autoconhecimento
Um estado de ser que é revolução
Há um estado de ser, que é revolução; e há um estado de “vir a ser”, que é confusão. A norma habitual de quase todos nós é o “vir a ser” – tornarmo-nos coisa mais importante; alterar nosso método de ação, ajustando-o a determinado padrão de pensamento; seguir o líder; cultivar a virtude; passarmos da avidez à não-avidez; cultivar ou praticar certas maneiras de pensar. E tudo isso implica – não é verdade? – tudo isso implica num “vir a ser”, no qual nunca há transformação, jamais revolução. “Vir a ser” é meramente uma forma de continuidade; nele não há revolução nenhuma, nunca é possível a transformação. Apenas num
“estado de ser” são possíveis a revolução e a transformação. Ora,
“o que vem a ser” nunca pode compreender o
ser. Quando
“o que vem a ser”, observa o
ser, não há
ser.
Tende a bondade de seguir isto literalmente Acho muito importante compreender-se isto, visto nossas mentes estarem já muito habituadas a “vir a ser”, a acumular experiências para base de nossa conduta futura. Nosso pensar está baseado no conhecimento, na experiência, nos exemplos, na memória, — tudo isso compreendido no padrão da continuidade. Pode operar-se uma “modificação” da continuidade; jamais, porém, uma revolução, uma transformação.
“O que vem a ser” está sempre empenhado em transcender, ultrapassar a si mesmo. Sou resultado do tempo, da memória, da experiência, da escolha constante, da diferenciação; sou a continuação do passado, no tempo; minha mente, pelo seguir, rejeitar, aceitar, está toda encerrada no padrão, no campo do “vir a ser” não é verdade? Sou uma coisa hoje e quero ser outra coisa amanhã. A “projeção” – amanhã – é a continuidade de hoje. É a isso que a mente está habituada, a esse resultado de acumulação, da memória, não é verdade? Isto não é complicado. Observai vosso próprio pensar; observai as várias maneiras da vossa ação, dos vossos desejos; vereis que é exatamente assim. Estamos sempre empenhados em tornarmo-nos algo – o escriturário quer tornar-se gerente, o gerente, diretor, o político quer ser o líder mais excelente, etc., etc. Há continuamente esse “vir a ser” alguma coisa; e com ele esperamos promover uma revolução, uma transformação. Mas isso é impossível, pois aquilo que continua não pode nunca operar uma transformação em si mesmo.
Ora bem, com essa mentalidade, com essa mente, com o processo desse pensamento, observamos o ser — o deus verdadeiro, ou o que quiserdes, o qual desconhecemos. O que vem a ser está sempre especulando a respeito do ser; o que vem a ser está sempre observando o ser, procurando apreendê-lo, apoderar-se dele, ajustar-se a ele. Nessas condições, quando vós — o que vem a ser, o “eu” — quer apoderar-se do ser, não há esse ser. Visto que a minha mente se habituou a pensar em termos referentes ao tempo, visto ser minha mente produto do tempo, não sou capaz de pensar senão em termos de “vir a ser” ou “não vir a ser”. Assim, pois, no próprio processo ‘de “vir a ser” há conflito, e esperamos, através do conflito, chegar a um resultado. Assim é nossa vida. Queremos alcançar um resultado, um fim, e procedemos por várias maneiras para alcançá-lo — sempre por meio de esforço, de luta, complicações, escolha, desejando tal coisa, moldando e aceitando tal coisa, etc., etc. Tal é a nossa vida, não é exato? O “que vem a ser”, pois, está sempre tentando seguir uma linha de ação — o culto do herói, o cultivo da virtude, etc. Está sempre tentando apreender o estado que é o ser, o único estado em que é possível a revolução. É importante, assim me parece, compreendermos que, no “vir a ser” não pode haver alteração, transformação radical. Que devemos então fazer? Estais seguindo?
