Compreendendo a anatomia da fundamental transformação interior
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Compreendendo a anatomia da fundamental transformação interior


Para a maioria de nós, se já temos refletido nestes assuntos, a idéia de transformação deve ser um tanto confusa; porque já vimos que as chamadas revoluções, embora tenham produzido certos efeitos externos, talvez benéficos, se tornaram, afinal, profundamente prejudiciais ao homem. É bem de ver que a transformação fundamental deve ser algo mais do que simples mudança de uma estreita esfera de pensamento para outra. Com as coisas correndo como estão, no mundo, pode-se perceber a necessidade de mudança radical de alguma espécie, não só nos níveis econômico e social, mas também profundamente, no íntimo de cada um de nós; e para os que pensam verdadeiramente, a sério nestas questões, o problema deve ser o de como produzir a transformação. A transformação operada mediante compulsão, em qualquer forma, não é, obviamente, transformação nenhuma. Se sou forçado ou influenciado a transformar-me, isso não é uma verdadeira transformação, porquanto estou apenas me ajustando a um padrão que me foi imposto de fora ou que eu próprio estabeleci. Tampouco a transformação consiste em adaptar-se a pessoa a um certo ambiente, pois isso é apenas ajustar-se a um modelo que se julga será benéfico ou um melhor método de vida.

Ora, se se percebe que o ajustamento, o conformismo, ou qualquer espécie de mudança operada pela compulsão o por determinada influência não é mudança nenhuma, como então promover a mudança? A transformação fundamental é evidentemente essencial, não só neste país mas no mundo inteiro; e como pode iniciar-se essa transformação não resultante de compulsão, conformismo ou ajustamento?

Pensamos em geral que o ajustamento, a adaptação, ou o sermos obrigados a agir num certo sentido, é um processo de transformação, e nunca tivemos dúvidas sobre se isso é realmente uma transformação revolucionária. Eu não acho que seja; porque, se observardes a vós mesmos quando vos estais adaptando, ajustando, quando vos deixais influenciar ou compelir, vereis que apenas vos encaixais num padrão de pensamento, antigo ou moderno, e que vossa essência íntima em nada mudou.

Portanto, o problema é: como podemos mudar radicalmente, essencialmente? Não sei se já tendes pensado bem nisso, pois em geral permitimos de bom grado que nos ajustem a um padrão; pensamos ser suficiente produzir uma transformação parcial no mundo, e com isso nos satisfazemos. Mas, se examinardes a questão com profundeza, tereis então de interrogar-vos como será possível transformar a totalidade de nosso ser, de nossa consciência, como se poderá operar uma revolução completa no pensar e na apreciação dos valores. Porque, evidentemente, só essa transformação revolucionária, profunda, interior, no âmago de nosso ser, pode efetivamente libertar a força criadora da realidade e criar um mundo de todo diferente. Se não houver essa fundamental transformação interior, o mero ajustamento externo, a aquisição de mais alguns conhecimentos, o estabelecimento de mais algumas reformas, etc., é realmente uma coisa muito superficial. É como vestir uma capa nova, enquanto por baixo continuam existentes as mesmas condições antigas. Assim, se a questão deveras vos interessa, como pode uma pessoa mudar inteiramente?

Permiti-me sugerir-vos escutardes o que estou dizendo sem emitir julgamento, sem dizer que é impossível. Por favor, não traduzais o que se está dizendo nos termos dos vossos próprios conhecimentos, nem o escuteis em atitude defensiva, comparando-o com o que outros vos disseram ou com o que lestes nos livros sagrados — que não são mais sagrados do que outro livro qualquer. Escutar é uma tarefa bem difícil; em geral, nunca prestamos ouvidos senão à voz de nosso próprio pensar, de modo que, na realidade, nada nos é comunicado. Escutar com julgamento, comparando o que se ouve com o que já se sabe ou leu, é uma forma de distração. Mas, se sois capaz de escutar sem comparação, com atenção natural, então o próprio ato de escutar é um ato de meditação que, indubitavelmente, gera profunda transformação. Tentai de quando em quando observar-vos, para ver se escutais realmente alguma coisa, o que vossos amigos dizem, o que diz vosso marido ou esposa, o que diz vosso patrão — e vereis que vossa mente está sempre totalmente ausente. Simulais estar escutando, mas só escutais pela metade; ou tendes medo, ou estais enfadado, ou simplesmente não desejais escutar e, portanto, não há comunicação direta. Como disse, o escutar, por si só, opera um extraordinário milagre. O próprio ato de escutar produz uma compreensão imensa, sem esforço algum de vossa parte; e, uma vez que vos achais aqui e eu vos estou falando, desejo sugerir, se permitis, que escuteis para descobrir o que estou tentando transmitir-vos.

