Sobre sonhos
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Sobre sonhos


O bosque dormia; o serpenteante atalho que o atravessava estava escuro e não se percebia o mais leve movimento. O prolongado crepúsculo estava desaparecendo nesses instantes, e o silêncio da noite cobria a terra. A pequena correnteza, tão por um fio em seu gotejar durante o dia, ia cedendo à quietude da noite que se aproximava. Através das pequenas aberturas entre as folhas se divisavam as estrelas, brilhantes e muito próximas. A escuridão da noite é tão necessária como a luz do dia. As acolhedoras árvores, recolhidas agora em si mesmas, se mostravam distantes; se encontravam aí, rodeando a ele, porém afastadas e inacessíveis; dormiam e não havia que molestá-las. Nesta quieta escuridão, havia um crescer e um florescer que reunia forças para se enfrentar à vibrante vitalidade do dia.

À noite e o dia são essenciais, ambos dão vida e energia a todas as coisas vivas. Só o homem a dissipa. O dormir é muito importante; um dormir sem demasiado sono nem agitação. Enquanto dormimos ocorrem muitas coisas, tanto no organismo físico como no cérebro (a mente é o cérebro); ambos é uma só coisa, um movimento único. Para esta estrutura total, o dormir é absolutamente essencial. Durante o sono advém a ordem, o ajuste das funções e se originam percepções mais profundas; quanto mais quieto está o cérebro, tanto mais profundo é o discernimento. O cérebro necessita segurança e ordem para funcionar harmoniosamente, sem atrito algum. A noite se encarrega disso, e durante o dormir tranqüilo há movimentos, há estados que o pensamento jamais poderá alcançar. Os sonhos são desordem; deformam a percepção total. Enquanto dorme a mente se rejuvenesce a si mesma.

Porém, ao se dizer que os sonhos são necessários, que se não sonhar se pode enlouquecer, afirma-se que ajudam e são reveladores. Estão os sonhos superficiais, que não tem muito significado, estão os sonhos significativos e também existe o estado sem sonhos em absoluto. Os sonhos são em suas diferentes formas e símbolos a expressão de nossa vida cotidiana. Se não há harmonia, se não há ordem em nossa vida cotidiana de relação, então os sonhos são uma continuação dessa desordem. Enquanto dormimos, o cérebro trata de produzir essa ordem a partir desta confusa contradição. Nesta luta constante entre a ordem e a desordem, o cérebro se desgasta. Porém, ele deve ter segurança e ordem para poder funcionar, e assim é como chegam a serem necessárias as crenças, as ideologias e demais conceitos neuróticos. Converter a noite em dia é um desses hábitos neuróticos. A insensatez que se desenvolve no mundo moderno depois do anoitecer, é um escape da rotina e o tédio do dia.

A total percepção da desordem na relação tanto privada como pública, pessoal ou distante, o dar-se conta, sem opção alguma, do ‘que é’ durante as horas conscientes do dia, produz ordem onde imperava a desordem. Então o cérebro não necessita buscar por ordem enquanto dormimos. Os sonhos são só superficiais, sem significação. A ordem na totalidade da consciência, não só no nível ‘consciente’, se produz quando cessa completamente a divisão entre o observador e o observado. Transcende-se ‘o que é’ quando o observador que é o passado, que é tempo chega a seu fim. O presente ativo, ‘o que é’, não se acha escravo do tempo, como é o observador.

Só quando a mente o cérebro e o organismo tem esta ordem total durante o sono, que há uma percepção profunda desse estado inexpressável em palavras, desse movimento intemporal. Isto não é nenhum sonho fantástico, alguma válvula de escape. É a meditação em sua expressão máxima e completa. Tanto faz se o cérebro está ativo, desperto ou dormido, porém o constante conflito entre a ordem e a desordem, desgasta ao cérebro. A ordem é a mais alta forma de virtude, sensibilidade, inteligência. Quando existe esta grande beleza da ordem, da harmonia, o cérebro não está incessantemente ativo; certas partes se encarregam da memória, porém essa é uma parte muito pequena; o resto do cérebro se acha livre do ruído da experiência. Dessa liberdade é a ordem, a harmonia do silêncio. Esta liberdade e o ruído da memória se movem juntos; a ação deste movimento é inteligência. A meditação consiste em estar livre do conhecido e, não obstante, operar no campo do conhecido. Não há um ‘eu’ como operador. Esta meditação se desenvolve tanto no sonho como na vigília.

O atalho saía lentamente do bosque e, de horizonte a horizonte, o céu se encontrava repleto de estrelas. Nos campos nada se movia.

Autor: Krishnamurti - 10 de Outubro de 1973




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