autoconhecimento
Só na morte há criação
Como é necessário morrer todos os dias, morrer a cada minuto para todas as coisas, para todos os dias passados e para o momento que acaba de escoar-se! Sem morte não há renovação, (…) não há criação. A carga do passado dá origem à continuidade do passado, e as apreensões de ontem dão mais vida às (…) de hoje. O dia de ontem perpetua o de hoje, e amanhã é ainda ontem. Não há libertação dessa continuidade, senão na morte. No morrer, encontra-se alegria. (1)
(…) Só no desconhecido há renovação; é no desconhecido que há criação e não na continuidade. Assim, precisam sondar o desconhecido, mas, para tanto, não podem ficar apegados à continuidade do conhecido; porque o “eu” e a constante repetição do “eu” recaem no campo do tempo, com suas lutas. (2)
Transportamos as nossas cargas de dia para dia, e não temos, nunca, um dia sem a sombra de muitos dias passados. Nossos dias são um movimento contínuo, em que o ontem se mistura com o hoje e o amanhã; nunca há um findar. Temos medo de findar, mas, se não há fim, como pode haver coisas novas? Se não há morte, como pode haver vida? (…) O fim do desejo é o novo. A morte é o novo, e a vida, como continuidade, é apenas memória, coisa vazia. Com o novo, a vida e a morte são uma só coisa. (3)
A mente que, graças à sua própria lucidez, nascida do autoconhecimento, descobriu o que é o amor, pode também perceber a natureza e a estrutura da morte. Se não morremos para o passado, (…) para o que veio de ontem, a nossa mente continua presa em suas ânsias, nas sombras de sua memória, em seu condicionamento e, portanto, não há claridade. O morrer para ontem, facilmente, voluntariamente, sem discussão, justificação, exige energia. (4)
Discussão, justificação e escolha constituem um desperdício de energia, e, por isso, não temos possibilidade de morrer para os muitos dias passados, para que nossa mente se torne vigorosa e nova. (…) Criação não é expressão pessoal, não é espalhar tintas sobre um pedaço de tela, nem escrever um (…) livro. Nada disso é criação. Só há criação ao existir o amor e a morte. A criação só pode vir com o morrer, dia a dia, para todas as coisas, de modo que nunca possa haver acumulação de lembranças, na forma de memória. (5)
Nossa dificuldade é de morrer para todas as coisas que acumulamos, as experiências de ontem. Considerando bem, isso é morte — o estar sempre na incerteza, na vulnerabilidade. O homem que vive na certeza nunca poderá conhecer o que é imortal, o que está fora do tempo. O homem de saber nunca pode conhecer a morte, que está fora do tempo, para além do conhecido. É somente quando morremos, momento a momento, para as coisas de ontem, (…) é só então que se apresenta o desconhecido, o novo. (6)
O que continua não pode renascer, não pode renovar-se; só pode ter continuidade. Só o que acaba pode renovar-se. Só há criação, quando há um fim. Mas temos medo de findar, temos medo de morrer. (…) Mas, por certo, só no morrer, em não acumular, encontra-se aquilo que está fora do tempo. (7)
Quando não mais sentirem temor - porque a todos os minutos há um fim e, portanto, uma renovação — estarão então abertos para o desconhecido. A morte também é o desconhecido. (…) O que tem realidade é o vermos a morte como é — como um fim; um fim no qual há renovação, renascimento; e não continuidade. Por que o que continua declina; e aquilo que tem o poder de renovar-se é eterno. (8)
Entretanto, se compreendermos a profundidade, a qualidade, e as várias modalidades de resistência existentes na mente (…) verão então que o problema do medo nem chega a nascer. A mente está então morrendo todos os dias, não está mais a acumular. E esse morrer para cada dia significa morrer para tudo o que se sabe, morrer para a experiência (…) Só então existe a possibilidade de nascimento de uma mente nova, uma mente criadora. (9)
