Seguindo essa coisa que chamamos “eu”
autoconhecimento

Seguindo essa coisa que chamamos “eu”


Conhecer a si mesmo é o começo da meditação. Sem conhecerdes a vós mesmos, o repetirdes uma quantidade de palavras da Bíblia, do Gita, ou de qualquer dos chamados livros sagrados, nenhuma significação tem. Isso poderá satisfazer a mente, mas uma pílula dá o mesmo resultado. Pelo repetir uma frase mais e mais vezes, torna-se o cérebro naturalmente quieto, sonolento e embotado; e como resultado desse estado de insensibilidade, de embotamento, pode-se ter alguma espécie de experiência, obter certos resultados. Mas a pessoa continua ambiciosa, invejosa, ávida, e cria inimizade. Assim, o aprender a conhecer a si própria, aquilo que a pessoa realmente é, é o início da meditação. Estou empregando a palavra “empreender” porque quando se está aprendendo, no sentido em que emprego a palavra, não há acumulação. O que chamais “aprender” é o processo de acrescentar mais e mais ao que já se sabe. Mas, para mim, no momento em que adquirimos, acumulamos, essa acumulação se torna conhecimento, e conhecimento “não é aprender”. O aprender nunca é acumulativo; ao passo que a aquisição de conhecimento é um processo de condicionamento.

Se desejo aprender a conhecer-me, descobrir o que realmente sou, tenho de estar vigilante a todas as horas, a todos os minutos do dia, para ver como me estou exprimindo. Estar vigilante não é condenar ou aprovar, porém ver o que somos momento a momento. Pois o que nós somos está sempre a modificar-se, — não é verdade? — nunca é estático. O conhecimento é estático; já o aprender a conhecer o movimento da ambição nunca é estático, senão vivo, sempre movediço. Dessa forma, aprender e adquirir conhecimento são duas coisas diferentes. O aprender é infinito, é um movimento em liberdade; o conhecimento tem um centro que está sempre acumulando e só conhece um movimento, que é o de acumular mais, de escravizar-se mais.

Para seguir esta coisa que chamo “eu”, com todas as suas nuanças, suas expressões, seus desvios, suas sutilezas, sua astúcia, deve a mente estar muito clara e vigilante, porquanto o que sou está sempre a mudar, a modificar-se, não é assim? Eu não sou o mesmo de ontem ou de há um minuto, porque cada pensamento e cada sentimento está modificando, moldando a mente. E se só vos interessa condenar ou julgar, de acordo com vossos conhecimentos acumulados, vosso condicionamento, não estais então seguindo a coisa, não a estais acompanhando, observando. Por conseguinte, o aprender a conhecer-vos importa muito mais do que o adquirir conhecimento acerca de vós mesmos. Não se pode ter um conhecimento estático a respeito de uma coisa viva. Pode-se ter conhecimento de algo passado e acabado, porque todo conhecimento está no passado; é estático, já morto. Mas uma cosia viva está sempre a mudar, sempre a sofrer modificações; ela difere a cada minuto, e vós tendes de segui-la, para conhece-la. Não podeis compreender o vosso filho se continuamente o estiverdes condenando, justificando, ou com ele vos identificando; tendes de observá-lo, sem julgamento, quando ele dorme, quando chora, quando brinca — a todas as horas.

Assim, o aprender a conhecer a vós mesmo é o começo da meditação; aprendendo a conhecer-vos, ir-se-ão eliminando todas as ilusões. E isso é absolutamente essencial, pois, para se descobrir o que é verdadeiro — se existe a verdade, algo imensurável — não pode haver ilusão. E há ilusão quando há desejo de prazer, de conforto, de satisfação. Esse processo, naturalmente, é bem simples. Desejando satisfação, criais a ilusão e aí ficais atolado para o resto da vida. Aí estais satisfeitos; e a maioria das pessoas estão satisfeitas com o crerem em Deus. Assusta-as a vida, a insegurança, a agitação, a agonia, a “culpa”, a ansiedade, as misérias e tristezas da vida; assim estabelecem, finalmente, algo a quem chamam Deus, aonde se acolhem. E tendo-se rendido à crença, tem visões, e se tornam santos, etc. Isto não é investigar se existe ou não uma realidade. Ela poderá existir e poderá não existir; compete-vos descobri-lo. E para descobrirdes, precisais de liberdade no começo e não no fim — livres de todas essas coisas, tais como a ambição, a avidez, a inveja, a fama, o desejo de ser importante e todas as demais infantilidades.

Deste modo, ao aprenderdes sobre a vossa pessoa, estais penetrando em vós mesmo, não apenas no nível consciente, mas também no nível profundo, inconsciente, e trazendo à luz todos os secretos desejos, buscas, impulsos, compulsões. Destrói-se então o poder de criar ilusões, porque está lançada a base correta. Quando a mente, o intelecto, se examina, se observa a si mesmo no movimento do viver, nunca deixando sem exame e compreensão um só pensamento ou sentimento, então tudo isso, em sua totalidade, é percebimento. É estar cônscio de vós mesmo, inteiramente, sem condenação, sem justificação, sem escolha — como quem olha o próprio rosto ao espelho. Não podeis dizer: “Eu desejava ter um rosto diferente”; ele lá está, tal como é.

