autoconhecimento
A relação é o espelho que nos permite ver a nós mesmos
Estamos mantendo uma conversa, como dois amigos que estão passeando por um caminho arborizado com abundancia de sombras e cantos de pássaros, e agora estão sentados juntos e conversam sobre todo problema da existência, que é muito complexo. Não estamos nos convencendo mutuamente a respeito de algum tema, não tratamos de persuadir nem de sobrepor-nos um ao outro mediante argumentos ou apegando-nos dogmaticamente às próprias opiniões e preconceitos; mas vamos olhar juntos ao mundo tal como ele é, e também olharemos o mundo que existe dentro de nós.
Muitos volumes tem sido escrito a respeito do mundo exterior e o meio ambiente, a sociedade, a política, a economia e muito mais, porém pouquíssimos tem chegado ao extremo de descobrir o que realmente somos, ou seja, descobrir por que os seres humanos se comportam do modo como fazem, matando-se uns aos outros, constantemente angustiados, seguindo alguma pessoa, alguma autoridade, algum livro, algum ideal, sem ter uma verdadeira relação com seus amigos, suas esposas, seus maridos e seus filhos; descobrir por que os seres humanos, depois de tantos milênios, tem chegado a ser tão vulgares, tão cruéis, tão completamente desprovidos de afeto, de consideração, de atenção perante os outros, negando todo o processo do que consideram que é o amor.
Exteriormente, o homem tem vivido em meio de guerras durante milhares e milhares de anos. Agora estamos tratando de deter a guerra nuclear, porém, jamais deteremos as guerras. Não tem havido em nenhuma parte do mundo manifestações publicas para colocar fim as guerras, senão que há manifestações contra determinadas guerras, e estas guerras tem continuado; as pessoas são exploradas, oprimidas, e o opressor se converte em oprimido. Este é o ciclo da existência humana com sua dor, sua solidão, sua grande sensação de desalento, sua ansiedade crescente, sua total falta de segurança. Não temos relação com a sociedade nem com nossos seres mais íntimos, uma relação sem disputas, sem conflitos, sem rinhas, sem angústias e tudo isto. Este é o mundo em que vivemos e ao que, estou seguro, vocês conhecem muito bem.
Como dissemos ontem, devemos olhar as atividades do pensamento, porque vivemos a base de pensamentos. Todas as nossas ações se baseiam no pensamento, todos os nossos esforços deliberados tem por base o pensamento: nossas meditações, nossos cultos, nossas orações. O pensamento tem produzido a divisão das nacionalidades que dão origem as guerras, a divisão das religiões, como a judia, a árabe, a muçulmana, a cristã, a hindu, a budista, etc. O pensamento tem dividido o mundo não somente geograficamente, senão também no psicológico, no interno. O homem está fragmentado, dividido não só no nível psicológico mecânico de sua existência, senão também em suas ocupações. Se você é um professor, tem seu próprio pequeno circulo e vive dentro desse circulo. Se é um homem de negócios, se ocupa de fazer dinheiro, se é um político, vive dentro dessa área. E se é uma pessoa religiosa no sentido aceito da palavra, com a prática de diversas formas de rituais, meditações, com a veneração de algum ídolo e coisa assim, então também vive uma vida fragmentada. Cada fragmento tem sua própria energia, sua própria capacidade, sua própria disciplina, e cada curso de ação julga um papel extraordinário em contradição com outro curso. Vocês devem conhecer tudo isto. Esta divisão, tanto externamente, geograficamente, como no religioso, no nacional e na relação que existe entre você mesmo e outro ser humano, é um desperdício enorme de energia. É um conflito que dissipa nossa energia nas disputas, dividindo-nos, fazendo que cada qual persiga o seu, suas próprias aspirações, que exija sua própria segurança pessoal, etc. Toda ação necessita de energia, todo pensar necessita energia. Esta energia que se fragmenta de um modo constante, implica num desgaste energético. Quando uma energia contradiz outra, quando uma ação contradiz ação , dizer uma