Quando um homem deseja criar, deve perguntar a si mesmo e ver o que deseja criar: (…) Enquanto a mente está ativa, formulando, fabricado, inventando, criticando, não pode haver criação; e eu lhes asseguro que a criação vem silenciosamente, com extraordinária rapidez, sem compulsão, ao compreenderem a verdade de que a mente precisa estar vazia, para que se realize a criação. (10)
Neguem totalmente tudo o que até agora consideraram vida — suas experiências, sua ambição, avidez, inveja — e verão que nesse findar se encontra uma morte que é “criação atemporal” e que se pode chamar “Deus”, o “imensurável”, o “desconhecido”. (11)
Pode a mente morrer para todo o passado — suas memórias, anseios, vários condicionamentos, temores e qualidades “respeitáveis”? (…) Pode a mente inquieta, volúvel, essa mente que vagueia, (…) acumula, rejeita (…) pode essa mente findar instantaneamente e tornar-se silenciosa? (12)
(…) Se cada manhã vocês nascessem de novo, renovados, não com todas as lembranças de ontem, (…) todos os fardos, (…) incrustações do passado, então cada dia seria novo, fresco, simples e a capacidade de assim viver é a libertação do tempo. (13)
Estende-se o presente para o passado e para o futuro; sem compreendermos o presente, fica-nos fechada a porta para a compreensão do passado. (…) Morrer para todos os dias passados, viver cada dia renovadamente — tal só é possível se formos capazes de ficarmos passivamente vigilantes. Nessa vigilância passiva, nada se nos acrescenta; nela há uma tranqüilidade intensa, na qual se assiste ao desenrolar perene do novo, na qual o silêncio se estende infinitamente. (14)
Que é que impede essa constante renovação em nossa vida, (…) o novo de realizar-se? Não será porque não sabemos morrer cada dia? Porque vivemos em estado de continuidade, num constante processo de transportar de dia para dia as nossas memórias, nossos conhecimentos, nossas experiências, nossas tribulações, nossas penas e sofrimentos, nunca entramos num dia novo, sem a lembrança do anterior. (…) Positivamente, só é possível a renovação quando compreendemos, na sua inteireza, o processo do desejo de continuar; e só quando cessa tal continuidade como entidade, como “eu”, no pensamento. (15)
Afinal, nós somos um feixe de lembranças;(…) Somos resultado da identificação com determinado grupo — francês, holandês, alemão ou hindu. Sem essa identificação com um grupo, com uma casa, um piano, uma idéia ou uma pessoa, sentimo-nos perdidos; apegamo-nos, por isso, à memória, à identificação, e essa identificação dá-nos continuidade, e a continuidade impede a renovação. Positivamente, só há possibilidade de renovar-nos quando sabemos morrer e renascer dia a dia, isto é, quando estamos livres de toda identificação, que dá continuidade. (16)
A criação não é um estado de memória, é? Não é um estado em que a mente está ativa. A criação é um estado mental, do qual o pensamento está ausente; enquanto o pensamento funciona, não pode haver criação. O pensamento é contínuo, e para o que tem continuidade não pode haver criação, renovação; o que é contínuo só pode mover-se do conhecido para o conhecido, e, por conseguinte, nunca pode ser o desconhecido. (…) O findar do pensamento gera a criação, e nesta há renovação; mas, enquanto existir pensamento, não haverá renovação. (17)
O findar do pensamento é o começo da criação, (…) é o começo do silêncio; mas o findar do pensamento não pode dar-se pela compulsão, nem por nenhuma forma de disciplina, de constrangimento (…) A mente, num tal estado, deixa de existir; isto é, o pensar, como reação de um condicionamento, deixa de existir. Esse extinguir-se do pensamento é renovação, é o estado do novo, no qual a mente pode começar de maneira nova. (18)
Ora, pode o fim, que é a morte, ser conhecido enquanto vivemos? (…) É porque somos incapazes de experimentar o desconhecido, enquanto vivemos, que o tememos. Daí nossa luta para estabelecer uma relação entre nós, que somos o resultado do conhecido, e o desconhecido, a que chamamos morte. (…) E por que separamos as duas coisas? Não é porque a nossa mente só pode funcionar dentro do campo do conhecido, do contínuo? (19)
