Dentro do caos, que se pode achar senão caos?
autoconhecimento

Dentro do caos, que se pode achar senão caos?


Para alcançarmos aquela realidade que não pode ser apreendida por meio de palavras e símbolos, é claro que devemos banir do espírito o significado tradicional, as conclusões religiosas de certas palavras. Há séculos o homem busca algo de superior a si próprio, algo que lhe servisse de meio de fuga a este mundo horroroso, tirânico, cheio de sofrimento, que o compensasse de sua existência dolorosa, lastimável, confusa. Para podermos viver neste mundo o mais equilibradamente possível, vocês e eu criamos, por causa do nosso medo, de nossa angústia, uma imagem, um Deus pessoal, uma força super-humana, que supomos agir como princípio diretor de nossa conduta. No Oriente essa imagem difere um tanto da do Ocidente, mas, em toda a parte, ela é uma criação da mente humana. Nada tem de sagrado. Nada há de sagrado nos rituais do Ocidente ou do Oriente., elaborados que foram pelo homem, no seu desespero, sua tortura, seu medo, sua ansiedade; e o que nasce do medo, da ansiedade, nunca conduzirá o homem à Verdade. Seus rituais, seus símbolos, suas preces poderão entretê-lo, estimulá-lo, dar-lhe uma certa inspiração, um certo sentimento de bem-estar; mas, atrás delas, nenhuma verdade existe, absolutamente, porque foram criadas pelo ente humano em sua imensa agonia.

O homem sempre buscou, e aparentemente achou; por conseguinte, vamos agora examinar estas duas palavras “buscar” e “achar”. Nós buscamos em virtude de nossa própria confusão. Buscamos algo permanente porque vemos que tudo o que nos rodeia é impermanente. Buscamos um amor espiritual, um conforto celestial, uma Divina Providência, porque dentro de nós existe tanta confusão, e sofrimento, e agonia. Por outras palavras, nós buscamos no meio do caos, e o que achamos nasce desse caos. Este fato, pois, precisa ser compreendido, isto é, que buscar e achar não só é um desperdício de energia, senão também um verdadeiro obstáculo, uma coisa perniciosa.

Vocês podem não concordar com o que se está dizendo, mas notem, por favor, que não estamos tratando de algo com que se pode concordar ou de que se pode discordar. Estamos investigando uma coisa que exige grande soma de energia, alta sensibilidade, intenso percebimento e atenção. Isso significa que, para descobrir, temos de varrer tudo: todas as asserções, e dogmas, e sanções. As religiões, em todo o mundo, estabeleceram certas fórmulas, certos métodos e tradições, que mandam observar a fim de se poder descobrir. O homem sempre andou a buscar, na esperança de encontrar algo original, algo superior à sua imaginação, à sua vaidade: Deus, um Ser Supremo, uma Essência Divina, que o guiará, ajudará, confortará. Mas, atrás dessa ânsia de conforto, encontra-se aquele vasto “reservatório” da ignorância do homem acerca de si mesmo, da causa de seus desesperos e de seu perene ansiar por algo permanente.

Se uma pessoa é um tanto inteligente ou desperta, e se acha insatisfeita com este mundo transitório, deseja algo que seja permanente e, por conseguinte, está sempre a buscar — filiando-se a um certo movimento, ligando-se a um certo partido ou atividade, etc. Nessa busca, está sempre ativa. Mas tal busca conduz, invariavelmente, a um fim preestabelecido. O que se deseja é conforto, permanência, um estado de espírito sempre isento de perturbação, o qual chamamos “paz”; e o que se busca poderá ser achado, mas nunca será o real, nunca será a Verdade.

Assim, a mente que deseja descobrir o real, a Verdade, deve deter essa busca, essa ânsia de achar. Vendo-nos confusos, ansiosos, infelizes, oprimidos pelo sofrimento, buscamos conforto fora de nós mesmos — nos livros, nos instrutores, nos gurus, nos salvadores, nas religiões organizadas; e, encontrando um certo conforto, uma certa segurança, a isso nos apegamos com todas as forças. Mas, esse buscar e esse achar têm por resultado invariável a deterioração da mente; porque a mente deve manter-se sobremodo ativa, sensível, desperta, vitalmente enérgica. Assim, colocar fim ao buscar e ao achar significa eliminar o sofrimento, porque a mente está então a revelar-se a si própria, a compreender-se, sendo essa a verdadeira essência da atividade religiosa.

