A chama da paixão sem causa
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A chama da paixão sem causa


A menos que compreendamos a paixão, acho que não seremos capazes de compreender o sofrimento. A paixão é algo que muito poucos de nós realmente já experimentaram. Poderemos ter experimentado entusiasmo, que significa envolver-se completamente num estado emocional a respeito de alguma coisa. Nossa paixão é sempre POR alguma coisa: pela música, pela pintura, pela literatura, por uma país, por uma mulher ou um homem; é sempre o efeito de UMA causa. Quando você se apaixona por alguém sempre fica num estado de grande emoção, o qual é feito DAQUELA causa; e a paixão de que falo é PAIXÃO SEM CAUSA. É estar apaixonado POR TUDO, e não simplesmente por uma certa coisa; nós em geral nos apaixonamos POR uma certa pessoa ou coisa; e acho necessário perceber muito claramente esta distinção. 

No estado de "PAIXÃO SEM CAUSA" há uma intensidade livre de todo apego; mas, quando a paixão tem causa, há apego, e apego é o começo do sofrimento. Em geral, temos apego — a uma pessoa, um país, uma crença, uma ideia — e quando o objeto de nosso apego nos é retirado ou, ainda, quando perde o seu significado, nos vemos vazios, incompletos. Esse vazio nós procuramos preenchê-lo mediante apego a outra coisa, a qual por sua vez se torna o objeto de nossa paixão. 

Enquanto vou falando, tenha a bondade de examinar seu próprio coração, sua própria mente. Eu não sou mais do que um espelho no qual você está vendo a si mesmo. Se não deseja olhar, está perfeitamente certo; mas, se deseja olhar, então olhe-se claramente, "IMPIEDOSAMENTE", com intensidade — sem nenhuma esperança de dissolver suas angústias, suas ansiedades, seu sentimento de "culpa", porém, com o propósito de compreender essa extraordinária paixão que sempre leva ao sofrimento. 

Quando a paixão tem causa, torna-se luxúria. Quando há paixão POR alguma coisa — por uma pessoa, por uma ideia, por uma certa espécie de preenchimento — então, dessa paixão, resulta contradição, conflito, esforço. Você luta para alcançar ou para conservar um certo estado, ou para recuperar outro estado que existiu e se foi. Mas a paixão a que me refiro não dá nascimento à contradição, ao conflito. Não está em relação com nenhuma causa e, por conseguinte, NÃO É UM EFEITO. 

Deixe-me sugerir-lhe que ESCUTE, simplesmente; não tente alcançar esse estado de intensidade, essa PAIXÃO QUE NÃO TEM CAUSA. Se puder escutar atentamente, com aquela naturalidade que se verifica quando a atenção não é forçada por meio da disciplina, porém, nascida do simples impulso para compreender, penso que então descobrirá por si mesmo o que é paixão. 

Há, na maioria de nós, muito pouca paixão. Podemos ser lascivos, podemos estar ansiando por alguma coisa, desejando fugir de alguma coisa, e tudo isso nos confere uma certa intensidade. Mas, se não estamos despertos e não buscamos acesso a essa chama da "PAIXÃO SEM CAUSA", nunca seremos capazes de compreender aquilo que chamamos sofrimento. Para compreender uma coisa, precisamos de paixão, intensidade da atenção completa. Onde há paixão POR ALGUMA COISA, a qual produz contradição, conflito, não pode existir aquela chama pura da paixão; e aquela chama pura da paixão precisa existir, para que possamos colocar fim ao sofrimento, dissipá-lo completamente. 

Sabemos que o sofrimento é um resultado, o efeito de uma causa. Amo alguém e essa pessoa não me ama — esta é uma espécie de sofrimento. Desejo preencher-me num certo sentido, mas para tanto não possuo capacidade; ou, se tenho capacidade, o mau estado de saúde ou outro fator qualquer impede-me o preenchimento — eis outra forma de sofrimento. Há o sofrimento da mente medíocre, da mente que está sempre em conflito consigo mesma, incessantemente lutando, tateando, submetendo-se. Há o sofrimento ocasionado pelo conflito das relações, e o sofrimento motivado pela perda de alguém, por morte. Todos conhecem essas diferentes formas de sofrimento, e todas elas resultam de uma só causa. 

Ora, nós nunca enfrentamos o fato do sofrimento; sempre tratamos de racionalizá-lo, explicá-lo; ou temos um dogma, um padrão de crença que nos satisfaz, que nos dá momentâneo conforto. Alguns tomam uma certa droga, outros dão para beber ou rezar  — qualquer coisa que sirva para diminuir a intensidade, a agonia do sofrimento. O sofrimento é a perpétua luta para nos escaparmos dele — eis o fardo de todos nós. Nunca pensamos em terminar de todo o sofrimento, de modo que a mente nunca se veja nas sombras do desespero. Não encontrando possibilidade de terminar o sofrimento, passamos, se somos cristãos, a divinizá-lo, em nossas igrejas, simbolizado nas agonias do Cristo. E, se vamos à igreja para adorar o símbolo do sofrimento, ou se tentamos racionalizar o sofrimento ou esquecê-lo tomando uma bebida — TUDO É A MESMA COISA: ESTAMOS FUGINDO AO FATO DE QUE SOFREMOS. Não me refiro à dor física, que a ciência moderna pode debelar com relativa facilidade. Refiro-me ao sofrimento, à DOR PSICOLÓGICA, que impede a clareza, a beleza, que destrói o amor e a compaixão. É possível colocar fim a todo o sofrimento? 