A meu ver, uma transformação fundamental — não um "ressurgimento religioso" mas uma revolução religiosa —precisa ser efetuada, porquanto, sem ela, os nossos problemas se multiplicarão; embora tenhamos geladeiras e outras coisas mais, ir-nos-emos tornando cada vez mais superficiais e teremos tribulações maiores ainda. E para se operar essa transformação profunda, no íntimo de nosso ser, não há dúvida de que temos de investigar o problema da consciência e compreender a anatomia da transformação.   A maioria de nós procura transforma-se mediante esforço, não é verdade? Isto é, vemos que somos cruéis e dizemos: "Preciso transformar-me"; e, assim, empenhamo-nos em nos transformar, tentamos forçar-nos, pela disciplina, a não ser cruéis. Ora, examinemos o impulso que nos leva a desejar modificar-nos, porque, se não compreendemos esse impulso, se não compreendemos totalmente esse processo de consciência que diz: "Preciso modificar-me", não é possível nenhuma transformação básica, ainda que haja ajustamentos superficiais.

Por favor, não escuteis o que estou dizendo comparando-o com o que lestes acerca da consciência no Bagavagita ou noutro livro qualquer, porque o que estamos tentando fazer não é comunicar idéias, porém, antes, experimentar diretamente o que estamos escutando. A menos que experimentemos o que estamos escutando, estas palestras nenhum valor terão; serão apenas mais um conjunto de idéias, um processo de "mentalização", o qual, por mais interessante que pareça, nenhuma significação terá. Mas se, ao contrário, vós e eu estivermos realmente escutando o que se está dizendo — vós aí sentados e eu aqui a falar-vos —, se, através da descrição verbal, cada um de nós está observando o funcionamento de sua própria mente, então acho que estas palestras serão realmente úteis.

Estamos, pois, tentando descobrir como poderemos transformar-nos, não apenas superficialmente, mas no âmago de nosso ser, e isto significa que temos de investigar a questão da consciência. Quando pergunto a mim mesmo o que é a consciência, existe um interrogante separado da pergunta, não é verdade? Existe a entidade que fez a pergunta e está aguardando a resposta; e esse "processo" é o começo da consciência, não é? O interrogante diz: "Preciso saber como funciona a consciência" — e começa então a investigar; e tanto a investigação como a resposta dependem de como ele fez a pergunta.

Por outras palavras: Eu desejo saber o que é a consciência, e não se trata de uma pergunta vã ou simplesmente curiosa. Pergunto a mim mesmo o que é a consciência, porque vejo que preciso transformar-me fundamentalmente, que a totalidade de meu ser precisa passar por uma transformação completa. Ora, essa transformação revolucionária se efetua por meio de uma série de esforços por parte daquele que diz: "Preciso transformar-me"? Deve ele desenvolver a necessária qualidade de vontade, e transformar-se de acordo com essa vontade? Compreendeis?
Estou-me interrogando e espero estejais também perguntando a vós mesmos o que é esta consciência, este "eu" que diz "Preciso transformar-me". Qual a impulsão, a ação, a força do inquiridor que tenta modificar-se? Esse processo acha-se na esfera da consciência, na esfera do pensar, não é verdade? Estais seguindo? Isso não é muito complexo, porém, bem simples.

Quando desejo modificar-me, já tenho o modelo ou a idéia segundo a qual devo modificar-me. Isto é verdade, não? Ora, isso é realmente transformação ou é tão só um movimento do "conhecido" para outro "conhecido"? Compreendeis? Porque sou cruel, digo que devo ser bondoso. O "processo" de esforçar-me para ser bondoso é um movimento no sentido de uma coisa já conhecida; e isso é realmente transformação? Há transformação se me movimento para algo que conheço? Ora, por certo, só há transformação se a mente se move para o desconhecido. Quando ela persegue aquilo que já experimentou, seu movimento é meramente uma continuação do conhecido em forma modificada e, por conseguinte, não é transformação nenhuma.

Suponhamos que, sendo violento, tenho o ideal de "não-violência". O ideal já é conhecido. Imaginei o que não é ser violento e, portanto, o ideal nasceu de meu atual estado de violência, e quando me modifico no sentido desse ideal, estou-me movendo dentro da esfera do conhecido; por coseguinte, isso não é transformação. Esse é o "processo" inteiro da consciência, não? Senhores, não concordeis comigo, pois tendes de pensar nisso de maneira completa, senti-lo integralmente.

Forcejo para transformar-me em conformidade com o que chamo o ideal e que é o oposto daquilo que experimentei como "violência"; consequentemente, criei um conflito entre o que é  e o que deveria ser, e considero esse conflito necessário para se produzir a modificação. Tudo isso é "processo" da consciência, não? Quer consciente, quer inconsciente, esse "processo" é a consciência. Se vós mesmos o virdes claramente, descobrireis algo extraordinário.