Se não conhecemos a nós mesmos, a mera busca só pode gerar ilusões. Os entes humanos desejam mais e mais experiência. Todos desejamos mais experiência — não só a “experiência” de uma viagem a Marte ou do descobrimento de novas galáxias, mas desejamos também mais experiência interiormente, porque a experiência de nosso viver diário já nada significa. Temos tido experiências sexuais, e esse prazer, repetido dia por dia, se tornou um tanto monótono, entediante e, por conseguinte, desejamos outra forma de experiência, uma certa atividade social nova. Queremos os louvores da comunidade, nos tornar mundialmente famosos, queremos prestígio, posição em virtude de nossas funções. E é por causa desse desejo de mais experiências que recorremos a drogas, como o L.S.D., que tornam a mente mais sensível, mais ativa, e, dessa amenira, nos proporcionam experiências mais amplas, mais profundas, mais intensas.

Peço que notem, como disse outro dia, que este orador não é importante; mas o que ele diz é importante, porquanto o que está dizendo é a voz do próprio Eu de vocês a pensar em voz alta.

Através das palavras que o orador está empregando, estão escutando a si mesmos e não o orador; por essa razão é da máxima importância o escutar. Escutar é aprender, e não acumular. Se acumulam conhecimentos e escutam com essa acumulação, com o fundo de saber de vocês, não estão escutando. Só escutando, podem aprender. Estão aprendendo a respeito de si mesmos, e, por conseguinte, devem escutar com zelo, com extraordinária atenção; e a atenção é negada quando justificam, condenam ou de outro modo avaliam o que ouvem. Não estão então escutando, não estão percebendo, vendo.

Se se sentam à margem de um rio após uma tempestade, veem a corrente passar carregando enorme quantidade de destroços. De modo idêntico, devem observar o movimento do Eu de vocês, acompanhando cada pensamento, cada sentimento, cada intenção, cada motivo — observá-lo simplesmente. Esse observar é também escutar. É perceber com os olhos, os ouvidos, com o discernimento de vocês, todos os valores criados pelos entes humanos, e pelos quais vocês se acham condicionados; e só esse estado de total percebimento pode colocar fim a toda busca.

Como disse, busca e achar é desperdício de energia. Quando a própria mente está no escuro, confusa, assustada, aflita, ansiosa, que bem lhe faz o buscar? Dentro desse caos, que se pode achar senão mais caos? Mas, quando há clareza interior, quando a mente não está temerosa, exigindo segurança, então não há mais buscar e, por conseguinte, não há mais achar. Ver a Deus, ver a Verdade não constitui um ato religioso. O único ato religioso é o alcançar essa clareza interior mediante autoconhecimento, isto é, pelo estarmos cônscios de nossos íntimos e secretos desejos, deixando-os revelar-se, sem nunca corrigi-los, controlá-los ou a eles nos entregarmos, porém, sempre atentos a eles. Desse constante observar vem uma maravilhosa clareza e sensibilidade, uma extraordinária conservação da energia; e nós necessitamos de uma imensa energia, porque toda ação é energia, a própria vida é energia. Quando estamos aflitos, ansiosos, a disputar, a ter ciúmes, quando estamos temerosos quando nos sentimos insultados ou lisonjeados — tudo isso é dissipação de energia. Dissipação de energia é também estarmos doentes física ou espiritualmente. Tudo o que fazemos, pensamos e sentimos constitui um derrame de energia. Ora, ou devemos compreender a dissipação de energia, pois em virtude dessa compreensão há um natural ajuntamento de toda a nossa energia; ou passaremos nossa vida a lutar para conciliar as múltiplas e contraditórias manifestações da energia, contando que da periferia poderemos alcançar a essência.