Ora, o que continua não tem renovação. Não pode haver nada novo, nada criador, naquilo que tem continuidade (…) Só quando termina a continuidade, torna-se possível aquilo que é sempre novo. Mas é esse findar que nos apavora, por não percebermos que só no findar pode haver renovação, criação, o desconhecido — e não no transportar de dia para dia nossas experiências, nossas lembranças e desventuras. É só quando morremos dia por dia para tudo o que é velho, que pode haver o novo. (20)
Ora, é possível, enquanto vivemos, morrer — o que significa terminar, ser qual nada? É possível, enquanto vivemos neste mundo (…) conhecer a morte? Isto é, será possível extinguir todas as lembranças (…) que acumulamos, armazenamos, e nas quais buscamos segurança, felicidade? É possível dar fim a tudo isso — o que significa morrer para cada dia, de modo que possa haver uma renovação amanhã? É só assim que conhecemos a morte, enquanto vivos. Só nesse morrer, nesse findar, nessa eliminação da continuidade, há renovação, há aquela criação, que é eterna. (21)
Se cada manhã nascessem de novo, renovados, não com todas as lembranças de ontem, com todos os fardos (…) do passado, então cada dia seria novo, fresco, simples e a capacidade de assim viver é a libertação do tempo. (22)
Morrer — por essa palavra se entende chegar ao fim (…) Em geral vivemos a pesada carga do conhecido, de ontem, das memórias, do “eu”, esse feixe das memórias ontem acumuladas (…) E, morrer cada dia, para todas as coisas que acumularam, psicologicamente, é renascer totalmente. (23)
Mas quando tiverem morrido para tudo, psicologicamente, quando tiverem alcançado esse ponto, verão que do morrer surge um viver (…) Esse viver é o estado de criação, e essa criação não conhece o tempo. É o imenso, o imensurável, o incognoscível. E só a mente que morreu para si própria e para todas as coisas conhecidas, conhecerá o Incognoscível. (24)
Agora, todavia, a morte não trouxe nada de novo (…) É a morte absoluta e final. E, então, nada existe, nem passado nem futuro. (…) Coisa alguma está nascendo. Contudo, não existe desespero ou busca; é a morte completa, livre do tempo; a morte que contempla do profundo vazio do nada. É a morte sem o velho e sem o novo. (…) A morte tudo apagou, sem nada deixar. (…) A morte é o nada absoluto. Ela deve estar presente, porque é dela que desabrocha a vida, o amor. A criação existe nesse vazio. Sem morte total, não há criação. (25)
Nós não sabemos o que é ser criador. Somos capazes de inventar (…) mas não pode haver criação quando não se compreende o amor. O amor, a morte e a criação andam “de mãos dadas”. (…) Mas quando o ódio, o ciúme, a inveja, a avidez, a ambição e o desejo de poder deixam de existir, porque se percebe a verdade no falso, então, desse percebimento nasce o amor. E o amor não pode existir se não houver a morte do “ontem” e do minuto passado — porque, nesse caso, ele é apenas continuidade do que foi. (26)
A morte não só é algo misterioso, senão que é um grande ato de purificação. O que continua dentro de um padrão repetitivo é degeneração. (…) Quando há uma cessação da continuidade, algo novo pode ocorrer. (27)
Quando se convida a morte, o que significa terminar com tudo aquilo a que o indivíduo se aferra, morrendo para isso cada minuto, então se descobre (…) que há um estado que pertence a uma dimensão atemporal, na qual o movimento que conhecemos como tempo não existe. Isso significa esvaziar o conteúdo da própria consciência de modo tal que não haja tempo; o tempo chega a seu fim, o que significa morte. (28)