Acho que o terminar do sofrimento depende da INTENSIDADE DA PAIXÃO. Só pode haver paixão, quando há total abandono do "eu". Nunca pode uma pessoa "apaixonar-se" se não houver a completa ausência disso que chamamos "PENSAMENTO". Como vimos outro dia, o que chamamos pensamento é a reação de vários padrões e experiências da memória, e onde existe essa reação condicionada, NÃO HÁ PAIXÃO, NÃO HÁ INTENSIDADE. Só pode haver intensidade com a completa ausência do "eu". 

(...) Nossa maneira de compreender ao sofrimento é uma reação. REAGIMOS, tentando explicar a causa do sofrimento, ou escapar ao sofrimento; mas nosso sofrimento não tem fim. Só termina o sofrimento quando o enfrentamos como FATO, quando compreendemos e transcendemos tanto a causa como o efeito. Procurar livrar-se do sofrimento pela prática de certos exercícios, ou pelo pensar deliberado, ou pelo recorrer a qualquer das várias modalidades de fuga ao sofrimento — por nenhuma dessas maneiras se desperta na mente a EXTRAORDINÁRIA BELEZA, A VITALIDADE, A INTENSIDADE DAQUELA PAIXÃO QUE ENVOLVE E TRANSCENDE O SOFRIMENTO. 

Que é sofrimento? Ao ouvir esta pergunta, como você reage? Sua mente trata de explicar imediatamente a causa do sofrimento, e essa busca de explicação desperta lembranças dos passados sofrimentos. Dessa maneira, você reverte sempre, verbalmente, ao passado ou salta para o futuro, num esforço para explicar a causa do efeito que chamamos sofrimento. Julgo, porém, que devemos ultrapassar tudo isso. 

Sabemos muito bem o que é a causa do sofrimento: pobreza, má saúde, frustração, não ser amado, etc. E, quando terminamos de explicar as várias causas do sofrimento, não colocamos fim ao sofrimento; não aprendemos realmente a extraordinária profundeza e significação do sofrimento, assim como, também, não compreendemos aquele estado que se chama AMOR. A meu ver, as duas coisas estão relacionadas entre si — o sofrimento e o amor. E, para compreendermos o que é o amor, precisamos SENTIR a imensidade do sofrimento.

(...) Terminar o sofrimento é enfrentar o fato de nossa própria solidão, de nosso apego, de nossas pequenas exigências de fama, nossa fome de ser amados; é estar livre do interesse egocêntrico e da puerilidade da autopiedade. E, depois de ter ultrapassado tudo isso e, talvez, de ter terminado o próprio sofrimento pessoal, resta ainda o imenso sofrer coletivo, o sofrer do mundo. Uma pessoa pode colocar fim ao seu próprio sofrimento, enfrentando em si própria o fato e a causa do sofrimento — e isso deve ocorrer à mente que deseja ser completamente livre. Mas, uma vez terminado tudo isso, há ainda o sofrimento que vem da extraordinária ignorância existente no mundo — a ignorância que não é falta de instrução, de conhecimentos tirados dos livros, porém, a ignorância que o homem tem de SI PRÓPRIO. A falta de COMPREENSÃO PRÓPRIA é a essência da ignorância, causadora do imenso sofrimento existente no mundo inteiro. E que é, em verdade, o sofrimento?

Não há palavras com que explicar o sofrimento, assim como não há palavras para explicar o que é o amor. O amor não é apego, o amor não é o oposto do ódio, o amor não é ciúme. E quando uma pessoa acabou com o ciúme, com a inveja, com o apego, com todos os conflitos e agonias que sofreu, PENSANDO AMAR — quando tudo isso terminou, resta ainda saber o que é o amor, resta ainda saber o que é o sofrimento. 

Só se pode descobrir o que é o amor e o que é o sofrimento quando a mente rejeitou TODAS AS EXPLICAÇÕES e já não está mais IMAGINANDO, já não está BUSCANDO a causa, já não está se entretendo com PALAVRAS ou rememorando prazeres e dores passados. A mente deve estar completamente quieta, sem uma só palavra, um único símbolo, uma única ideia. Descobrirá então — ou ele virá por si mesmo à existência — aquele ESTADO, no qual aquilo que chamávamos amor, aquilo que chamávamos sofrimento, aquilo que chamávamos morte, SÃO A MESMA COISA. Já não haverá divisão entre o amor, o sofrimento e a morte; e, não havendo divisão, haverá beleza. Mas, para compreendermos, para nos acharmos nesse estado de êxtase, necessita-se daquela paixão resultante do total abandono do "eu".

Jiddu Krishnamurti — O Homem e seus desejos em conflito    





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