A essência da religião é o Sagrado — que nenhuma relação tem com as organizações religiosas, nem com a mente que está senhoreada e condicionada por uma crença, um dogma. Para essa mente, nada há de sagrado senão o Deus que ela própria criou, ou o ritual que elaborou, ou as várias sensações que lhe vêm do orar, do adorar, da devoção. Mas, essas coisas não são sagradas, absolutamente. Nada há de sagrado no dogmatismo, no ritualismo, no sentimentalismo ou no emocionalismo. O Sagrado é a essência mesma da mente religiosa; é o que vamos investigar nesta manhã. Não nos interessa nada do que se supõe sagrado — o símbolo, a palavra, a pessoa, o retrato, uma dada experiência — que são puras infantilidades; o que nos interessa é a essência. Isso requer, da parte de cada um de nós, uma compreensão nascida do percebimento, em primeiro lugar, das coisas exteriores. A mente não pode ser levada pela maré do percebimento interior, sem primeiro estar cônscia do comportamento exterior, dos gestos externos, dos costumes, das formas, do tamanho e da cor de uma árvore, da aparência de uma pessoa, de uma casa. É a mesma maré que “sai” e que “entra”, e a menos que vocês conheçam a “maré externa”, nunca saberão o que é a “maré interna”.

(...) Quando há o percebimento interior de cada atividade do espírito e do corpo de vocês;  quando estão cônscios de seus pensamentos, seus sentimentos, tanto secretos como patentes, tanto conscientes como inconscientes, então, desse percebimento vem uma clareza que não é provocada, criada pela mente. E, sem essa clareza, podem fazer o que quiserem, rebuscar céus, terras e abismos, nunca descobrirão o verdadeiro.

Assim, o homem que deseja descobrir o verdadeiro necessita da sensibilidade do percebimento — o que não significa que ele deve exercitar-se nessa percepção. Isso só conduz ao hábito — hábito sexual, hábito de beber, hábito de fumar, qualquer hábito — torna a mente insensível; e a mente insensível, além de dissipar energia, torna-se embotada. A mente embotada, superficial, condicionada, a mente vulgar, pode tomar uma droga e, por um segundo, ter uma experiência maravilhosa; mas continua a ser uma mente vulgar. Mas, aqui não estamos querendo descobrir um método para colocar fim à  vulgaridade da mente.

Não se põe fim à vulgaridade da mente pela obtenção de mais conhecimentos, mais erudição, pelo ouvir música sublime, pelo visitar lugares pitorescos do mundo, etc., etc.; a cessação da vulgaridade nada tem a ver com isso. O que faz cessar a vulgaridade e a claridade do autoconhecimento, o movimento da mente livre de restrições; só essa é a mente religiosa.

A essência da religião é o Sagrado. Mas o sagrado não se encontra em nenhuma igreja, em nenhum templo, nenhuma mesquita, nenhuma imagem. Estou falando sobre a essência, e não a respeito das coisas que chamamos sagradas. E, ao compreender-se essa essência da religião — o Sagrado — tem a vida então um significado inteiramente diferente; tudo então tem beleza, e a Beleza é o Sagrado. Beleza não é aquilo que nos dá estímulo. Ao verem uma montanha, um edifício, um rio, um vale, uma flor, ou um rosto, vocês dizem que essa coisa é bela, porque por ela se sentem estimulados. Mas a beleza a que me refiro nenhum estímulo oferece. Não é beleza que se pode encontrar em algum quadro, em algum símbolo, algumas palavras, alguma música. Essa beleza é o Sagrado, a essência da mente religiosa, da mente esclarecida pelo autoconhecimento. Encontramo-nos com essa Beleza, não pelo desejar, pelo aspirar a tal experiência, porém, somente quando terminou todo desejo de experiência; esta é uma das coisas mais difíceis de compreender.

Como já assinalei, a mente que está em busca de experiência está sempre a mover-se na periferia, e a tradução de cada experiência dependerá do particular condicionamento de vocês. Se são cristãos, budistas, muçulmanos, hinduístas, ou comunistas — o que quer que sejam — suas experiências, obviamente, serão condicionadas conforme o fundo mental de vocês; e quanto mais desejarem experiências, mais fortaleceram esse fundo. Esse processo não é um meio de dissolver nem de terminar o sofrimento, porém, apenas, uma fuga ao sofrimento. A mente esclarecida pelo autoconhecimento, a mente que é a verdadeira essência da clareza e da luz, de nenhuma experiência necessita. Ela é o que é.

A clareza, pois, vem do autoconhecimento e não da instrução ministrada por outro, seja um talentoso escritor, seja um psicólogo, um filósofo, um pretenso instrutor religioso.

Jiddu Krishnamurti — O descobrimento do amor   





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