Porque somos como os mortos, tememos a morte; os que vivem não a temem. Os mortos estão onerados do passado, da memória, do tempo, mas para os que vivem, o presente é eterno. O tempo não é um meio para se chegar a um fim — o Atemporal — porque o fim está no começo. O “ego” tece a rede do tempo e o pensamento é colhido por ela. A insuficiência do “ego”, a sua dolorosa vacuidade, causa o temor da morte e da vida. (…) Mortos que estamos, procuramos a vida — mas a vida não está na continuidade do “ego”. O “ego”, o criador do tempo, deve render-se ao atemporal. (29)
Vem a compreensão quando todo o nosso ser está em vigilância profunda e silenciosa. A vigilância silenciosa não se consegue nem pela compulsão nem pela persuasão; nessa tranqüilidade, a morte rende-se à criação. (30)
Na bem-aventurança do Real, não existe “experiente” nem “experiência”. Uma mente-coração sobrecarregada de lembranças do passado não pode viver no eterno presente. Deve a mente-coração morrer dia a dia, para que haja Eternidade. (31)
Morrão para suas experiências, suas lembranças. Morrão para seus preconceitos, agradáveis ou desagradáveis. Morrer assim é tornar-se incorruptível; tal estado não é de aniquilamento, porém de criação. É essa renovação que (…) dissolverá os nossos problemas (…) Só na morte do “ego” haverá vida. (32)
Devemos morrer dia a dia para todas as experiências e acumulações do dia (…) Temos de viver cada dia as quatro estações: a primavera, o verão, o outono e o inverno da passividade. (33)
Esse vazio que é força criadora, essa passividade ardente, não se consegue por ato de vontade. (…) Essa percepção silenciosa não é um ato de determinação, mas surge quando o pensamento-sentimento já não está preso na rede do vir-a-ser. (34)
Devemos ser capazes de viver as quatro estações num dia: ficar intensamente vigilantes, sentir, compreender e desfazer-nos das acumulações de cada dia. No fim de cada dia, deve a mente-coração esvaziar-se de todos os prazeres e dores acumulados no seu decorrer. (35)
Como é necessário morrer todos os dias, morrer a cada minuto para todas as coisas (…) Sem morte não há renovação, (…) criação. (…) Andamos carregados com a memória de ontem, que nos ensombra a existência. Enquanto a mente for a máquina automática da memória, não terá descanso, nem tranqüilidade, nem silêncio; estará a gastar-se continuamente. O que está quieto pode renascer, mas o que se acha em constante atividade se gasta e se torna inútil. A fonte perene se encontra no findar, e a morte está tão perto de nós como a vida. (36)
Krishnamurti, em:(1) Reflexões sobre a Vida, pág. 13
(2) A Arte da Libertação, pág.130
(3) Comentários sobre o Viver, pág. 215-216
(4) O Descobrimento do Amor, pág. 197
(5) O Descobrimento do Amor, pág. 197-198
(6) Por que não te Satisfaz a Vida?, pág. 84
(7) Por que não te Satisfaz a Vida? pág. 83
(8) Nós Somos o Problema, pág. 61
(9) As Ilusões da Mente, pág. 17
(10) A Arte da Libertação, pág. 177
(11) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 195
(12) Poder e Realização, pág. 83-84
(13) Palestras em Auckland, 1934, pág. 44
(14) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 169-170
(15) Viver sem Confusão, pág. 14
(16) Viver sem Confusão, pág. 14-15
(17) Viver sem Confusão, pág. 15
(18) Viver sem Confusão, pág. 15-16
(19) Viver sem Confusão, pág. 30
(20) Viver sem Confusão, pág. 31
(21) Viver sem Confusão, pág. 32
(22) Palestras em Auckland, 1934, pág. 44
(23) A Essência da Maturidade, pág. 36
(24) A Mutação Interior, pág. 166
(25) Diário de Krishnamurti, pág. 58-59
(26) Uma Nova Maneira de Agir, pág. 88
(27) La Totalidad de la Vida, pág. 152
(28) La Totalidad de la Vida, pág. 154
(29) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 173-174
(30) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 175
(31) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 169
(32) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 171
(33) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 86-87
(34) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 87
(35) O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 125
(36) Reflexões sobre a Vida, pág. 13-14
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