Sobre o estado de eterna criação
autoconhecimento

Sobre o estado de eterna criação


            Que é que impede essa constante renovação em nossa vida, que impede o novo de realizar-se? Não será porque não sabemos morrer a cada dia? Porque vivemos em estado de continuidade, num constante processo de transportar de dia para dia as nossas memórias, nossos conhecimentos, nossas experiências, nossas tribulações, nossas penas e sofrimentos, nunca encontramos num dia novo, sem a lembrança do anterior.  Para nós, a continuidade é a vida. Saber que eu continuo como memória, identificado com um determinado grupo, com um determinado conhecimento, com uma determinada experiência - para nós, isso é a vida; e o que tem continuidade, o que subsiste pela memória, como pode isso renovar-se?  Positivamente, só é possível a renovação quando compreendermos, na sua inteireza, o processo do desejo de continuar; e só quando cessa tal continuidade como entidade, como eu, no pensamento, só então se produz uma renovação.
            Afinal de contas, nós somos um feixe de lembranças: as lembranças da experiência, as lembranças que acumulamos pela vida, pela educação; e o eu é o resultado da identificação com tudo isso. Somos o resultado de nossa identificação com um determinado grupo francês, holandês, alemão, ou hindu.  Sem essa identificação com um grupo, com uma casa, um piano, uma idéia, ou uma pessoa, sentimo-nos perdidos; apegamo-nos por isso, à memória, à identificação, e essa identificação dá-nos continuidade, e a continuidade impede a renovação. Positivamente, só há possibilidade de renovar-nos quando sabemos morrer e renascer em cada dia, isto é, quando sabemos morrer e renascer em cada dia, isto é, quando estamos livres de toda identificação, que dá continuidade.
            A criação não é uni estado de memória, é? Não é um estado em que a mente está ativa. A criação é um estado mental, do qual o pensamento está ausente; enquanto o pensamento funciona, não pode haver criação. O pensamento é contínuo, é o resultado da continuidade, e para o que tem continuidade não pode haver criação, renovação; o que é contínuo só pode mover-se do conhecido para o conhecido, e, por conseguinte, nunca pode ser o desconhecido. Por essa razão, a compreensão do pensamento, e a maneira de por fim ao pensamento, são de grande importância. Pôr fim ao pensamento não é um processo de viver numa torre de marfim de abstração; pelo contrário, o findar do pensamento constitui a forma mais elevada da compreensão. O findar do pensamento gera a criação, e nesta há renovação; mas enquanto existir pensamento, não haverá renovação. Por esta razão é muito mais importante compreender como pensamos, do que considerar a maneira de renovar-nos. É só quando compreendo as tendências do meu próprio pensar, só quando percebo todas as suas reações, não apenas nos níveis superficiais, mas também nos profundos níveis inconscientes – é só então que, compreendendo a mim mesmo, o pensamento se extingue.
            O findar do pensamento é o começo da criação, o findar do pensamento é o começo do silêncio; mas o findar do pensamento não pode dar-se pela compulsão, nem por forma de disciplina, de constrangimento. Já devemos ter tido momentos em que nossa mente se achou muito tranqüila – espontaneamente tranqüila, sem nenhuma intenção de compulsão, sem nenhum impulso, nenhum desejo de fazê-la silenciosa. Já devemos ter experimentado momentos em que a mente esteve de toda quieta. Ora, essa tranqüilidade não é o resultado de continuidade, essa tranqüilidade nunca pode ser o produto de uma certa forma de identificação. A mente, num tal estado, deixa de existir; isto é, o pensar, como reação de um determinado condicionamento, deixa de existir. Este extinguir-se do pensamento é renovação, é o estado de novo, no qual a mente pode começar de maneira nova.
            Assim, a compreensão da mente, não como pensante, mas só como pensamento, a direta percepção da mente como pensamento, sem nenhum senso de condenação ou justificação, sem escolha, causa a extinção do pensamento. Vereis então, se o experimentardes, que depois da extinção do pensamento não existe mais pensante; e, quando não existe pensante, a mente está tranqüila. O pensante é a entidade que tem continuidade. O pensamento, vendo-se transitório, cria o pensante como entidade permanente, e dá continuidade ao pensante; e o pensante se torna então o agitador, mantendo a mente em estado de constante agitação, de constante busca, indagação, ansiedade. Só quando a mente compreende o processo total de si mesma, sem nenhuma forma de compulsão, há tranqüilidade e, por conseguinte, uma possibilidade de renovação.
            Assim, em todas essas questões o mais importante é compreender o processo da mente; e compreender o processo da mente não significa ação introspectiva, ação de auto-isolamento; não significa negação da vida, retraimento para um eremitério ou mosteiro, nem enclausuramento numa determinada crença religiosa.  Pelo contrário, toda crença condiciona a mente. A crença gera antagonismo; e a mente que crê nunca pode estar tranqüila, a mente presa a um dogma nunca saberá o que é ser criador. Logo, nossos problemas só podem ser resolvidos quando compreendemos o processo da mente, que é a criadora dos problemas; e o criador só pode deixar de existir ao compreendermos a vida de relação. A vida de relação é a sociedade, e para promover uma revolução na sociedade, cumpre compreender as nossas reações na vida de relação. A renovação, esse estado criador, só pode realizar-se quando a mente está de todo tranqüila, quando não está encerrada em atividade ou crença alguma. Quando a mente está quieta, totalmente tranqüila, porque o pensar se findou, só então há criação.

Krishnamurti - 9 de  abril de 1950.




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