Estou, pois, perguntando a mim próprio se há transformação ao esforçar-me para transformar-me. Quando me esforço para transformar-me, há transformação ou apenas o ajustamento a um padrão estabelecido por mim mesmo ou por algum agente externo? Isto é, qualquer espécie de transformação baseada na tradição ou na autoridade não é transformação nenhuma, porque então nos estamos apenas ajustando a uma idéia, e todas as idéias fazem parte do "conhecido", resultam do fundo (background) que as "projeta". Assim, qualquer mudança operada por meio do esforço em direção àquilo que chamamos "ideal" — que é o "conhecido" — não é transformação nenhuma. Quando se persegue o ideal da "não violência", por exemplo, deseja-se alcançar um certo estado por meio de compulsão, ajustamento a padrão — e isso é outra forma de violência.

A consciência é esse movimento do conhecido para o desconhecido, movimento de compulsão, de esforço. Ao dizer o comunista: "Eu tenho o correto padrão da existência", esse padrão origina-se daquilo que ele já conhece. Ele cria uma utopia consoante com seu conhecimento e interpretação da história e, se é um homem importante, leva a cabo o seu plano, enquanto nós, a massa do povo, nos submetemos. É isso o que tem acontecido, numa ou noutra forma, em todas as partes do mundo. Os Shankaras, os líderes, os instrutores têm idéias, nós as lemos e a elas nos ajustamos e pensamos que nos estamos transformando. Poderá ocorrer um ajustamento superficial, mas não há transformação nenhuma, no sentido a que me refiro, isto é, a transformação total do nosso ser, de forma que nossa maneira de pensar seja totalmente nova.

O que é novo não pode produzir-se mediante esforço, mediante movimentação do conhecido para o conhecido, ou seja, a perseguição do ideal. E, no entanto, é isso que estais fazendo em vossa vida de cada dia, não é verdade? Percebeis que sois ambicioso, ou cruel, ou invejoso, e dizeis: "Preciso transformar-me", e começais a ajustar-vos ao padrão de um ideal que vós ou outros estabeleceram, e pensais que essa é uma importantíssima transformação. Mas, se realmente o examinardes, se penetrardes todo o processo psicológico do pensar, vereis que enquanto a mente está pensando em termos de uma dualidade, tal seja a "violência" e "não violência", enquanto se empenha em ajustar-se ao oposto daquilo que ela é — o qual é meramente a projeção do conhecido e, portanto, uma continuação da mesma coisa em forma modificada — não pode haver transformação básica.

O importante, pois, é compreender, perceber ou experimentar realmente a falsidade de vosso esforço para vos transformardes. Os gurus, os mahatmans, os mestres e todos os livros religiosos vos mandam forcejar, controlar-vos, disciplinar-vos, e ao perceber que esse esforço é realmente falso significa que deveis ser capaz de olhá-lo sem a autoridade do líder, político ou religioso, inclusive eu próprio. Para "experimentardes" a verdade ou a falsidade do que vedes, não podeis interpretá-lo de acordo com outra pessoa, não importa quem seja ela. Se penetrardes essa questão a perceberdes claramente, por vós mesmo, que não pode haver transformação enquanto há ajustamento, isto é, enquanto vos estais obrigando a adaptar-vos a um padrão estabelecido por vós ou por outro — se perceberdes realmente a verdade ou a falsidade disso, vereis então que vossa mente se despojou de toda e qualquer autoridade; e não é esse o verdadeiro começo  de uma revolução fundamental?

parece-me haver necessidade — principalmente no tempo presente — de pessoas vivamente interessadas nessas coisas — mas não me refiro às que se dedicam seriamente ao Gita, ao comunismo, ou a outro padrão qualquer, porquanto elas são simplesmente "conformistas". Refiro-me às pessoas que séria e ardentemente desejam descobrir como efetuar em si mesmas uma revolução total. Apresenta-se, assim, a questão: Pode a mente libertar-se do conhecido? — pois só então há transformação fundamental.

Notai, por favor, senhores, que isto requer muita penetração, investigação. Não concordeis comigo, mas examinai, meditai, dissecai vossa mente, para descobrirdes a verdade ou a falsidade de tudo isso. Saber o que é o "conhecido" pode produzir transformação? Preciso ter conhecimentos para construir uma ponte; mas há necessidade de minha mente sabem em que vai transformar-se? Certo, se sei qual será o estado de minha mente depois de transformar-me, então já não há transformação. Esse conhecimento é prejudicial à transformação, porquanto se torna um meio de satisfação e, enquanto existir um centro em busca de satisfação, recompensa ou segurança, não há transformação nenhuma. E todos os nossos esforços baseiam-se nesse centro constituído pela idéia de recompensa, punição, êxito, ganho, não é verdade? Eis o que interessa à maioria de nós, e se ele nos ajuda a obter o que desejamos, mudaremos; mas essa mudança não é, de modo nenhum, a verdadeira transformação. Assim, a mente que deseja achar-se, fundamentalmente, profundamente, num estado de transformação, num estado de revolução, deve livrar-se do "conhecido". Ela então se torna sobremodo tranquila, e só nesse estado poderá experimentar a transformação radical indispensável.

Krishnamurti - O Homem Livre - Ed. Cultrix - pág. 29 à 34 
Nova Deli - 21 de outubro de 1956




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