nós deseja alcançar? Sobretudo neste mundo inquieto, onde todos procuram alguma espécie de paz, alguma espécie de felicidade, um refúgio, importa, sem dúvida, averiguar o que tentamos...

- Os Governos São A Expressão Da Violência
PERGUNTA: Porque meio podeis influenciar os chefes de um partido ou os membros de um governo e trabalhar através deles? KRISHNAMURTI: Pela razão muito simples de que os chefes são fatores de degeneração na sociedade, e os governos são a expressão...

- Sobre O Tédio E O Interesse
            PERGUNTA: Não tenho interesse por coisa alguma, mas a maioria das pessoas está sempre ocupada em numerosos interesses. Não preciso trabalhar, portanto não trabalho. Devo emprender...

- A Questão Da Ação, Da Atividade, E Da Vida De Relação.
Como ontem sugeri, deveríamos ser capazes de escutar o que se nos diz, sem rejeição nem aceitação. Deveríamos ser capazes de escutar de maneira que, se for coisa nova o que ouvimos, não a rejeitemos imediatamente — o que também não significa...



autoconhecimento








.