Desejo comunicar-vos uma coisa e tenho de empregar palavras. Ides traduzir estas palavras de acordo com o vosso condicionamento e, desse modo, interrompe-se a comunicação entre vós e mim. Desejo comunicar-vos uma coisa muito simples, que é: não há felicidade, não há transformação, não há revolução no “vir a ser”; só no ser existe a possibilidade de transformação fundamental e radical. Mas o que vem a ser nunca pode compreender o ser. Quando a que “vem a ser” observa o ser, o ser se torna estático, imóvel. Vemos, pois, que o que a mente escolhe está sempre compreendido nesse vir a ser, no desejar fazer alguma coisa. Percebeis o problema?
Como posso eu, que fui “condicionado”, (minha educação, minha criação, minha religião, todos os meus esforços são para vir a ser) como posso sustar o vir a ser? Não sei se já tendes refletido sobre este problema; agora, porém, que estou falando, como é que o vedes? Que sentis em presença dele? Todos os nossos compêndios, todas as nossas religiões, todos os gurus, todo o processo do pensamento, tudo isso está em relação com o vir a ser alguma coisa — temos de ser primeiro regionalistas, depois nacionalistas, depois cosmopolitas; primeiro sois criança, depois homem maduro, e, por fim, morreis; tendes de passar por esse processo evolutivo, para alcançardes a realidade suprema. Nossa mente está condicionada na maneira de pensar que o mundo pode ser transformado gradualmente, que não é possível criar-se instantaneamente um estado revolucionário; que isso tem de vir através de um “processo gradativo” de tempo; que todos devemos ser dedicados; que todos devemos ser educados de uma certa maneira; pensar numa certa maneira de ação, etc. Conhecemos muito bem esse processo de pensar. Devo dizer-vos que por esse caminho não há revolução, não há alteração, nenhuma possibilidade de transformação. E, no entanto, a transformação é essencial para que se possa produzir um mundo diferente.
Encontrais mendigos famintos na estrada, criancinhas ao relento. A criancinha precisa de carinhos, de alimento, de amor, e precisa da liberdade verdadeira e da educação que a faça sem medo. Ora, é possível transformar-se o mundo imediatamente, e não daqui a alguns séculos? Este problema não vos interessa também? Há crianças com fome, e nós inventamos uma teoria socialista, uma teoria comunista, a qual, no fim, dará alimento às criancinhas; e, enquanto isso, as criancinhas vão morrendo de fome. E durante a edificação do sistema surge um sem número de complicações, destruições, desgraças, extermínio, campos de concentração — e tudo isso representa o processo de “vir a ser”, não é verdade?
Deve, portanto haver uma solução diferente para este problema. Pode minha mente, que tão condicionada está no “vir a ser”, imobilizar-se e tornar-se capaz de receber aquele ser que não pode ser observado, não pode ser compreendido por aquele que vem a ser? Como posso eu, produto do tempo, da memória, que estou sempre “vindo a ser” alguma coisa, sempre a aceitar ou a recusar algo, positiva ou negativamente, como posso produzir em mim mesmo uma fundamental revolução de valores, de pensamento, de desejos, de todas as coisas, radicalmente, para que possa haver felicidade, não só em mim, mas também nas minhas relações com o mundo, com os meus semelhantes? Este problema não vos interessa também? E se ele é tanto vosso como meu, de que maneira agimos? Agimos em relação com o vir a ser ou em relação com o ser? Não há ser, se há vir a ser.
Como já disse anteriormente, tende a bondade de escutar. É muito importante escutar, para se compreender uma coisa que é verdadeira, porque esse próprio escutar do que é verdadeiro tem um efeito extraordinário na mente. Se sei escutar, se sou capaz de ver a beleza, sem interpretação, essa beleza tem sobre mim um efeito extraordinário. Se sou suficientemente sensível, tanto para ver a beleza como para ver a fealdade da vida, vê-las sem interpretar, vê-las simplesmente, isso tem um efeito extraordinário. De modo idêntico, se sei escutar uma coisa que é verdadeira, justa, sem traduzi-la e sem compará-la com o que já foi dito por algum instrutor, pelo Bhagavad-Gita ou por algum livro; se sei escutar sem tradução, esse escutar, então, essa receptividade à Verdade, tem um efeito extraordinário. Uma revolução inconsciente se está processando, quando sabemos escutar.
