autoconhecimento
Da necessidade de estar quieto, observando, passivamente vigilante
Qual a causa desta confusão, desta miséria? Como apareceu esta miséria, este sofrimento que nos aflige, tanto interiormente como exteriormente, este medo a esta expectativa de guerra, que ameaça explodir? Qual a sua causa? Sem dúvida, ela pode ser encontrada na derrocada de todos os valores morais e espirituais e na glorificação dos valores sensuais, do valor das coisas feitas pelas mãos ou pela mente. Que acontece, quando não possuímos nenhum outro valor, senão o das coisas dos sentidos, o dos produtos da mente, da mão ou da máquina? Quanto maior importância atribuímos ao valor sensorial das coisas, tanto maior a confusão, não é verdade? Mais uma vez, não é uma teoria minha. Não é preciso citar livros, para descobrir que vossos valores, vossas riquezas, vossa existência econômica e social, repousam nas coisas feitas pela mão ou pela mente. Vivemos e funcionamos com o nosso ser entranhado de valores sensoriais, o que significa que as coisas, as coisas da mente, as coisas da mão e da máquina,
se tornaram importantes; e quando tal acontece, a crença se torna predominantemente significativa, como está ocorrendo atualmente, não é verdade?
Assim, pois, atribuir significação cada vez maior aos valores dos sentidos, gera confusão; vendo-nos na confusão, procuramos fugir dela por vários meios — religiosos, econômicos, sociais — pela ambição, pelo poder, pela busca da realidade. Mas o real está perto, não precisamos procurá-lo; o homem que procura a verdade, nunca a encontrará. A verdade se acha no que é e nisso consiste a sua beleza. Mas no momento em que a concebeis e começais a procurá-la, começais a lutar; e o homem que luta não pode compreender. Eis porque é necessário que estejamos quietos, observando, passivamente vigilantes. Vemos que nosso viver, nossa ação, se desenvolve dentro do campo da destruição, dentro do campo do sofrimento; qual uma onda, a confusão e o caos nos submergem constantemente; não há trégua na confusão da existência.
Tudo o que fazemos atualmente parece levar-nos ao caos, ao sofrimento e à infelicidade. Observai vossa própria vida, e vereis que vosso viver está sempre na orla do sofrimento. Nosso trabalho, nossa atividade social, nossa política, os vários agrupamentos de nações destinados a colocar fim à guerra, tudo só produz mais guerra. A destruição vem sempre na esteira do viver; tudo o que fazemos leva à morte. É o que está acontecendo, inegavelmente.
Pode-se colocar fim a esta miséria, imediatamente, e não mais continuarmos a ser colhidos pela onda de confusão e sofrimento? Grandes instrutores, como o Buda, como o Cristo, têm vindo ao mundo. Aceitaram a fé, libertando-se, talvez, de toda confusão e angústia. Mas não impediram que continuasse a existir a angústia, não colocaram fim à confusão. A confusão contínua, a angústia contínua. Se, reconhecendo tanta confusão social e econômica, tanto caos e sofrimento, vos retirais para o que se chama a vida religiosa e abandonais o mundo, podeis ter um sentimento de união com aqueles grandes Mestres; o mundo, porém, continuará com seu caos, com suas misérias, suas devastações, e o perene sofrimento dos seus ricos e pobres. Por conseguinte, nosso problema — vosso e meu — é de saber se podemos sair instantaneamente desta miséria. Se, vivendo no mundo, nos recusarmos a dele fazer parte, ajudaremos outros a sair deste caos, não no futuro, não no amanhã, mas agora. É este, sem dúvida, o nosso problema... Vós e eu podemos perceber imediatamente a confusão e o sofrimento, não podemos? Devemos percebê-lo, para nos tornarmos aptos a despertar em outrem igual compreensão da verdade. Em outras palavras: pode-se ser livre instantaneamente? — pois é a única maneira de sair desta tribulação. Só há percebimento no presente; mas mas se dizeis: "O farei amanhã", a onda de confusão vos colherá, e vivereis sempre envoltos em confusão.
Ora, é possível alcançar aquele estado em que se pode perceber a verdade, instantaneamente, e colocar fim à confusão? Digo que é possível e que este é o único caminho. Digo que isso pode e deve ser feito, sem basear-se em suposição ou crença alguma. Produzir esta revolução extraordinária — que não é a revolução destinada a libertar-nos dos capitalistas e a instalar outro grupo no poder — produzir esta maravilhosa transformação, que constitui a única revolução verdadeira, eis o problema. O que geral se chama revolução, é apenas uma mudança ou continuação direta, de acordo com as ideias da esquerda. A esquerda, afinal de contas, é a continuação da direita, sob forma modificada. Se a direita tem seus fundamentos nos valores sensoriais, a esquerda não é mais do que uma continuação dos mesmos valores com diferença apenas de grau ou expressão. Por conseguinte, a verdadeira revolução só poderá realizar-se quando vós, o indivíduo, vos tornardes bem consciente das coisas, em vossas relações com outrem. Por certo, o que sois em vossas relações com outra pessoa, com vossa esposa, vosso filho, vosso patrão, vosso vizinho, é que forma a sociedade. A sociedade, por si só, não existe. A sociedade é aquilo que vós e eu criamos, em nossas relações, e é a projeção exterior de todos os nossos estados psicológicos interiores. Portanto, se vós e eu não nos compreendermos, a simples mudança do exterior, que é a projeção do interior, não tem significação, absolutamente; isto é, não pode haver alteração ou modificação significativa da sociedade, enquanto eu não compreender a mim mesmo, nas relações convosco. Se estou confuso, nas minhas relações, crio uma sociedade que é a réplica, a expressão exterior daquilo que sou. É um fato óbvio, susceptível de investigação. Podemos investigar se a sociedade, a expressão exterior, me produziram ou se eu produzi a sociedade.
Não é, pois, um fato evidente que aquilo que eu sou, nas relações com meus semelhantes, cria a sociedade e que, se eu não me transformar radicalmente, não pode haver transformação alguma da função essencial da sociedade? Quando dependemos de um sistema, para a transformação da sociedade, estamos simplesmente evitando o problema, porquanto sistema algum pode transformar o homem; o homem sempre transforma o sistema, como prova a História. Enquanto eu não compreender a mim mesmo, em minhas relações convosco, sou eu a causa do caos, da miséria, da destruição, do medo, da brutalidade. A compreensão de mim mesmo não depende do tempo; posso compreender-me neste exato momento. Se digo "compreender-me-ei amanhã", estou atraindo o caos e o sofrimento, minha ação é destrutiva... A transformação só se realiza imediatamente; a revolução só pode ser agora, e não amanhã. Quando ela acontece, vós vos libertais completamente dos problemas, porque então o "eu" já não está preocupado consigo mesmo e estais a salvo da onda de destruição.
Krishnamurti
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