coisa e fazer outra, o qual é, obviamente, uma aceitação hipócrita da vida, há desperdício de energia. Todas essas atividades devem, por força, condicionar a mente, o cérebro. Estamos condicionados a ser hindus, budistas, muçulmanos, cristão, com todas as superstições e crenças que isso implica. Estamos condicionados, a respeito disso não cabe nenhuma duvida. Não podemos argumentar que não estamos condicionados: o estamos, religiosamente, politicamente, geograficamente. Até que não estejamos livres do condicionamento, livres das atividades do pensar que cria grandes problemas, esses problemas não poderão ser resolvidos. Necessita-se de um instrumento novo para resolver os problemas humanos. A medida que avançamos vamos conversar sobre isso, porém não lhe corresponde a quem lhes fala, dizer qual é a nova qualidade desse instrumento; cada um tem que descobri-lo por si mesmo. Por isso que devemos pensar juntos, de ser possível. Isso requer que vocês e quem lhes fala sintamos, averiguemos, examinemos, questionemos, coloquemos em dúvida todas estas coisas que o homem tem produzido, todas as coisas que temos criado como barreiras entre uns e outros. Como seres humanos que vivemos nesta formosa terra que é lentamente destruída, que é nossa terra, não a terra inglesa, não a terra norte-americana, temos que viver inteligentemente, ditosamente; porem, pelo que parece, isso não é possível porque estamos condicionados. Este condicionamento é como o de um computador: estamos programados. Programados para ser hindus, muçulmanos, cristãos, católicos, protestantes. O mundo cristão tem sido programado durante mil anos, e o cérebro tem se condicionado, por causa desse programa, como um computador. Assim, nossos cérebros estão condicionados, e nos perguntamos se de algum modo é possível livrar-se desse condicionamento. A menos que estejamos total, completamente livres dessa limitação, não tem sentido o mero inquirir ou averiguar em que consiste esse novo instrumento que não é o pensar.
Em primeiro lugar, você deve começar muito próximo para ir muito longe. Nós queremos chegar muito longe sem dar o primeiro passo, e quem sabe o primeiro passo seja o último passo. Estamos nos compreendendo um ao outro, estamos nos comunicando ou estou falando só para mim mesmo? Se estou falando para mim mesmo, posso fazê-lo em minha própria casa. Porém, se estamos falando, se estamos sustentando uma conversação, essa conversação tem um significado quando ambos nos encontramos no mesmo nível, com a mesma intensidade e ao mesmo tempo. Isso é amor. Essa é a verdadeira e profunda amizade. Para mim, está não é uma conferencia no sentido usado da palavra. Juntos tratamos de examinar e resolver os problemas humanos. Isso requer muitíssima investigação, porque os problemas humanos são muito, muito complexos. Você deve possuir a qualidade da paciência, a qual não pertence ao tempo. Todos estamos impacientes por progredir: “Diga-me rapidamente isto ou aquilo”, porem se tem paciência, ou seja, se não estão tratando de obter algo, de alcançar algum fim, alguma meta, então investigam passo a passo.
Como dizíamos, estamos programados. Nosso cérebro é um processo mecânico. Nosso pensamento é um processo de caráter material, e esse pensamento tem sido condicionado para pensar como budista, hindu, cristão e assim sucessivamente. De modo que nosso cérebro está condicionado. É possível liberar-se desse condicionamento? Estão os que dizem que isso não é possível, porque perguntam: Como pode ser que um cérebro, que tem sido condicionado durante tantos séculos e séculos, esse condicionamento seja eliminado de maneira tão completa que o cérebro humano seja prístino, original, e esteja dotado de uma capacidade infinita? Muitas pessoas afirmam isto e se satisfazem com a mera modificação do condicionamento. Porém, dizemos que este condicionamento pode ser examinado, observado e que é possível se libertar completamente dele. Para descobrir por nós mesmos se isso é possível ou não, devemos investigar nossa relação.
