autoconhecimento
A importância de se estar psicológicamente só
As religiões, em toda a parte, têm sempre encarecido o aperfeiçoamento pessoa, o cultivo da virtude, a aceitação da autoridade, a obediência a certos dogmas, crenças, a necessidade de fazermos um grande esforço de ajustamento aos padrões estabelecidos. Não só religiosamente, mas também politicamente, vemos esse constante impulso de aperfeiçoamento pessoal: “Devo tornar-me mais nobre, mais delicado, mais atencioso, menos violento”. A sociedade, com a ajuda da religião, criou uma civilização baseada no auto-aperfeiçoamento, no sentido mais amplo da palavra. É isto o que cada um de nós está tentando fazer, a todas as horas: estamos tentando melhorar a nós mesmos, o que implica esforço, disciplina, ajustamento, competição, aceitação da autoridade, senso de segurança, justificação da ambição. E o auto-aperfeiçoamento conduz, com efeito, a certos resultados óbvios: torna a pessoa mais sociável. Tem significação social, e nada mais, visto que o auto-aperfeiçoamento não pode revelar a Realidade fundamental. Acho muito importante compreender-se isto.
As religiões que temos não nos ajudam a compreender aquilo que é real, porquanto, essencialmente, estão elas baseadas, não no abandono do “eu”, mas no melhoramento. No aperfeiçoamento do “eu”, o que significa: continuidade do “eu”, sob formas diferentes. São pouquíssimos os que se libertam da sociedade, não das exterioridades sociais, mas de todas as influências de uma sociedade que está baseada na ambição, na inveja, na comparação, na competição. Esta sociedade condiciona a mente de acordo com certo padrão de pensamento, o padrão do auto-aperfeiçoamento, auto-ajustamento, auto-sacrifício, e só os que são capazes de libertar-se de todo condicionamento, só estes podem descobrir aquilo que não é mensurável pela mente.
Agora, que entendemos por esforço? Todos estamos a fazer um esforço, nosso padrão social está baseado no esforço de adquirir, de compreender mais, de ter mais conhecimentos para, com esse fundo de conhecimentos, agirmos. Há sempre um esforço de auto-melhoramento, auto-ajustamento, auto-correção, impulso para nos preenchermos, com todas as suas frustrações, temores e angústias. De acordo com esse padrão, que todos conhecemos e de que somos parte integrante, é uma coisa perfeitamente justificável ser ambicioso, competir, invejar, perseguir determinado resultado; e nossa sociedade, seja na América ou na Europa, seja na Índia, está essencialmente baseada em tal padrão.
Assim sendo, pode a sociedade, a civilização, em seu sentido mais amplo, ajudar o indivíduo a descobrir a verdade? Ou a sociedade é nociva ao homem, já que o impede de descobrir o que é a verdade? Indubitavelmente, a sociedade, tal como a conhecemos, está civilização em que estamos vivendo e funcionando, leva o homem a ajustar-se a um padrão determinado, a ser respeitável, e ela é o produto de muitas vontades. Nós criamos esta sociedade; ela não nasceu espontaneamente. E esta sociedade ajuda o indivíduo a achar o que é a Verdade ou Deus — ou o nome que quiserem, pois as palavras são sem importância — ou deve o indivíduo colocar totalmente de lado a cultura, os valores da sociedade, para descobrir a Verdade? O que não significa — e cumpre notá-lo claramente — que ele deve tornar-se anti-social, fazer o que bem entender. Pelo contrário.
A atual estrutura social baseia-se na inveja, no impulso aquisitivo, em que está implicada a conformidade aos padrões, a aceitação da autoridade, a perpétua realização da ambição — e tudo isso representa, essencialmente, o “eu”, o “ego”, a lutar para se tornar alguma coisa. É deste material que está feita a sociedade, e sua cultura — nos seus aspectos agradáveis e desagradáveis, belos e feios — todo o campo de empreendimentos sociais — sua cultura condiciona a mente. Vocês são o resultado da sociedade. Se tivessem nascido na Rússia e sido educados pelos seus métodos especiais, negariam a Deus, aceitariam certos padrões, tal como aqui aceitam outros padrões. Aqui, acreditam em Deus, e achariam horrível, se não acreditassem, pois nãos seriam pessoas respeitáveis.
A sociedade, pois, em toda parte, está condicionando o indivíduo, e esse condicionamento assume a forma de automelhoramento, que na realidade significa perpetuação do “eu”, do “ego”, sob diferentes formas. Esse melhoramento pode ser grosseiro, ou então muito requintado, quando se torna prática da virtude, da bondade, do chamado amor ao próximo; mas, essencialmente, ele representa a continuação do “eu”, que é produto das influências condicionadoras exercidas pela sociedade. Todos os esforços de vocês têm sido aplicados no sentido de se tornarem alguma coisa, neste mundo, se tiverem sorte, ou no “outro mundo”; mas o que lhes move é sempre a mesma ânsia, o mesmo impulso para manter a continuidade do “eu”.
Ao perceber-se tudo isso — e não é necessário que eu entre em todos os respectivos pormenores — é inevitável esta pergunta: a sociedade ou a cultura existe para ajudar o homem a descobrir isso que se pode chamar a Verdade, Deus? O que importa verdadeiramente é que descubramos, que experimentemos diretamente algo que se acha muito além da mente, e não, apenas, que tenhamos uma crença, pois isso não tem importância nenhuma. E as chamadas religiões, o seguir vários instrutores e disciplinas, o pertencer a seitas, cultos, pode qualquer dessas coisas ajudar-lhes a encontrar aquela bem-aventurança eterna, aquela realidade eterna?
(...) Ora, se desejamos descobrir o que é a verdade, devemos estar totalmente livres de todas as religiões, de todos os condicionamentos, dogmas, crenças, de toda autoridade que nos força a ajustar-nos a padrões; e isso significa, essencialmente, “estar completamente só” — coisa muito difícil, que não é um simples entretenimento para uma manhã de domingo, para um deleitável passeio de carro e um refrescante descanso debaixo das árvores, ouvindo coisas sem sentido. O descobrimento da Verdade requer uma dose imensa de paciência, de serenidade, de incerteza. O mero estudo dos livros não tem valor algum; mas se, enquanto estão escutando puderem se manter completamente atentos, verão que essa atenção lhes libertará de todo o esforço, de modo que, sem nenhum movimento em qualquer direção, a mente será capaz de receber algo extraordinariamente belo e criador, algo que não pode ser medido pelo saber, pelo passado. Só uma pessoa assim é verdadeiramente religiosa e revolucionária, porque já não faz parte da sociedade. Enquanto o indivíduo for ambicioso, invejoso, ganancioso, competidor, ele É a sociedade. Com uma mentalidade dessas, de que é dificílimo nos libertarmos, esse indivíduo busca Deus, e essa busca não tem significação alguma, já que não passa de um novo esforço que ele faz, para se tornar algo, para ganhar algo. Eis porque é de grande importância compreendermos as nossas relações com a sociedade, estarmos cônscios de todas as crenças, dogmas, doutrinas e superstições que adquirimos, e deitarmos fora tudo isso — não por meio de esforço, porque nesse caso nos veremos de novo apanhados na mesma rede, mas percebendo essas coisas no seu exato significado e soltando-as de nós, tal como as folhas do outono, que murcham e são levadas pelo vento, deixando a árvore inteiramente nua. Só quando se acha neste estado, completamente nua, a mente pode receber algo portador de uma felicidade imensa para nossa vida.
Jiddu Krishnamurti — Realização sem esforço
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