E com essa autocompreensão, o intelecto — que é mecânico e está sempre “tagarelando”, reagindo a todas as influências, todos os desafios — se torna muito quieto, embora sensível e vivo. Ele não está morto; tornou-se um intelecto vivo, dinâmico, vigilante, mas ao mesmo tempo, tranquilo, silencioso, porque nenhum conflito tem. Está em silêncio porque eliminou, compreendeu todos os problemas que para si criara. Afinal, um problema só se torna existente quando uma dada questão não foi bem compreendida. Quando o intelecto examinou e compreendeu perfeitamente a ambição, acabou-se o problema da ambição. E, assim, o intelecto se tranquilizou.

Podemos agora prosseguir, juntos, deste ponto, ou verbalmente ou fazendo realmente a viagem, experimentando de verdade — e isso significa eliminar completamente a ambição. Não se pode eliminar a ambição ou a avidez a pouco a pouco; aqui não há “mais tarde” nem “no ínterim”. Ou a eliminamos totalmente, ou ela de modo nenhuma é eliminada. Mas, quando se alcança o ponto em que não há mais avidez, nem inveja, nem ambição, o intelecto está então sumamente tranquilo, sensível, portanto, livre — e tudo isso é meditação; e então, mas não antes, pode-se ir mais longe. Ir mais longe, sem se ter chegado a este ponto, é mera especulação, sem nenhuma significação. Para se ir mais longe, cumpre estabelecer esta base, a qual é realmente virtude. Não é a virtude da respeitabilidade, a moralidade social de uma dada coletividade, porém uma coisa extraordinária, pura, verdadeira, a qual se torna existente sem nenhum esforço e é, essencialmente, humildade. A humildade é essencial, mas não pode ser cultivada, desenvolvida, praticada. Dizer para si mesmo: “Serei humilde” é pura insensatez; é vaidade encoberta pela palavra “humildade”. Mas há uma humildade que vem à existência naturalmente, inesperadamente, sem ser buscada; e nela não existe conflito; porque essa humildade nunca está subindo degraus, nunca está desejando.

Ora, quando se alcança este ponto, onde reina silêncio completo, onde o intelecto está inteiramente tranquilo e é, portanto, livre, verifica-se um movimento todo diferente.

Ora, compreendei, por favor, que esse estado é, para vós, especulativo. Estou falando de algo que não conheceis e que, por conseguinte, pouco vos significa. Mas falo porque ele tem significação em referência ao todo, à totalidade da vida. Porque, se não soubermos distinguir entre o que é verdadeiro e o que é falso, se não descobrirmos se existe ou não a verdade, a vida se torna extremamente superficial. Quer nos denominemos cristãos ou budistas, quer nos denominemos hinduístas ou seja o que for, a vida da maioria de nós é bem superficial, vazia, monótona, mecânica. E com a mente mecanizada queremos descobrir algo inefável. Uma mente insignificante a buscar o imensurável continua insignificante. Por conseguinte, a mente embotada deve transformar-se. Estou, pois, falando a respeito de algo que podeis ter visto ou não ter visto; mas importa aprendê-lo, porquanto essa realidade inclui a totalidade da consciência, inclui toda a ação de nossa vida. Para descobrir isso, a mente deve tornar-se completamente quieta, não mesmerizando a si própria, não por meio de disciplina, repressão, ajustamento; tudo isso significa, apenas, substituir um desejo por outro.

Não sei se já vos ocorreu isto: estar com a mente serena. Não aquela espécie de tranquilidade encontrável na igreja, ou o sentimento superficial que experimentais quando caminhais pela rua ou passeais num bosque, ou quando estais ocupado com o rádio ou a cozinha. Essas coisas exteriores podem absorver-vos — e de fato absorvem — produzindo uma certa forma de serenidade temporária. Isso é semelhante ao que acontece com o garoto entretido com um brinquedo; o brinquedo é tão interessante que absorve sua energia e pensamento; mas isso não é tranquilidade. refiro-me à tranquilidade que se verifica quando a totalidade da consciência foi compreendida e já não há buscar, desejar, tatear no escuro e, por conseguinte, ela se tornou perfeitamente serena. Nessa serenidade há um movimento completamente diferente; esse movimento é atemporal. Não tenteis reter estas frases, porque elas em si nada significam. Nosso intelecto, nossos pensamentos resultam do tempo; assim, pensar a respeito do atemporal nenhuma significação tem. Só quando o intelecto se tranquilizou, quando já não busca, nem evita, nem resiste, porém se acha totalmente tranquilo por ter compreendido todo este mecanismo, só então, nessa tranquilidade, se manifesta uma vida de espécie diferente, um movimento que transcende o tempo.

Krishnamurti – Paris, 21 de setembro de 1961





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