A relação é o espelho em que vemos a nós mesmos tal como somos. Toda vida é um movimento em relação. Não existe nada vivente sobre a Terra que não esteja relacionada com uma outra coisa. Mesmo o ermitão, um homem que anda solitário, segue em relação com o passado e com aqueles que lhe rodeiam. Não é possível escapar da relação. Nessa relação, que é o espelho que nos permite ver a nós mesmos, podemos descobrir o que somos, nossas reações, nossos preconceitos e temores, as depressões e ansiedades, a solidão, a dor, a autopiedade, a angústia. Também podemos descobrir se amamos ou se não há tal coisa como o amor. Portanto, examinemos este problema da relação, porque a relação é a base do amor. É a única coisa que agora temos entre nós. Se você não pode descobrir a verdadeira relação, se vive sua própria e estreita vida particular, aparte de sua esposa, se deu marido, etc., essa existência isolada produz sua própria destruição.
A relação é a coisa mais extraordinariamente importante que há na vida. Se não compreendemos essa relação, não poderemos criar uma nova sociedade. Vamos investigar muito detidamente o que é a relação, por que os seres humanos, durante toda sua larga existência como tal, jamais tem tido uma relação sem o sentimento possessivo, sem opressão, sem apego, contradição, etc. Por que existe sempre esta divisão: homem e mulher, nós e eles? Vamos examinar juntos. Este exame pode ser intelectual, ou seja, meramente verbal, porém, tal compreensão intelectual não possui nenhum valor. É tão somente uma ideia, um conceito; porem se podemos considerar nossa relação como algo total, então, talvez possamos ver a profundidade, a beleza, e a qualidade da relação. De acordo, senhores? Podemos prosseguir? Nos perguntamos qual é, de fato, a relação que agora temos um com o outro, não a relação teórica, romântica ou idealista, todas irreais, senão a factual, a relação cotidiana que tem entre si o homem e a mulher. Estão absolutamente relacionados? Existe a relação biológica; essa relação é sexual, prazerosa. É possessão, apego, diversas formas de mutua posse violenta.
Que é o apego? Por que temos uma necessidade tão tremenda de apego? Que implica o apego? Por que nos apegamos? Quando estamos apegados a qualquer coisa, sempre há medo, medo de perder aquilo a que se apega. Há sempre o sentimento de insegurança. Por favor, observem-no em si mesmos. Sempre existe um sentido de separação. Estou apegado a minha esposa. Me apego a ela porque me dá prazer sexual, o prazer de sua companhia. Vocês conhecem tudo isso sem que eu o diga. Estou, pois, apegado a ela, o que quer dizer que estou ciumento, atemorizado. Onde há ciúmes, há ódio. E o amor é apego? Esse é um aspecto a ser observado em nossa relação.
Então, em nossa relação cada um tem criado, através dos anos, uma imagem com respeito ao outro. Essas imagens que ele e ela tem criado, constituem a relação. Podem dormir juntos, porém, o fato é que cada um tem uma imagem um do outro, e nessa relação entre imagens, como pode haver uma relação verdadeira, factual com o outro? Todos, desde a infância, temos formado imagens a respeito de nós mesmos e dos demais. Esta pergunta que nos formulamos é muito, muito seria: podemos viver sem uma só imagem em nossa relação? Por certo, todos vocês tem uma imagem de quem lhes fala, não é assim? Obviamente, a tem. Por que? Vocês não o conhecem, de fato não o conhecem. Ele se senta em um estrado e fala, porem, vocês não se relacionam com ele, porque tem a seu respeito uma imagem. Tem criado uma imagem dele e tem suas próprias imagens pessoais a respeito de si mesmos. Tem inumeráveis imagens dos políticos, dos homens de negócios, do guru, disto e daquilo. Pode-se viver profundamente sem uma só imagem? A imagem pode ser uma conclusão a respeito de nossa esposa, uma representação mental, uma imagem sexual; pode ser a imagem de um vinculo melhor e assim sucessivamente. Por que os seres humanos temos imagens em absoluto? Por favor, formulem-se esta pergunta. Quando tem uma imagem um do outro, essa imagem lhes transmite uma sensação de segurança.