Escutai, pois isto: só pode haver revolução, quando há ser, do qual pode resultar a ação verdadeira. Enquanto, porém, a mente se encontra aprisionada no perene processo de vir a ser, não pode haver revolução, nem transformação, e não pode haver amor; apenas infelicidade, mais ódios, e maiores guerras. Que deve, pois, a mente fazer? Ela não pode passar ao outro estado. A mente que é, em si, o processo de vir a ser, não pode passar para o outro estado e assimilá-lo; ela não pode tornar-se o ser. Não pode buscar o ser. No momento em que ela está consciente do ser, está morto o ser; já não é o ser uma coisa vital, já não exulta, já não vive, já não age construtivamente. Que deve então fazer a mente, reconhecendo a sua impossibilidade de promover uma revolução em si mesma? Escutai só, não respondais a esta pergunta. Escutai.
É necessária ação; as guerras precisam acabar, e não deve haver mais miséria. Reconhecemos, é essencial que haja uma revolução, uma revolução fundamental, ampla, e não uma revolução parcial, limitada. Faz-se necessária uma revolução total. Pela investigação, percebe-se que a mente não pode operar uma tal revolução. O comunista, o socialista, ou a pessoa dita religiosa não pode realizar uma revolução que seja total; podem operar reformas parciais, mudanças parciais; tudo, porém, será apenas continuidade modificada. É necessária uma revolução total, para criarmos um mundo diferente, um mundo, não vosso, não meu, mas que seja de todos nós, juntos; e só pode verificar-se esta revolução quando há ser e não vir a ser. Assim, pois, todo e qualquer esforço que fizerdes para revolucionar o ser, constitui justamente uma negação da revolução. Isto é, se faço um esforço para compreender aquele “estado de ser”, em que há revolução radical, o ser se torna um estado morto. Assim, quando minha mente compreende essa coisa, inteiramente, ela, a mente, se torna muito tranqüila; não faz, então, mais esforço para ser ou não ser, segui bem isso, por favor. A mente se torna tranqüila, e compreende-se então, na sua totalidade, o processo do vir a ser.
A mente não pode chamar a si o ser. O ser apenas pode manifestar-se quando a mente está de todo tranqüila, quando não persegue alguma coisa, quando não busca um resultado, quando não quer tornar-se virtuosa. Porque, o “eu” é vir a ser, o “eu” é o que vem a ser; e enquanto existir “eu” não pode haver ser. O “eu” pode pôr vestes diferentes, de cores diversas, e pensar que se está modificando, que está produzindo revolução; mas, no centro, continua presente o “eu”, e ele não pode extinguir por meio de disciplina, de controle, de sacrifício, da observância de exemplos. O “eu” existe em virtude do próprio esforço que faz, para ser ou não ser. Continuai a escutar.
Toda vez que a mente faz um esforço, esse próprio esforço vai reforçar o “eu” — o “eu” que se identifica com o Estado, com o partido, com a virtude, com certo sistema de pensamento, com a religião, com qualquer coisa, enfim. Por conseguinte, não há, através desse processo, revolução nenhuma, não há transformação; há tão-somente mais desgraças, maior confusão, mais guerras, mais ódios. Quando reconheço isso, quando minha mente reconhece isso, há então tranqüilidade; há aquele silêncio tão essencial ao ser; e, só então, há uma possibilidade de revolução radical.
Krishnamurti – Autoconhecimento – Base da Sabedoria – 18 de fevereiro de 1953
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