O amor não é pensamento. O amor não é desejo, não é prazer, não é o movimento de imagens; e enquanto se tenha imagens do outro, não há amor. E nos perguntamos: é possível viver uma vida sem uma só imagem? Então estão relacionados um com o outro. Tal como ocorre hoje em dia, é igual como se fossem duas linhas paralelas que jamais se encontram, exceto sexualmente. Um homem vai a oficina, é ambicioso, ávido, invejoso, procura alcançar uma posição no mundo dos negócios, no mundo religioso, no profissional; e a mulher moderna também vai a oficina, e ambos se encontram no lar para fazerem filhos. E surge todo o problema da responsabilidade, o problema da educação, da total indiferença. Não importa a vocês o que depois possam ser os seus filhos, o que possa acontecer-lhes. Querem que sejam como vocês: um casamento seguro, uma casa, um bom emprego, etc. Correto? Esta é nossa vida, nossa vida cotidiana, e é realmente uma vida deplorável. Por conseguinte, si se perguntam por que os seres humanos vivem a base de imagens – todos os seus deuses são imagens, o deus cristão, o deus muçulmano, o deus de vocês -, verão que estas são criadas pelo pensamento, e o pensamento é inseguro, temeroso. Não há segurança nas coisas produzidas pelo pensamento. É possível, então, nos libertar-nos de nosso condicionamento na relação? Ou seja, observar atenta, minuciosa e persistentemente, no espelho da relação, quais são nossas reações, se são mecânicas, se são produto do hábito, da tradição. Nesse espelho descobrimos realmente o que somos. Em conseqüência, a relação é extraordinariamente importante.
Temos que investigar o que é observar. Como observam, no espelho da relação, o que são realmente? Que significa observar? Esta é, em verdade, outra coisa importante que temos de descobrir. Que significa olhar? Quando olhamos uma árvore, que é a cosia mais bela, mais elegante que há sobre a Terra, como a olham? A olharam alguma vez, olharam alguma vez a Lua Nova, o encontro da Lua Nova, tão delicada, tão pura, tão jovem? Alguma vez a olharam? Podem olhá-la sem usar a plavra “lua”? Tudo isto, lhes interessa realmente? Continuarei, como um rio que prossegue seu curso. Vocês estão sentados na orla do rio e o contemplam, porém, jamais chegam a ser o rio, por que nunca participam do rio, nunca se unem a beleza do movimento que não tem principio nem fim. Assim que, por favor, considerem o que é observar.
Quando observam uma árvore, ou a Lua, algo exterior a vocês, sempre usam a palavra “arvore”, “Lua”. Podem olhar a Lua, a árvore, sem nomeá-los, sem o conteúdo da palavra, sem identificar a palavra com a árvore, com a coisa? Agora bem, podem olhar a esposa, o marido, os filhos, sem as palavras, que os identificam, sem as imagens? Já o tentaram alguma vez? Quando observam sem uma palavra, sem um nome, sem a forma que tem criado a respeito dele ou dela, nessa observação não há um centro do qual estejam observando. Descubram o que ocorre então. A palavra é pensamento. O pensamento, se origina na memória. Temos, pois, a memória, a palavra, o pensamento, a imagem que interfere entre si mesmo e o outro. Correto? Porém não há pensamento que olhe, que observe, pensamaento no sentido de palavra, de conteúdo e significado da palavra. Então, nessa observação não há um centro como o “eu” que olha o “tu”. Só assim há uma verdadeira relação com o outro. Nela existe qualidade de aprender, uma qualidade de incontestável sensibilidade e beleza.
Jiddu Krishnamurti - A mente que não mede
Madrás, Índia, 26 de dezembro de 1982
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